quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A nova culinária... Fantástico texto de Rui Vieira Nery

"Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adosinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão.

Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro dos mais velhos.
E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume.
A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si.
Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”, “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”, “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”.
Ficavam depois a olhar discretamente para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional.
E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.

Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”.
Os nomes próprios seguem um abecedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvao, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaísmos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas…
Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural.
A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.

A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum.
Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós.
Seja o que Deus quiser!
E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…

E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo.
Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que, em tempos, caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos.
Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado.
A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénia, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhe davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste.
Wow!

Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade!"
Rui Vieira Nery

UM FACTO HISTÓRICO POUCO CONHECIDO




Ai, Uruguai...

Passo pelo centro da cidade e vejo de repente, em plena Praça do Comércio, a bandeira da Guiné Equatorial. Lá estava ela ao lado das outras oito a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Para nos lembrar como os interesses petrolíferos levaram à CPLP uma ditadura brutal onde há uma suposta moratória à pena de morte (que ninguém verifica), e onde o ditador rouba os recursos naturais do país para que o seu filho seja um colecionador de carros de luxo que não podem andar nas poucas estradas asfaltadas daquela desventurada terra.

Não que faltem razões históricas para uma relação com o povo da Guiné Equatorial, por onde os portugueses também andaram e onde há ainda quem fale um dialeto de base portuguesa na ilha de Ano Bom. Mas se essas fossem razões suficientes para entrar um país na CPLP, eu preferiria ter visto outro na frente da fila: o Uruguai.

Antes que alguém diga: “mas o Uruguai tem como língua oficial o espanhol!” — interrompo para responder que não tem. O Uruguai não tem idioma oficial. E isso não acontece por acaso, mas pela razão histórica de que a República Oriental do Uruguai, como é seu nome constitucional, foi criada como uma espécie de Bélgica da América do Sul, ou seja, para servir de tampão entre o Brasil e a Argentina, sucessores do império português e do império espanhol. Por isso foi deixada propositadamente sem língua oficial, nem português nem espanhol, num esforço de neutralidade.

Muita gente já ouviu falar da uruguaia Colónia do Sacramento, que foi a mais meridional das cidades portuguesas e se situa mesmo em frente a Buenos Aires, na margem uruguaia do Rio da Prata.
Esta cidade foi intermitentemente portuguesa e espanhola durante século e meio, e serviu de moeda de troca nas negociações pela posse do território das Missões, no atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul.

Mas há menos quem saiba que todo o Uruguai foi, no início do século XIX, parte do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, com o nome de Província Cisplatina. Após 1822, o Uruguai passou a fazer parte do Império Brasileiro. Em 1825, o Uruguai tornou-se independente, não – como muita gente pensa – do império espanhol, mas sim do império brasileiro.

Este é um caso único na América de língua espanhola — mas o Uruguai é também, embora minoritariamente, de língua portuguesa. Há cidades de fronteira com o Brasil, onde o português é língua materna. O “portunhol riverense”, também chamado de “fronteiriço”, é um dialeto de base portuguesa reconhecido pelo estado uruguaio.
E a língua portuguesa é de ensino obrigatório nas escolas do país.

Para mais, o Uruguai é um país democrático e respeitador dos direitos humanos. A pena de morte foi abolida em 1907. Foi um dos primeiros países na América a reconhecer o casamento gay e um dos primeiros no mundo a legalizar as drogas leves. E — esta é a melhor — já pediu e repetiu o pedido para ser observador na CPLP. Se tivéssemos sido um pouco mais ativos ainda poderíamos ter tido José “Pepe” Mujica nas cimeiras da lusofonia.

É por isso que, de cada vez que eu passar pelas bandeiras da CPLP e lá vir a da Guiné Equatorial terei de suspirar e pensar: mal por mal, preferia o Uruguai...

NOVA ORDEM MUNDIAL DECLARADA - EUA 2014

Luta contra a Nova Ordem Mundial (Fight the New World Order with Global ...

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O que acontece quando um fã de futebol tem de escolher entre a mulher e um jogo?

Investigadores da Universidade de Coimbra usaram um dilema da teoria de jogos, conhecido como “Guerra dos Sexos”, para ver o que acontecia no cérebro de um adepto de futebol com uma difícil decisão a tomar.

ANDREA CUNHA FREITAS 29 de Agosto de 2018


Calma. Antes que se sinta tentado a fazer um comentário sobre este artigo, esclarecemos que esta investigação envolveu 44 participantes, todos homens, que têm uma característica especial: são todos membros de uma claque de futebol, dos Super Dragões (Futebol Clube do Porto) e Mancha Negra (Académica). Ou seja, não são simples adeptos. Uma equipa de investigadores do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS) da Universidade de Coimbra decidiu ver o que acontece no cérebro destes fervorosos fãs de futebol quando têm de escolher entre o amor a uma pessoa e o amor ao seu clube. O estudo, publicado na revista Scientific Reports, do grupo da Nature, mostra uma nova cartografia cerebral da tomada de decisão afectiva e, menos importante mas seguramente mais apelativo, revelou também que a maioria dos participantes resolveu este conflito optando pela paixão em vez do amor, ou seja, escolheu o futebol.

A equipa coordenada por Miguel Castelo Branco já tinha demonstrado que o amor de um elemento de uma claque pelo seu clube podia ser comparado ao amor romântico. Num estudo publicado em Março de 2017, os investigadores concluíram que os circuitos cerebrais activados por membros das claques quando vêem o seu clube jogar são os mesmos que são recrutados no caso de um amor romântico. Mais precisamente, lembra Miguel Castelo Branco, as semelhanças encontradas no cérebro dos participantes aproximam este amor tribal à paixão. Naquele estudo, o exercício privilegiou a emoção. Agora, os investigadores quiseram ver que impacto é que este amor tribal tinha na tomada de decisão. “Este é um modelo muito bom para estudar dilemas afectivos”, sublinha Miguel Castelo Branco, realçando que esta terá sido a primeira vez que o dilema da teoria dos jogos conhecido como “Guerra dos Sexos” foi testado numa experiência.

Os participantes tiveram de passar várias etapas. Primeiro preencheram questionários que classificavam, numa escala de 1 a 7, vários cenários, desde fazer a sua actividade preferida a fazer a actividade preferida da mulher, ou não fazer nenhuma das duas. Desenharam-se assim o que os investigadores chamam “matrizes de preferência” associadas a diferentes actividades. Os homens deram um valor às várias possibilidades e deram também um valor ao que achavam que seriam as preferências da sua mulher, sendo que estamos a falar de relações relativamente longas com uma média de nove anos. “Temos a percepção dele e o que nos interessa é o dilema percebido por ele”, justifica o investigador, justificando a dispensa da validação das respostas pela mulher.

No momento da tomada de decisão, os homens tinham então de escolher uma entre quatro opções: o homem e a mulher fazem as suas actividades preferidas sozinhos, ela desiste da sua actividade preferida e vai com ele ver o jogo de futebol, ele desiste do jogo de futebol e vai fazer a actividade preferida dela com ela e, por fim, os dois desistem das actividades preferidas e vão fazer outra coisa juntos.

Nesta altura, com as classificações somadas, era já possível ver quais as opções que tinham mais valor para o casal. E a verdade é que nem sempre as mais valiosas foram as escolhidas. “O que pretendíamos como resposta era a actividade que era a mais provável de acontecer. Não a preferida. Queríamos que a decisão dele reflectisse uma espécie de negociação do casal”, explica Miguel Castelo Branco. O processo da deliberação das várias opções e da tomada de decisão decorreu enquanto os participantes estavam a ser submetidos a uma ressonância magnética e, assim, foi possível ver as zonas cerebrais que eram recrutadas e activadas para resolver este grande dilema afectivo.
Testar o espírito de sacrifício

“Os resultados foram curiosos. No primeiro estudo tínhamos visto um domínio de áreas relativamente primitivas do cérebro, a amígdala, por exemplo, áreas que têm que ver com emoções fortes mas relativamente primárias. Aqui, para a tomada de decisão, todo o circuito que encontrámos era no córtex pré-frontal”, conta Miguel Castelo Branco. E o que é que isso quer dizer? “Quer dizer que há mesmo um diálogo entre emoção e razão nestes adeptos que são relativamente fanáticos.” As regiões cerebrais activadas são intrinsecamente humanas, não podem ser observadas noutros modelos animais, e a sua “descoberta” foi uma surpresa. “No fundo, estamos a descobrir regiões novas. Não estávamos à espera de ver estas regiões”, refere Miguel Castelo Branco, adiantando que certas regiões como o córtex órbito-frontal estão associadas à avaliação da dimensão afectiva, as regiões frontais mediais com o processamento da reciprocidade e outras, mais laterais, com o processo deliberativo que resulta na decisão final.

“Algumas destas áreas são muito importantes para o controlo cognitivo e são muito relevantes até na clínica, por exemplo no controlo das dependências. Nós temos um impulso de gratificação imediata mas tentamos controlar esse impulso para uma recompensa a longo prazo. Que é um bocadinho o que este modelo nos traz. Basicamente, o futebol é baseado numa gratificação imediata e uma relação romântica baseia-se numa gratificação contínua, sustentada e a longo prazo”, explica o investigador.



Naquilo a que chama uma “nova cartografia cerebral da tomada de decisão”, foi possível mapear as regiões envolvidas na avaliação afectiva, na decisão, e outras zonas recrutadas quando existia um esforço de cooperação para “bem” do casal. “A cooperação corresponde à situação de maior valor para o casal em conjunto (ou seja, abdicarem da actividade preferida para fazer outra coisa em conjunto), e a não cooperação corresponde às situações de menor soma para o casal em conjunto. Preferimos um critério numérico, que é mais objectivo, pois nem sempre a valoração é linear”, diz.

O mais importante nesta investigação é o facto de revelar um importante papel que diferentes áreas do córtex frontal do cérebro humano desempenham nas decisões que envolvem dilemas entre a razão e a emoção, por isso o artigo reserva apenas um breve parágrafo para os resultados “comportamentais”. Aqui é dito que 39,7% dos participantes optaram por cooperar e escolheram as situações de maior valor para o casal. É fácil fazer as contas para perceber que, tal como confirma o artigo, 60,3% optaram por não cooperar e escolheram ir ao futebol. “Os 44 participantes foram expostos a muitos dilemas e por isso pudemos determinar que as percentagens definidas acima são apenas a média, mas em certos casos podiam desviar-se desse comportamento, o que é típico das situações de dilemas em que o conflito e a incerteza são muito elevados”, justifica o investigador, que, no entanto, admite: “Sim, eles optam um bocadinho mais por não cooperar. Eles gostam mesmo de futebol.”

Regressando ao que foi observado nas ressonâncias magnéticas e aos caminhos percorridos dentro das cabeças dos membros das claques enquanto avaliam as opções e tomam uma decisão, este trabalho abre uma nova porta para o estudo de doenças psiquiátricas. “Por exemplo, na psicopatia é dada muita importância a áreas mais antigas em termos de evolução como a amígdala, tendo sido relativamente ignorada a contribuição do lobo frontal. Ora, na psicopatia um aspecto comum é a tomada de decisão fria e egocêntrica, não centrada nem na cooperação nem na afectividade. As áreas agora identificadas podem ser muito importantes no estudo desta doença”, diz Miguel Castelo Branco, a título de exemplo. Mas há mais: “Estes conflitos envolvem também o controlo cognitivo da impulsividade da gratificação imediata, o que é relevante para outras patologias como o ‘jogo patológico’, em que a emoção procura de forma irreflectida a recompensa imediata, enquanto a razão diz que a perda monetária poderá ser considerável.”

O coordenador da investigação não valoriza aquilo que a maioria dos leitores poderá procurar neste artigo. Mais importante do que as respostas ou a decisão são os mecanismos por atrás de um dilema que leva a uma discussão entre a emoção e a razão para lugares improváveis dentro do nosso cérebro. Quem ganha essa batalha não é o mais importante. Por outro lado, a novidade é também que esta será a primeira vez que o resultado de um dilema de Guerra dos Sexos foi experimentado e publicado. E o que foi posto à prova é um dilema real, do quotidiano, longe dos problemas abstractos que normalmente são colocados nestes estudos que envolvem a teoria dos jogos. “A maior parte dos estudos que são feitos com a teoria dos jogos são com estudantes de psicologia e são coisas sempre muito abstractas em que é muito difícil extrapolar para podermos generalizar para coisas ligadas à emoção. É daí que vem também a novidade deste estudo. Em teoria dos jogos, o que tem sido feito (o jogo do ultimato e o jogo da confiança) tem que ver com a partilha de proveitos económicos, aqui não. Aqui é um dilema de gratificação hedónica, tem que ver com sistema de recompensa do cérebro.”

E será possível fazer algo semelhante com as mulheres? “Neste estudo conseguimos arranjar esta amostra em que há um dilema entre dois amores. Seria interessante fazer isto também entre o sexo feminino, mas é muito difícil arranjar um modelo experimental para isso”, responde o investigador. Por mais que existam muitas mulheres que gostam de futebol (e existem), são muito poucas as que pertencem a uma claque de futebol. Assim, aceitam-se sugestões para criar um dilema entre a emoção e razão para o sexo feminino suficientemente forte para ser testado numa experiência deste tipo.

No entanto, o próximo passo desta equipa não vai na direcção das mulheres. Os investigadores vão continuar a estudar estes membros de claques e fanáticos por futebol, mas agora vão testar o seu espírito de sacrifício. “A experiência passa por ter um adepto de uma claque destas junto ao estádio mas sem bilhete e aparecer alguém do mercado negro. Nós sabemos os salários destes adeptos, e eles têm de dar um número. Quantos euros é que pagariam?” Em avaliação estarão as áreas da recompensa, do sacrifício, do risco financeiro. Mais um dilema, portanto. Já agora (sugerimos nós) seria interessante ver se as áreas cerebrais recrutadas para este exercício são as mesmas num contexto de “amor romântico”. Será que o “caminho” no cérebro do sacrifício por amor a uma pessoa e a um clube é o mesmo?

Na verdade, neste estudo podemos concluir que o amor tribal se sobrepõe ao amor romântico. Mas isso, avisamos de novo, tem muito que ver com os sujeitos envolvidos. “Esta é uma população muito especial, são membros de claques. Se se sobrepõe um bocadinho é porque estamos a comparar uma paixão com um amor, e a paixão tem mais peso quando há uma gratificação imediata”, justifica Miguel Castelo Branco. Nada de conclusões precipitadas, portanto. Estamos apenas perante duas formas diferentes de amar, estes homens não gostam mais de futebol do que das suas mulheres. Ou será que gostam?

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

E se um mercador do século XVI fizesse negócios no mundo de hoje?

Investigadores da área da história, física e ciência computacional juntaram-se para analisar milhares de documentos de Simón Ruiz, um homem de negócios que viveu no século XVI, e encontraram semelhanças surpreendentes com as redes financeiras da actualidade. Há padrões que se mantêm apesar dos 500 anos de diferença.

ANDREA CUNHA FREITAS 22 de Agosto de 2018

Pintura do mercador e banqueiro Simón Ruiz da autoria do pintor Juan Pantoja de la Cruz


O mundo de Simón Ruiz era muito diferente do que temos hoje à nossa volta, mas a sua forma de ganhar a vida terá, afinal, mais semelhanças com a actualidade do que à primeira vista podia parecer. O homem de negócios espanhol, com uma longa e próspera carreira de 40 anos, marcou uma época que é caracterizada como o primeiro mercado global de transacções. Depois da análise de 8725 letras de câmbio manuscritas – num trabalho que juntou o minucioso exame de historiadores às mais recentes técnicas computacionais e modernos métodos matemáticos –, uma equipa de investigadores portugueses concluiu que há semelhanças surpreendentes entre a antiga rede de negócios e os actuais mercados globais financeiros. A investigação, publicada esta quarta-feira na revista Royal Society Open Science, compara duas redes financeiras separadas por 500 anos, seguindo o rasto do fluxo do dinheiro.

As imagens que encontramos de Simón Ruiz apresentam-nos um homem de barba branca, olhos pequenos e semblante sério, quase severo. Dizem que teve uma vida longa (terá nascido em 1525 e morreu em 1597), casou duas vezes e não teve filhos. Morreu “de velhice”, após uma próspera carreira de 40 anos que começou nos negócios de venda de lã em Burgos, seguindo o trilho dos passos do seu pai, e com contratos com importadores que lhe garantiram trocas privilegiadas com a região do Nordeste de França. Investiu em vários tipos de comércio e ao mercador somou o papel de banqueiro, emprestando dinheiro ou servindo de intermediário em operações financeiros. Entre os “beneficiários” da sua fortuna encontrava-se, por exemplo, o rei D. Filipe II, que recorreu a Simón Ruiz quando os banqueiros genoveses e outros deixaram de lhe emprestar dinheiro por falta de pagamento de dívidas antigas.

Após a sua morte, a riqueza que acumulou e que conseguiu preservar durante períodos críticos de crises financeiras (nomeadamente durante a bancarrota da Coroa espanhola em 1575) acabou por cair nas mãos de um sobrinho. Ao contrário do seu tio, Cosmo Ruiz não teria jeito para este arriscado negócio das transacções financeiras e acabou por apostar demasiado no “cavalo errado”. Um avultado empréstimo que fez a um negreiro português que negociava com escravos, chamado Pedro Gomes Reinel, arruinou o sobrinho do mercador e empurrou-o para a inevitável falência. Da fortuna do antigo mercador restam hoje milhares de documentos, um hospital que construiu em Medina del Campo, uma fundação onde está o seu arquivo e pouco mais.

Apesar do desfecho negativo por responsabilidade alheia, a história de Simón Ruiz soa a um feito assinalável. Mais interessante fica quando, perante a escassez de documentos desta época, sabemos que existe um considerável acervo de documentos que podem ser consultados e analisados. Assim, investigadores decidiram fazer algo que garantem que nunca tinha sido feito antes: validados por outros estudos já realizados antes consideraram que a história de Simón Ruiz era representativa da época e usaram-na para comparar a rede de negócios financeiros do século XVI com a actual.

Um dos primeiros passos da equipa de investigadores, coordenada por Jorge Pacheco, investigador do Centro de Biologia Molecular e do Departamento de Matemática e Aplicações da Universidade do Minho, em Braga, foi o recurso a uma base de dados que reúne aproximadamente 21 mil letras de câmbio pertencentes a Simón Ruiz. Desse espólio foram seleccionadas 8725 que continham informação sobre transacções em dinheiro com pessoas que tinham papéis claramente atribuídos e a identificação destes “actores” e que, por isso, foram considerados adequados para este estudo. Segundo explicou ao PÚBLICO Ana Sofia Ribeiro, investigadora da Universidade de Évora e do Departamento de História e Estudos Políticos Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e que é a primeira autora do artigo na Royal Society Open Science, a selecção da amostra foi sobretudo assente no calendário, tendo sido seleccionados documentos de diferentes períodos cronológicos, “desde alturas em que não aconteceu nada, até alturas em que apanhássemos o antes e depois das várias crises financeiras que aconteceram nesta altura”.

Depois, os cientistas começaram por analisar estes documentos antigos para caracterizar aquela que designam como a primeira rede global de transacções financeiras. Simón Ruiz fez negócios em várias partes do mundo numa época de mudanças. “Durante o final do século XV e início do século XVI, o mundo testemunhou uma revolução no comércio: o surgimento do primeiro mercado global de transacções. Impulsionado pelos esforços portugueses e espanhóis na definição de novas rotas de navegação para a América e também para a Ásia, como alternativa aos islâmicos dominantes, os portos europeus prosperaram com novos bens e abundância de capital”, contextualiza o comunicado de imprensa sobre este estudo. Era, acrescenta-se ainda, “um terreno inteiramente novo para os actores comerciais da época, que exigia uma reconfiguração das velhas formas de fazer negócios”.
O segredo do sucesso

A colaboração dos investigadores de história, física e ciência da computação, envolveu o recurso a métodos computacionais e matemáticos de última geração e resulta, referem os autores, na primeira análise em grande escala alguma fez feita de dados pré-estatísticos associados à rede comercial do século XVI. A invulgar abordagem de dados históricos, destaca o comunicado de imprensa, “permitiu realizar uma comparação quantitativa entre o século XVI e o mercado financeiro actual, colocando em evidência as impressionantes semelhanças existentes entre redes separadas por 500 anos, e que reflectem paradigmas funcionais similares apoiados em meios tecnológicos fundamentalmente diferentes”.

Além disso, acrescenta-se, como o conjunto de dados abrange meio século de transacções, também foi possível “evidenciar a rápida adaptação da rede em resposta à turbulência geopolítica vivida na época”. “Apesar dessa rápida adaptação, os autores não encontraram mudanças nas propriedades matemáticas gerais da rede, que permaneceram surpreendentemente robustas durante todo o período analisado. Mais uma vez, esse resultado sugere a existência de padrões de transacções que permanecem invariáveis ao longo do tempo.”

Há, diz Ana Sofia Ribeiro, um padrão que se mantém constante e que assenta num circuito aparentemente simples que envolve três partes ou “actores”: o doador, o beneficiário e os intermediários. São também “redes livres de escala”, ou seja, que são bastante hierárquicas, onde a maior parte dos indivíduos que fazem estas transacções (ou os bancos se estivermos a falar nos dias de hoje) não têm muitos parceiros de negócio e muito poucos têm muitos parceiros de negócio. Por outro lado ainda, existe uma preferência dos indivíduos por relações com aqueles que têm características semelhantes a eles. “O que se verifica no nosso artigo é que a rede é bastante heterogénea. Os indivíduos com mais parceiros tanto se associavam a outros com muitos parceiros como àqueles que tinham poucos parceiros. Isso permitia-lhes distribuir melhor o risco das transacções financeiras e assim resistir melhor aos impactos das crises”, explica Ana Sofia Ribeiro.

Mas, além da estrutura que se mantém nas redes financeiras separadas por meio século, a análise dos investigadores permitiu ainda detectar alguns mecanismos específicos que funcionavam e (aparentemente continuam a funcionar) como boas estratégias de sobrevivência e formas de resiliência. Conhecendo a história, a curiosidade é inevitável: qual era, afinal, o segredo do sucesso de Simón Ruiz? Além da estrutura que usou, que outras decisões terão ajudado a que se mantivesse à tona durante vários períodos de choque e de graves crises financeiras? “Através de um conjunto de mecanismos. Um deles é o número de indivíduos com quem tem este tipo de transacções monetárias. Ele não depende de ninguém em concreto e, assim, a sua rede distribui o risco financeiro por vários agentes”, diz a investigadora. Por outro lado e ao mesmo tempo, Simón Ruiz também mantém alguns grandes parceiros que lhe permitem ter uma grande confiança e que fazem com que a rede não caia nestes momentos de choque.

Não será preciso ser grande especialista em finanças para concluir que a escolha de parceiros de confiança e a distribuição do risco num negócio são estratégias que existem ainda hoje. “Os mecanismos de aferir se existe confiança ou não são distintos porque hoje temos meios tecnológicos que nos permitem aferir isso. Eles teriam outros. Mas isso continua a ser exactamente a base da resistência, porque há um pequeno número de indivíduos que não cai quando há estes fortes embates das crises financeiras.”


Documento no arquivo da Fundação Museo de Las Ferias que mostra como o banqueiro emprestava dinheiro à Coroa espanhola

Os autores esperam que este trabalho abra caminho para outros estudos que combinem “as ferramentas de ciência de dados e sistemas complexos com dados históricos (pré-estatísticos), e que provavelmente constituem a melhor maneira de lidar com análises em grande escala e de garantir às ciências humanas os meios necessários para contornar a falta natural de dados consistentes de fontes históricas”. Ana Sofia Ribeiro refere ainda que, dentro do tema das finanças, esta investigação mostra que “há formas de fazer face às crises financeiras que continuamos a ter e que continuam a ser crises capitalistas, puras, tal como eram no século XVI e o estudo esclarece que existem estes mecanismos para responder a estes momentos”.

A inédita investigação e comparação entre os dois períodos separados por 500 anos revelou, assim, que os principais traços daquele que foi o primeiro mercado global de transacções se mantiveram robustos e quase inalterados ao longo do tempo. E se Simón Ruiz fosse um homem dos nossos dias? “Acho que ele conseguiu adaptar-se bastante bem às flutuações e conjunturas que mudavam – não a um ritmo tão intenso como o de hoje – em dez ou cinco anos. Tinha uma clarividência em termos de negócios e foi ganhando uma grande experiência e talvez tivesse sido um homem de negócios com muito sucesso nos dias de hoje.”

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

"Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra"

Muito próxima de Martin Luther King e de outras figuras da luta pelos direitos civis dos negros, Aretha Franklin viu a sua versão de Respect tornar-se, em 1967, um hino desse movimento. Quase meio século depois, o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, ouviu-a cantar Natural woman e não conseguiu conter as lágrimas.

LUÍS MIGUEL QUEIRÓS   16 de Agosto de 2018

Aretha Franklin no Appolo Theater, em 1971

Filha do pastor baptista C. L. Franklin (1915-1984), figura de relevo do movimento de luta contra a discriminação dos negros americanos nos anos 50 e 60, Aretha Franklin conviveu desde muito nova com Martin Luther King, que era amigo da família, e chegou mesmo a acompanhá-lo em digressões pelo país, cantando em serviços religiosos e comícios. “Tinha acabado de deixar a escola, via como era importante o que o Dr. King estava a tentar fazer, e pedi ao meu pai para viajar com ele”, lembrou a cantora em 2014, numa entrevista televisiva conduzida pelo reverendo Al Sharpton.



A cantora teria então 15 anos, a idade com que abandonou os estudos, mas já era mãe de um filho e lançara no ano anterior o seu primeiro álbum, Songs of Faith, gravado na igreja do pai, a New Bethel Baptist Church em Detroit, no Michigan. Alguns anos depois, em Junho de 1963, os reverendos Franklin e King desfilariam juntos na marcha pelos direitos civis que o primeiro organizou em Detroit, e que serviu ao segundo como balão de ensaio para testar o célebre discurso “I have a dream”, com o qual iria depois galvanizar, no final de Agosto, os 250 mil manifestantes que participaram na marcha sobre Washington.




O prestígio de C. L. Franklin – diziam que tinha uma voz que valia milhões, e o reverendo empregava-a proveitosamente nos seus sermões, tão apreciados que começaram a ser difundidos na rádio e gravados em disco – atraiu também a sua casa alguns dos cantores mais envolvidos na luta contra a segregação racial, como Harry Belafonte, Mahalia Jackson ou Sam Cooke, com os quais Aretha privou desde muito nova.


"Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra"

“A música é a alma do movimento”, escreveu o próprio Luther King. E tendo em conta o seu contexto familiar e o seu precoce e extraordinário talento como cantora, Aretha Franklin estava destinada a tornar-se, também ela, um ícone (apetece acrescentar “natural”) da luta pelos direitos civis. Mas se indiscutivelmente o foi, acabou por devê-lo menos ao seu efectivo activismo juvenil do que ao facto de a sua versão de Respect, um tema de Otis Redding que gravou em 1967, se ter transformado do dia para a noite não apenas num hino feminista, mas também num protesto contra a discriminação racial.



Uma circunstância que a cantora garante não ter pretendido ou antecipado, mas que resulta quer das cirúrgicas alterações que ela e a sua irmã Carolyn introduziram na letra original, quer da intensidade da sua interpretação, que transformaram mais uma canção sobre o homem que trabalha no duro para trazer dinheiro para casa, e apenas exige em troca que a mulher o respeite, numa espécie de grito de guerra que captava exemplarmente o sentimento de urgência de um tempo de mudança.




Respect foi lançado em 1967, num país onde se sucediam as manifestações contra a guerra do Vietname, dezenas de milhares de hippies convergiam para São Francisco, o epicentro do tsunami psicadélico, as lutas pela igualdade de género davam os primeiros passos e os motins raciais incendiavam as cidades americanas: os mais violentos ocorreram precisamente na Detroit de Aretha Franklin, onde no final de Julho desse ano morreram 43 pessoas e centenas ficaram feridas.


A change is gonna come, previra Sam Cooke em 1963, na canção que escreveu após ter sido impedido de entrar num hotel só para brancos. Times they are a changin’, confirmaria Bob Dylan no ano seguinte. Mas em 1967 ainda havia muito por mudar: I Never Loved a Man the Way I Love You, o álbum que tinha Respect como tema de abertura, fora já lançado há alguns meses quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou a histórica decisão de considerar inconstitucional toda a legislação estadual que proibisse os casamentos inter-raciais.




"O Dr. King mudou a minha vida"

I Never Loved a Man the Way I Love You, primeiro álbum da cantora na Atlantic Records, teve um extraordinário sucesso – em Maio, o single Respect já estava no topo dos mais vendidos – e consagrou Aretha Franklin como uma das grandes cantoras do seu tempo. Quando esta regressa a Detroit, a 16 de Fevereiro de 1968, para actuar no Cobo Hall, é já uma estrela mundial. O concerto, ao qual assistirão 12 mil pessoas, é de tal ordem que o presidente da Câmara não se contém e institui logo ali a data de 16 de Fevereiro como o “dia de Aretha Franklin”. Mas a subida ao palco que causou maior impacto não foi a sua, antes a de Martin Luther King, que voou propositadamente para Detroit para entregar à cantora um prémio em reconhecimento do seu contributo para a definição da identidade afro-americana.

ILOVEARETHAFRANKLIN

O líder do movimento dos direitos civis é assassinado meio ano mais tarde, em Abril de 1968, e é Aretha Franklin quem canta no seu funeral o hino Take my hand, precious Lord. “Era um dos seus favoritos, e pedia-me sempre que o cantasse quando viajávamos juntos”, justificará mais tarde.


Em Agosto desse ano, já depois do assassinato de Robert Kennedy, em Junho, Aretha Franklin cantou o hino dos Estados Unidos na convenção nacional do Partido Democrata que apontaria como candidato Hubert Humphrey, depois derrotado pelo republicano Richard Nixon. Militante do Partido Democrata, a cantora estará também na gala da tomada de posse de Jimmy Carter, em 1977, a interpretar God bless America.



Ao longo da vida, Aretha Franklin apoiará de muitas formas, incluindo financeiramente, a luta contra a discriminação dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas nunca foi, como ela própria sublinhará repetidamente, uma activista no sentido mais estrito. “Não estava na linha da frente”, diz numa entrevista à CNN em 2015. O que não impede que tenha sido considerável, e desde cedo reconhecido, o papel que a sua música e a sua personalidade desempenharam na luta contra o racismo e o sexismo. E se a cantora sempre procurou relativizar esse impacto é talvez por estar mais segura do movimento inverso: “Por causa do Dr. King e do movimento dos direitos civis, a minha vida mudou para sempre”, afirma numa entrevista de 2014.




Em 2005, George W. Bush atribui-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração civil do país. Nesse mesmo ano faz questão de cantar no funeral de Rosa Parks, veterana da luta contra a segregação racial, a mulher negra do Alabama que, 50 anos antes, em 1955, tivera a coragem de recusar-se a ceder o seu lugar a um branco num autocarro.

Em 2009, Aretha Franklin canta My country ‘tis of thee na tomada de posse do primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, actuação que depois evocará na já referida conversa com Al Sharpton: “Foi espantoso ver aquelas vagas de gente até onde a vista alcançava, sabendo o que significava aquele momento histórico.”



Obama voltará a ouvi-la ao vivo em Dezembro de 2015, e dessa vez não conseguiu conter as lágrimas. O presidente assistia à gala anual de atribuição dos prémios de carreira do Kennedy Center, em Washington, e um dos artistas homenageados era a cantora e compositora Carole King, co-autora de (You make me feel like a) Natural woman. Sem que King ou os restantes convidados soubessem, pediram a Aretha Franklin que subisse ao palco para interpretar essa canção, que esta gravara e lançara em 1967 e que se tornaria um dos seus temas mais conhecidos. Dando provas de uma vitalidade prodigiosa, e que torna ainda mais pungente a rapidez com que a sua saúde depois declinaria, a cantora de 73 anos deitou verdadeiramente a casa abaixo. Começou a cantar sentada ao piano, mas depois levantou-se, e quando se libertou do casaco de peles e o atirou para o chão, preparando-se para chegar às notas mais altas, toda a gente se ergueu espontaneamente das cadeiras, a aplaudi-la de pé. Carole King abria a boca de comovido espanto, Obama limpava as lágrimas.



Não foi a última vez que Aretha Franklin subiu a um palco. Em 2016 foi à Casa Branca despedir-se de Barack e Michelle Obama, e antes de começar a cantar resumiu o que tinha a dizer numa frase breve: “I hate to see you go”. A sua derradeira actuação pública, em Novembro de 2017, dedicou-a à luta contra a sida, cantando em Nova Iorque numa gala da Elton John AIDS Foundation.



Mas é a interpretação de Natural woman no Kennedy Center que merece ficar para a história como o seu verdadeiro adeus. Por ser uma actuação espantosa, mas também porque na intensidade das emoções que provocou se adivinha o inextricável efeito conjugado de tudo o que Aretha Franklin foi: talvez a maior de todos os tempos (a Rolling Stone acha que sim), mas também a mulher negra independente, destemida, talentosa, que exigia e impunha respeito, como na canção, e que se tornou para muitos o símbolo vivo das mudanças sociais e culturais que a América atravessou nos anos 60.




Obama disse-o melhor quando tentou explicar a comoção que sentiu no seu camarote do Kennedy Center. “Ninguém encarna tão completamente a ligação entre os espirituais afro-americanos, os blues, o R&B e o rock'n'roll, o modo como a adversidade e o sofrimento são transformados em algo cheio de beleza e vitalidade e esperança. "Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra".



sábado, 11 de agosto de 2018

Sempre que vejo um polícia na rua penso que devia ter trazido a minha escova de dentes porque se calhar vou acabar outra vez na prisão”


Aos 28 anos, Nadya Tolokonnikova já tem uma greve de fome marcada no corpo e um historial de torturas psicológicas que lhe tiram o sono “duas a três vezes por semana”. É impossível esquecer aqueles 21 meses em que esteve presa por causa do mais impactante protesto das Pussy Riot, a “oração punk” de 2012. Apesar de tudo, apesar do medo, a porta-voz do colectivo não vai parar de lutar contra o regime de Putin. Os próximos capítulos acontecem em Paredes de Coura no dia 17, na estreia das Pussy Riot em Portugal.

Nadezhda Tolokonnikova é intensa. Fala rápido, mas sem descarrilar. Ri-se muito, com um nervoso miudinho. É uma pugilista das ideias. Talvez não pudesse ser de outra maneira, depois de ter sofrido “tortura psicológica” na colónia penal de mulheres IK-14, na Mordóvia, onde esteve vários meses a coser uniformes durante 16 horas por dia e a ver prisioneiras a serem castigadas por causa dela, porque “falava com advogados” (“dividir para reinar”, sintetiza). Talvez não pudesse ser de outra maneira, depois de ter visto reclusas a levarem porrada, depois de ter feito uma greve de fome para denunciar as condições sub-humanas da prisão, depois de lhe terem dito que “era uma péssima mãe porque tinha sido presa”.

Nadezhda Tolokonnikova

Nadya, co-fundadora e porta-voz das Pussy Riot, não pára de nos dizer coisas que preferíamos que não fossem verdade – como os pesadelos que tem “duas a três vezes por semana” por causa dos 21 meses em que esteve presa, tudo porque no dia 21 de Fevereiro de 2012 ela e as amigas Pussy Riot decidiram ocupar o altar da Catedral de Cristo Salvador, em Moscovo, munidas de balaclavas coloridas, danças frenéticas de punho esquerdo bem erguido e uma canção de protesto contra o regime autocrático de Vladimir Putin e a sua problemática aliança com a Igreja Ortodoxa russa. Freiras em pânico, crentes perplexos, funcionários da catedral a tentar controlar a situação, e aquelas mulheres a não ficarem caladas – o punk desceu à terra, aleluia.

Punk Prayer – a canção, a performance, a guerrilha pop – tornou-se viral e, por causa dela, as Pussy Riot tornaram-se num assunto de Estado. Três das activistas do grupo que ergueram esta “oração punk”, Nadya, Maria Alyokhina (Masha) e Yekaterina Samutsevich (Katya), foram condenadas a dois anos de prisão por “hooliganismo e incitamento ao ódio religioso”. Durante o mediático julgamento, estavam dentro de jaulas de vidro, mas sorriam. Ocasionalmente, praticavam essa coisa muito millennial chamada resting bitch face quando ouviam algum absurdo sobre o caso (e ouviram muitos). Eram desafiadoras. Falavam sobre o sabor da liberdade. Sobre feminismo, sobre os direitos LGBTQ. Tinham 20 e poucos anos e pareciam inabaláveis.


Aos 28 anos, Nadezhda Tolokonnikova, co-fundadora e porta-voz das Pussy Riot, já tem um longo e recheado currículo de activismo. Continua na lista negra de Putin

A internet perdeu-se de amores por elas, o caso explodiu nos mediainternacionais. Vários grupos de direitos humanos tentaram fazer pressão junto do Kremlin. A Rússia dividiu-se. Cirilo I, Patriarca da Igreja Ortodoxa russa, disse que as Pussy Riot “faziam o trabalho do demónio” e que o feminismo “podia destruir a pátria”. Alguns fiéis ortodoxos, os que perceberam que o alvo das críticas do colectivo era a estrutura política do país e não a religião per se, pediram clemência. No meio disto tudo, Putin provavelmente perdeu umas boas horas de sono. E aproveitou para apertar com algumas leis altamente conservadoras.


Entretanto, a iconografia Pussy Riot começava a ganhar terreno. As balaclavas coloridas multiplicavam-se nos protestos de solidariedade, online e offline. Peaches fez a canção Free Pussy Riot, palavras que Madonna exaltou em cima do palco, escritas nos seus próprios braços. A t-shirt que Nadya usou durante o julgamento, onde tinha estampado o grito anti-fascista “¡No pasarán!”, foi reproduzida e vendida em sites como a Amazon (ninguém escapa ao capitalismo…). Em Dezembro de 2013, Nadya e Masha foram libertadas mais cedo do que o previsto (Katya já tinha saído da prisão em 2012), na sequência da aprovação de uma amnistia pelo Parlamento Russo, vista como uma manobra de charme pré-Jogos Olímpicos de Sochi destinada a estancar a torrente de críticas internacionais sobre a violação dos direitos humanos e da liberdade de expressão na Rússia.

Quatro anos e meio e mais umas quantas detenções arbitrárias depois, as Pussy Riot estreiam-se em Portugal no festival Paredes de Coura, dia 17 no palco After Hours, pelas 2h. Do elenco rotativo de músicos e artistas que compõem o colectivo, em palco estarão três ou quatro representantes, incluindo Nadya – a única cujo nome pode ser revelado publicamente por motivos de segurança. Aos 28 anos, já tem um longo e recheado currículo de activismo. Continua na lista negra de Putin. Continua a ser vigiada pelas autoridades (ao telefone, de um número privado, diz-nos que “afinal não é seguro falarmos por Skype”, como estava combinado). 



“Será que mudámos alguma coisa?”, interroga Nadya durante a conversa, numa espécie de exercício de auto-avaliação. Suspira. “Não sei. Não temos instrumentos para medir isso verdadeiramente, mas pessoas mais novas do que eu vieram ter comigo depois de eu ter saído da prisão e disseram-me que nós tínhamos sido fundamentais para despertar o interesse deles em política.” Para Nadya, o latejante activismo político das novas gerações foi o que mudou para melhor na Rússia. E a FSB, agência sucessora do KGB, não os larga. “Neste momento há um processo judicial terrível, chamado New Greatness. Um grupo de jovens falou sobre política e criticou o governo num chat, e também quando estavam juntos no McDonald’s. Foram parar à prisão simplesmente por falarem”, conta a artista. Uma dessas jovens é Anya Pavlikova, presa uns dias antes de fazer 18 anos e a quem as Pussy Riot dedicaram uma das suas últimas canções, Unicorn Freedom, lançada juntamente com uma carta aberta publicada no Facebook onde exigem a libertação de Anya, dos outros adolescentes e do cineasta e preso político ucraniano Oleg Sentsov, há quase 90 dias em greve de fome numa colónia penal russa.

“Acho que a razão pela qual eles prenderam a Anya é bastante clara: querem intimidar os jovens desde muito cedo. Mas eles não se deixam intimidar. Acredito que o Putin está a ser muito insensato ao tentar controlá-los, porque eles vão arranjar novas formas de o confrontar”, declara Nadya, que considera esta nova geração “mais madura e mais corajosa” do que a dela. “A minha filha, por exemplo: eu não vejo medo nela. Ela tem dez anos, mas de certeza que vai ser politicamente activa. Ouve-nos a falar sobre política a toda a hora cá em casa e diz mal do Putin o tempo todo!”


A banda de punk russa teve suas integrantes presas em 2012.


Pugilista das ideias

As Pussy Riot nasceram em 2011 como um ramo do colectivo anarco-artístico Voïna. Foram influenciadas pelo movimento musical feminista riot grrrl, têm dois álbuns – In Riot We Trust saiu no ano passado –, vão lançando canções soltas entre o punk, a electrónica, o hip-hop e a pop, mas a verdade é que nunca se assumiram apenas como uma banda. A música é só mais um veículo de intervenção e insubordinação. Não é isso que as distingue. Nas entrevistas, Nadya prefere falar sobre política. O momento impõe-se, há demasiadas perguntas a fazer. Numa altura em que surgem cada vez mais líderes políticos antidemocráticos, dentro da Europa e fora dela, Nadya confessa-se “preocupada” com essa “tendência perigosa”. Uma tendência tantas vezes apoiada pelo governo russo.

Nadezhda Tolokonnikova

“Sei exactamente o que é viver num regime autocrático há 18 anos. Sei exactamente como é que a paisagem política de um país vai ficar se não há meios de comunicação independentes. Sei exactamente o quão esmagador é ter os dissidentes políticos no underground, na prisão, agredidos ou mortos”, assinala a activista, que depois de ter saído da prisão criou, com a colega Masha, o site de notícias MediaZona e a Zona Prava, uma organização de defesa dos direitos dos encarcerados em prisões russas.

Já não são apenas anti-Putin, são também anti-Trump – e pegando num dos assuntos quentes da actualidade, Nadya acredita que a Rússia interferiu de facto nas eleições americanas, ajudando Donald Trump a vencer. “Acho altamente provável que tenha sido algo coordenado entre os dois. São o tipo de bad guysque gostam de decidir tudo por debaixo da mesa, que não acreditam no direito de voto e na cidadania. Acreditam que têm cérebro – supostamente [risos] –, poder, dinheiro e que podem decidir por toda a gente.”


Nadya tem resposta para tudo na ponta da língua. Parece divertir-se genuinamente a falar sobre política. Há aqui qualquer coisa de inteligência selvagem, um radicalismo na recusa. Mas também há o medo. “Tenho medo de muitas coisas. Estive em negação em relação aos meus medos durante algum tempo depois da prisão, mas percebi que tenho de enfrentá-los”, confessa Nadya. “Sempre que vejo um polícia na rua penso que devia ter trazido a minha escova de dentes porque se calhar vou acabar outra vez na prisão.”

A política russa, diz, “é neste momento muito baseada no medo”. Provavelmente é essa a explicação para o facto de a invasão de campo protagonizada por elementos das Pussy Riot na final do Mundial de Futebol ter sido o único statement significativo contra o regime feito durante toda a competição. “O governo russo tomou medidas sérias de vigilância. A polícia segue literalmente todos os teus passos. Há uma coisa a que chamam de ‘detenção preventiva’: sais de casa e podes ser preso porque eles acham que poderás ir a um protesto, sem nunca teres feito nada”, explica a activista, que em Outubro irá lançar o livro Read & Riot: A Pussy Riot Guide to Activism.

Yekaterina Samutsevich

Ao contrário do que imaginávamos, os advogados das Pussy Riot, ligados ao Agora International Human Rights Group, dificilmente conseguem prever todas ramificações e consequências legais dos protestos do colectivo. “Nós discutimos essas coisas constantemente, mas estamos conscientes de que é muito complicado prever o poder de reacção a uma ou outra acção, porque nesta altura do campeonato já não é uma questão legal”, aponta Nadya. “O Putin vai decidir o que quer. Vai inventar leis, se for preciso.”

Apesar dos riscos, elas continuam de punho erguido. Apesar de ver a vida a andar para trás sempre que encontra um polícia na rua, Nadya Tolokonnikova não quer trocar a Rússia por outro país. “É a minha cultura. Apesar de todos os problemas, é um país que produz arte incrível, literatura incrível, e eu não quero dar tudo de mão beijada ao Putin e aos amigos dele. Quero mudar alguma coisa.”

Marcha das Mulheres: resistência, política e humor

Marcha das Mulheres: resistência, política e humor |

O desafio de um grupo de mulheres apareceu nas redes sociais e a resposta foi avassaladora: 673 marchas no mundo inteiro em nome dos direitos humanos, da justiça social, da igualdade, da tolerância, da paz. O que se viu e sentiu a 21 de Janeiro foi a cumplicidade que se politiza para resistir.
No sábado 21 de Janeiro de 2017, foram 175 mil as pessoas que se juntaram no mais antigo jardim público dos EUA, no centro de Boston. Foi mais uma das 673 “marchas-irmãs”, que se organizaram por todo o mundo para acompanhar a principal, que teve lugar na capital norte-americana, em Washington D.C., um dia depois de Donald J. Trump se ter tornado Presidente.

Por tudo aquilo que a América de Trump pôs em risco, marchar marchar

O movimento Women's March (Marcha das Mulheres) nasceu de baixo para cima, pouco depois da eleição de 8 de Novembro de 2016 que surpreendeu grande parte da América com a vitória de Trump. Tal como as raízes das ervas que nascem da terra, é um movimento de base, politizado mas não partidário, que partiu da vontade de acção de cidadãos comuns – neste caso, de mulheres comuns – construírem uma democracia participativa. Um pequeno grupo de desconhecidas lançou o desafio através das redes sociais. A resposta foi avassaladora e a prova disso foi aquilo que aconteceu em Washington, nos Estados Unidos e no mundo inteiro no dia 21 de Janeiro e levou milhões de pessoas a saírem de casa para, unidas, se manifestarem. Já é considerada a maior manifestação que alguma vez aconteceu no país. Nenhuma rede social teria substituído a força da presença humana. Mas não chega. E a partir daqui tudo regressará às redes sociais onde nasceu – a marcha foi apenas o primeiro passo de muitas acções e iniciativas no sentido de dar continuidade ao espírito, às ideias e políticas da Women's March.



O que é que defendem as pessoas de todas as idades e origens étnicas – mulheres, sobretudo, mas também, homens, crianças – que no sábado se juntaram no centro de Boston e em tantos outros lugares? As únicas palavras que poderiam reunir a multiplicidade de causas são os direitos humanos, a justiça social, a igualdade, a tolerância, a paz.Todos valores que se sentiram postos em causa pelas palavras e políticas anunciadas por Donald Trump durante a intensa campanha eleitoral e que se viram, realmente, ameaçados pela sua eleição. Aquilo que se tornou visível nas milhares de frases escritas à mão em cartazes, folhas de papel, cartões reciclados, erguidos por entre a multidão de cabeças (cor-de-rosa) foi precisamente essa diversidade de ideias e causas. Os cartazes diziam coisas diferentes, mas todos dialogavam uns com os outros. “Women's rights are human rights”, defender os direitos das mulheres é defender os direitos humanos e vice-versa. Os benefícios para uns são os benefícios de todos.


No dia 21 de Janeiro, defenderam-se os mais frágeis e marginalizados, os “ilegais”, os imigrantes ameaçados pela deportação devido às novas políticas, as mulheres vítimas de violência, o planeamento familiar, os direitos LGBT, as pessoas com deficiência, tal como os direitos reprodutivos ou a desigualdade salarial entre homens e mulheres, ainda tão tolerada nos Estados Unidos como noutros lugares do mundo democrático. “Trabalho igual/salário igual.” Contra o racismo, a desigualdade, a discriminação e a intolerância. “Em vez de muros construam-se pontes”, lia-se em vários cartazes. São múltiplos os cruzamentos entre as diferentes esferas, da justiça à igualdade ou à ecologia. E mesmo que algumas pessoas se sintam mais identificadas com umas causas do que com outras, cada vez existe mais consciência de como todas se cruzam.



Esta foi sem dúvida uma marcha “interseccional”, em que muitas causas se juntaram, na sua pluralidade e diferença. “Interseccionalidade” é uma palavra difícil, muito usada nos estudos de género, que quer apenas dizer que há muitos aspectos das nossas identidades que se cruzam, que estão interligados e são indissociáveis uns dos outros. Um feminismo “interseccional”, por exemplo, reflecte sobre os cruzamentos entre género e raça, entre género e orientação sexual, ou entre género e meio social. Muitas das questões que afectam uma mulher negra norte-americana pobre, sem educação superior e sem um seguro de saúde são semelhantes às de uma mulher branca em iguais condições. E são muito diferentes dos desafios de uma mulher afro-americana que tenha estudado em Yale, talvez até graças às políticas de quotas em vigor para tentar combater a enorme desigualdade racial que ainda afecta o acesso às universidades de prestígio. Mas estas duas mulheres, negras, também têm identidades comuns. Como já disse o ex-Presidente Barack Obama, se ele tivesse tido um filho rapaz, teria todos os privilégios de afecto, educação e condições materiais, mas seria muito parecido com aqueles rapazes negros e não armados que têm sido mortos por polícias em vários lugares dos Estados Unidos. E ao andar na rua a pé, a cor da pele seria a mais visível das suas identidades.


As políticas de identidade implicam que as pessoas assumam os aspectos das suas identidades que as podem tornar mais vulneráveis ou alvo de discriminação, óbvia como inconsciente. Ex-alunos da Harvard Business School, negros, contaram ao jornalista Ellis Cose, também negro, porque é que evitaram as políticas de identidade: “Uma chave para o sucesso de uma pessoa que não seja branca nem do sexo masculino é nunca falar de raça ou de género a não ser para declarar que a raça e o género não têm relevância nenhuma.” Na ironia destas declarações está a versão simplificada das atitudes possíveis. Fingir que é uma não-questão ou – como aconteceu na Marcha das Mulheres – declarar bem alto que existem diferentes identidades. E que para que não sejam motivo de discriminação ou de desigualdade é preciso falar nelas.


Para muitos, no sábado, dia 21, era a primeira vez que viviam algum tipo de activismo. Muitas das mulheres presentes nunca se tinham sentido envolvidas nas causas dos “direitos das mulheres”, muito menos participado numa manifestação. Num New York Times de há uns dias, um artigo acompanhava um grupo de mulheres no seu primeiro ritual de passagem feminista. Altas funcionárias em Wall Street, em Nova Iorque, da finança à advocacia, tinham crescido profissionalmente a tentar que a sua identidade de género passasse despercebida. Já chegava serem poucas num mundo dominado pelo masculino, onde qualquer posição antidiscriminatória poderia catalogá-las de “feministas”. A palavra, afinal, não é apenas incómoda para muitos homens, mas para muitas mulheres, que temem, e não por acaso, que as suas conotações negativas perturbem a sua afirmação pessoal. Algumas colegas de Wall Street não foram a Washington por temerem repercussões profissionais ou de clientes apoiantes de Trump. Mas muitas partiram, aos milhares, em autocarros, de Nova Iorque (a cidade onde Trump fez toda a sua carreira de homem de negócios, mas onde poucos votaram nele), para a capital do país, Washington, onde se juntou quase um milhão de pessoas.
Black Lives Matter: Há vidas que valem mais do que outras


Uma das causas da Marcha das Mulheres, também muito presente nos cartazes, foi o movimento Black Lives Matters (http://blacklivesmatter.com), criado em 2012, que muitos consideram uma segunda vaga do movimento de direitos cívicos que teve em Martin Luther King a sua principal figura. Mas, agora, à palavra “matter” – “importa"/"interessa” – associaram-se novas palavras: “Muslim women matter”, “Illegal immigrants matter”, “Transwomen matter”.

Inspirados na mais icónica imagem gráfica de Obama e com uma legenda a dizer “We the people”, viam-se reproduzidos por todo o lado três retratos a representar três tipos de mulheres americanas: num deles, uma mulher com a cabeça coberta por um véu com a bandeira americana representava as mulheres muçulmanas; no outro, uma menina afro-americana; e no terceiro, uma mulher “latina”, em nome da comunidade que mais tem crescido nas últimas décadas nos EUA, e aquela que está mais fragilizada em muitos aspectos, pela ilegalidade como pela pobreza. Um homem levantava o seu cartaz feito à mão: “Make America IMMI-great again”. 


Os oitos anos da presidência de Obama foram, sem dúvida, um sinal de força e de esperança para os afro-americanos e para todos aqueles que acreditam na possibilidade da igualdade, mas os problemas raciais nos Estados Unidos continuam a ser muitos e a afectar demasiados. O movimento Black Lives Matter tem muitas razões para continuar vivo. As vidas negras continuam a valer menos. Um estudo recente revelou como nos Estados Unidos morrem muito mais mulheres negras do que mulheres brancas com cancro de colo de útero. As razões, claro, são múltiplas e começam logo no acesso aos cuidados de saúde, da prevenção ao tratamento, um assunto especialmente delicado que foi uma das principais batalhas de Barack Obama. Mas as provas mais gritantes desta desvalorização estão nos nomes e números daqueles que têm sido mortos pela polícia porque estão a passar na rua, porque é noite ou porque é dia. E porque a cor da pele é vista como uma ameaça que legitima o abuso da força e do gatilho das autoridades. E voltamos ao hipotético filho de Obama. Igual a muitos dos que têm sido injustamente maltratados por alguns membros das forças policiais.


Este é apenas o lado mais visível da discriminação racial nos Estados Unidos contemporâneo. O mais invisível é aquele que está atrás das grades ou mesmo em celas de isolamento, daquelas que só associamos a ditaduras de países distantes ou a tempos históricos remotos. Ironicamente, fala-se mais deles quando são mortos do que quando estão vivos mas não têm voz. A encarceração maciça de homens negros nos Estados Unidos, o país do mundo com a maior percentagem da população presa, pode ser vista como uma nova forma de escravatura. Este é o principal argumento do recente documentário produzido pela Netflix, 13th, realizado por Ava DuVernay, uma mulher afro-americana. Quem quiser saber mais poderá ler os impressionantes artigos de investigação que têm saído nos últimos tempos na revista New Yorker ou no jornal New York Times. O racismo do sistema judicial norte-americano pode manifestar-se em várias fases: do momento em que um homem negro é apanhado numa rusga policial e não tem dinheiro para contratar um advogado ou para pagar uma caução, e os 30 anos que ele poderá passar na prisão, em condições inumanas, para muitas vezes sair sem culpa provada. Ou mesmo depois, já livre, quando mesmo inocente, fica impossibilitado de votar. Para sempre. Depois de Obama, o movimento Black Lives Matter é mais necessário do que nunca, num país onde a geografia da escravatura continua a marcar as rotas e territórios do racismo contemporâneo. No sábado, dia 21, também voltou a marchar nas ruas. Racismo e sexismo cruzam-se de inúmeras formas. Faz todo o sentido que os activismos que os contestam também andem de braço dado.


Há outras vidas que importam mas sobre essas notei um inquietante silêncio. Talvez porque ninguém acredite nas possibilidades de uma mudança real. Refiro-me às vítimas da pena de morte, ainda efectiva em tantos estados do país, e às vidas daqueles que são mortos pelos tiroteios em massa que, de quando em quando, relembram ao país a sua estranha forma de se relacionar com as armas. Barack Obama bem tentou durante oito anos mexer num dos maiores tabus americanos, salvaguardado na Constituição, mas as resistências foram demasiadas, do Partido Republicano à National Rifle Association (NRA), que defende o fácil acesso a armas e que tem em Trump um grande adepto. Em Boston, apenas vi um cartaz a tocar na ferida: “Gostava que este país se preocupasse tanto com os meus direitos como se preocupa com as suas armas”, acompanhado do desenho de um círculo sobre uma cruz, o símbolo astrológico do planeta Vénus, que foi apropriado nos anos 1960 pelo movimento feminista, tornando-se o mais icónico dos seus símbolos.




Humor e activismo: criatividade escrita à mão

“I cannot believe I still have to protest this shit!”, diziam vários cartazes. Afinal, pensávamos que estes direitos já estavam mais do que adquiridos. Os movimentos de mulheres dos anos 1970, como os movimentos contra a discriminação racial, o “civil rights movement”, dos anos 60, já estão de facto arrumados nos manuais de história dos adolescentes norte-americanos. Mas foram muitos desses mesmos adolescentes que – à hora a que o Presidente Trump fazia o juramento na sexta-feira, dia 20 – saíram das aulas em uníssono e se dirigiram para as praças públicas para manifestarem o seu desagrado. Adolescentes, bebés, crianças, muitas, aprendiam com os pais e avós a linguagem do activismo, vivido em comunidade e de modo pacífico. A ausência, visível, de polícia favorecia o ambiente descontraído. Uma menina negra, de uns dez anos, usava uma cartolina como um colete, “I am a feminist”, pintada com lápis de cor. Uma menina branca de cinco, seis anos pintara “Eu gosto da Hillary, P.S.: e de cães.” O cartaz de um rapaz adolescente repetia o título da famosa TED Talk, depois transformada em livro, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie – “We should all be feminists.”

Olhando à volta, via-se a massa humana, mas também um mar de cartazes – criatividade, originalidade e individualidade – onde cada pessoa tinha posto, em poucas palavras ou num desenho, aquilo que queria dizer publicamente. Palavras escritas. Não nas redes sociais, mas ao vivo, feitas à mão e partilhadas numa marcha em que a cumplicidade foi o sentimento de ordem. Um casal branco, alto e elegante, de mais de 70 anos, empunhava: “Still marching after all these years” com uma fotografia – dela? – numa manifestação feminista na década de 1970. O Still crazy after all these years, de um dos ícones da época, Paul Simon, transformado numa constatação, triste e irónica. Sim, ainda há razões para estarmos aqui.


Barbara Lee, uma filantropa próspera de Boston, muito envolvida politicamente, usava uma faixa original das sufragistas do princípio do século XX – “Votes for Women”. Tem esperança – ainda – de ver uma mulher na presidência dos Estados Unidos. Muitas mulheres e alguns homens, de várias gerações, subiram a uma plataforma para falar, da senadora Elizabeth Warren ao presidente da Câmara de Boston, Martin J. Walsh. Mas o que esta marcha revelou, sobretudo, foram os milhares de voluntários, mulheres, e também homens, que dedicaram muito do seu tempo nos últimos meses a preparar este movimento de pessoas “normais”, politizadas mas não políticas. E que agora continuam activas.


Algumas frases vinham de outros momentos históricos mas soavam ainda estranhamente contemporâneas. “Feminism is the radical notion that women are people”, “Smash the Patriarchy”, “The future is female”. Outras falavam ao presente numa paródia onde a frase original era subvertida do seu significado: “A woman's place is in the house, the senate, and the oval office!” Alguns homens levavam cartazes com setas apontadas em todas as direcções “Eu estou com ela, com ela e com ela”. Ou seja, com os milhares de “elas” que o rodeavam. Afinal, como também se lia, “Men of quality, don't fear equality” ou “I'm a man, I stand with women, does this disqualify me for president of the US?” Os homens, aliás, estavam por todo o lado – pais, avós, namorados, maridos, amigos, filhos. Alguns caminhavam de mãos dadas. Afinal, os objectivos dos movimentos LGBTQI estão também ameaçados pelas novas políticas, e isto quando só há um ano e meio, no Verão de 2015, é que o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou constitucional.


O Kevin, jovem e giro (sei como se chama, porque toda a gente lhe perguntava o nome), trepou para uma das colunas altas do jardim com um barrete cor-de-rosa e uma bandeira arco-íris, simbólica dos movimentos sociais LGBT. A diversidade de cores estava de facto por todo o lado. Literal e simbolicamente. Na diversidade etária, religiosa, sexual e étnica (mesmo que em Boston dominasse uma maioria branca). Nos barretes cor-de-rosa tricotados à mão, na bandeira multicolor, ou nos cartazes originais de todas as cores. Mesmo na diversidade política. Em Washington algumas apoiantes de Trump foram às cerimónias do Presidente mas ficaram mais um dia, para a das mulheres. Afinal, todos os seres humanos são contraditórios e os resultados eleitorais também – 53% das mulheres brancas votaram nele (as mulheres negras, dizem as estatísticas, foram muito mais sensatas, mas não foram tão eficazes). Apenas um grupo organizado de mulheres manifestou não se sentir integrada na convocatória para a Marcha, aquelas que integram os movimentos anti-aborto e que têm em Trump um grande apoiante. 


A religião também esteve presente. Uma família divertida levava um enorme cartaz “Jesus is a feminist”, um grupo católico empunhava um “Caminhamos com as mulheres do mundo”, uma das igrejas protestantes, no caminho da marcha, tocava os sinos e servia de refúgio para quem quisesse descansar. Muitas frases falavam de direitos humanos, em geral, e dos perigos dos abusos de poder. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, “Não interessa quem somos, merecemos ser bem tratados”, “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça para a justiça em todo o lado”, ou “Se queres saber a verdadeira natureza de um homem, repara na forma como ele trata os seus inferiores, não os seus iguais”, frase posta na boca de uma personagem de Harry Potter, por J.K. Rowling. Esta como outras frases estavam assinadas por nomes simbólicos de movimentos pelos direitos das mulheres, dos negros ou pela paz, de Gandhi a Luther King, Angela Davies e Susan B. Anthony, uma das mais famosas norte-americanas defensoras dos direitos das mulheres e antiesclavagista da segunda metade do século XIX. “Feminism is back by popular demand”, lia-se noutro sítio.




Trump: “Sex offenders cannot live in government housing”

“Os criminosos sexuais não podem viver em edifícios governamentais”, dizia um cartaz a propósito do novo inquilino da Casa Branca. Jane Fonda, que foi à Marcha das Mulheres em LA, trata-o por “Predator-in-chief”. A marcha não era só contra Trump. Havia da parte de múltiplas organizações o empenho em que fosse muito para além disso. Mas claro que também foi contra ele. Foi ele que dominou os cartazes, sob a forma de nome ou em caricatura, até porque, neste caso, o musa inspirou as artistas. Desde as frases mais simples, “Not my president”, “Not in my name”, “Untrump the world”, “Love Trumps Hate”, até ao “Emperor Trump isn't wearing clothes”, “History has its eyes on you” ou o “Make America think again”. “Love not hate makes America great” uma alusão à frase mais abundante dos seus discursos – “Make America great again” via-se escrita, tal como se ouvia, cantada em uníssono.


Um cartaz que provocava gargalhadas em quem passava era o “Free Melania”, uma referência à primeira-dama cujo maior gesto público de emancipação foi não se mudar já para a Casa Branca. Num enorme cartão, Trump dava um beijo na boca de Putin (uma imagem do programa de humor Saturday Night Live, onde o actor Alec Baldwin é ainda melhor do que o caricaturado). Em cima, as palavras “Pussy Riot”, uma alusão ao grupo de rock feminista e russo que se manifestou contra Putin, e pagou o atrevimento com a prisão.

“You’re so vain, I bet you think this march is about you”, dizia um cartaz inspirado na música da Carly Simon. O problema é que também era sobre ele. Muitas palavras escritas respondiam directamente a ideias de Trump – “a ciência não é uma conspiração liberal”, “Não temos um planeta B” ou “As alterações climáticas são reais”. “Nenhum ser humano é ilegal”, li em português, ao longe. O espanhol estava mais presente, a assinalar a gigantesca comunidade latino-americana dos Estados Unidos. O metro de Boston tem tudo escrito em inglês e em espanhol, tal como grande parte da informação oficial em muitos lugares dos Estados Unidos, nas escolas ou nos hospitais. Mas quem lê muitas dessas frases são imigrantes ilegais que temem agora ser deportados. “Say loud, say clear, immigrants are welcome here” foi uma frase muito gritada. O muro que Trump quer construir, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, tornou-se um “muro” metafórico feito para simbolizar todas as formas de opressão. As palavras que usou ao longo de toda a campanha – violentas, discriminatórias, intolerantes – voltaram-se, na marcha, contra ele.


No fim da manifestação, penduraram-se todos os cartazes nas grades do parque de Boston, como numa exposição de arte ao ar livre. Muitos deles a esta hora já foram recolhidos em museus e arquivos históricos, conscientes de estarem a preservar para o futuro a cultura material do presente. O Smithsonian National Museum of American History, em Washington, teve muito que se entreter com os despojos da manifestação-mãe. Em Londres, o Bishopgate Institute lançou logo um apelo para o seu arquivo de história radical e activismo. Fotografias e cartazes de Janeiro de 2017 para uma colecção que começa em 1800. Numa oportuna coincidência, na sexta-feira passada, dia 27 de Janeiro, foi inaugurada em Nova Iorque no International Center of Photography a exposição Perpetual Revolution: The Image and Social Change, que explora os modos como a cultura visual – a fotografia, o filme, o documentário – se têm politizado. É mais uma das várias mostras que nos últimos anos têm explorado as relações entre política, conflito, resistência e imagem. Muitos têm afirmado que a Marcha das Mulheres foi a maior manifestação simultânea e global que alguma vez aconteceu na história. A mais bem documentada visualmente foi de certeza




“Pussy power”: o feitiço virou-se contra o feiticeiro

O humor foi e é uma característica do movimento feminista. As Guerrilla Girls, ligadas às artes, museus e universidades, activas desde a década de 1980, altura em que se constituíram em movimento em Nova Iorque, foram especialmente criativas nos modos de associar feminismo e humor. A apropriação de insultos como uma forma de subversão ao agressor também já foi usada como resistência – “nigga”, reclamado pelos afro-americanos ao insulto racista “nigger”, é apenas um exemplo. Na Marcha das Mulheres, o humor voltou a dominar, dando o protagonismo a uma palavra e a uma história que resumem bem a consideração que Trump tem pelas mulheres. Aliás, talvez tenha mesmo sido essa história aliada ao facto de não o ter impedido de ganhar – em tudo o que isso revela sobre a tolerância colectiva face à violência contra as mulheres – uma das grandes motivações desta Marcha.


A palavra “pussy”, em inglês, tem muitos significados e muitos deles propensos a ambiguidades e duplos sentidos. Quer dizer gato, “pussycat”, mas também fraqueza ou cobardia como características associadas ao feminino. Mas é também uma palavra pejorativa para “vagina” e foi a palavra que Donald Trump usou quando descreveu aquilo que fazia às mulheres sempre que lhe apetecia: “I grab them by the pussy.” “Grab” quer dizer “agarrar”, “pegar”. A violência das palavras de Trump, proferidas há uns anos mas tornadas públicas pouco antes das eleições, teve um enorme efeito perturbador.

Para ele, não passou de uma “conversa de balneário”. Para a sua mulher Melania, não passou de uma “conversa de rapazes”. Para muitas mulheres e homens norte-americanos, no entanto, foi uma “conversa” de um agressor sexual, um homem que abusava do seu poder e que falava com orgulho e banalidade, “entre homens”, dos actos de violência – crimes – que praticava. A brutalidade sexual das palavras que descreviam gestos pôs a América a falar de um assunto vivido por uma quantidade avassaladora de mulheres, de todas as gerações e meios sociais. Surgiram várias que, há 30 anos como há três, tinham sido objecto das suas agressões, mas Trump humilhou-as publicamente e ameaçou-as com processos judiciais, tal como ameaçou Hillary Clinton de a enviar para a prisão.


Na Marcha das Mulheres, o feitiço virou-se contra o feiticeiro e aquilo a que se assistiu foi a uma desforra carnavalesca das palavras – e gestos – do Presidente. “Grab them by the president, it's Powder Room talk”, “This Pussy fights back”, “Try and grab this pussy”, muitas vezes acompanhadas com imagens de gatos. Em Boston, como por essa América fora, viam-se “Nasty women” [mulheres mazinhas] ou “Angry women” [mulheres zangadas] por todo o lado. A primeira expressão foi usada por Trump para insultar Hillary Clinton. A segunda, remete para “angry black woman”, uma expressão sexista e racista surgida na América dos anos 1930, de que Michelle Obama também já foi objecto. O nome de Michelle aparecia aqui e ali. Afinal, foi ela a fazer o mais poderoso discurso contra a forma como Trump falou das mulheres. E é nela que muitos falam quando pensam numa futura candidata à presidência dos Estados Unidos. Mulher e negra sim, mas, para a brigada do antipoliticamente correcto, também inteligente, eficiente e humana.


Mas o elemento mais marcante, entre os milhões de cabeças de pessoas que desfilaram, foi o mar de barretes rosa-choque tricotados à mão. Mais uma vez, a inspiração veio de Trump. O gorro em vez de ser redondo tem duas “orelhas”, uma alusão às orelhas de gato que lhe deram o nome, “Pussycat hats”. É feito à mão, tricotado, uma prática tradicionalmente feminina que assim se vê investida de um novo poder subversivo. É cor-de-rosa – não o cor-de-rosa bebé com que se vestem as meninas à nascença, mas uma cor especialmente forte. “Forte” foi outra das palavras de ordem. O barrete serviu também como símbolo de apropriação dos muitos significados da palavra “pussy”, revertendo-a a seu favor. O insulto transformou-se num instrumento de resistência. A vítima transformou-se na força e na voz. Ainda por cima bem visível naquele cor-de-rosa gritante.


Muitos homens também empunhavam os gorros. Alguns não por opção. As estátuas em bronze dos homens históricos de Boston – as cidades também têm género – estavam todas encapuçadas. Muitos outros, de carne e osso e contemporâneos, também. Como o condutor dos camiões de serviços urbanos. De óculos escuros, colete fluorescente e sentado no tejadilho do camião, além do gorro enfiado na cabeça, segurava um cartaz: “Girls just wanna have fundamental human rights”, mais uma canção, de Cyndi Lauper, a servir de mote ao humor activista. O gorro já está na capa da revista Time, sozinho, e na capa da New Yorker acabada de sair. Na cabeça de uma mulher negra, reinventa o cartaz de 1943 que incentivava as mulheres operárias a aumentar a produtividade em tempos de guerra e que só na década de 1980 foi apropriado por movimentos feministas.
O tamanho, afinal, também é importante: multidões nos sítios certos


Um homem desfilava na marcha de Boston com um enorme cartaz cor-de-rosa – “Hey, Donald look where I found your inauguration crowd!” – e despertava sorrisos por onde passava. O principal tema das notícias nos telejornais norte-americanos no dia 21 de Janeiro, primeiro dia de Trump na presidência, versava sobre “multidões”.

Por um lado, as multidões evidentes das Women's Marches, quase 500 mil em Washington, muitos milhares em Chicago, Boston, Nova Iorque, mas também Denver, Austin, capital do Texas, ou até no Alasca. Por outro lado, a ausência de multidões nas cerimónias de inauguração de Donald Trump, tornadas visíveis numa imagem dupla que se tornou viral nas redes sociais. Do lado esquerdo, uma fotografia aérea das multidões que foram a Washington para a inauguração presidencial de Obama em 2009. No lado direito, a imagem da inauguração de Trump, a deixar em evidência os espaços vazios. A questão aqui não foi a da legitimidade da imagem ou a relevância dos números, mas sim a da importância que lhe foi dada pelo novo gabinete de imprensa da Casa Branca que a julgou merecedora da sua primeira aparição pública.


A questão do tamanho das multidões talvez não seja assim tão importante. Afinal, quem votou em Donald Trump não foi em massa às cerimónias de inauguração. E quem não votou nele, e se opõe àquilo que ele representa, foi, sim, para as ruas, participar nas quase 700 marchas de mulheres que aconteceram em todo o mundo. A questão determinante agora é a de saber qual o tamanho das multidões que as suas políticas irão afectar de forma negativa. Quantos irão perder o direito a cuidados de saúde e a uma morte digna? “Obama cared” dizia um cartaz. Quantos serão deportados por ser ilegais? Quantos imigrantes deixarão de se reunir com as suas famílias? Quantas mulheres não sofrerão com a ameaça do novo Governo em cortar os apoios às organizações de apoio a vítimas de violência doméstica? Quantos muçulmanos serão impedidos de entrar nas fronteiras norte-americanas? Quantos homens negros é que irão para a prisão injustamente (ou serão mortos a tiro pela polícia) no afã de limpeza da pobreza urbana? Quantas mulheres perderão o direito ao planeamento familiar acessível ou aos direitos reprodutivos? Quantas pessoas serão afectadas pela desvalorização das políticas ambientais? Quantas mulheres não verão posta em causa a igualdade salarial com argumentos de produtividade industrial? Quantos investigadores verão o seu trabalho posto em causa por quem não acredita na ciência e acha Barack Obama um “académico” (em oposição ao suposto “realismo” do homem de negócios)? E quantas mais mulheres terão de ser “grabbed by their pussies” e transformadas por Trump em patéticas invenções da imprensa? Essa imprensa – o New York Times, o mais demonizado – que ele menospreza, como um bando irresponsável de desonestos.


Uma coisa é certa, aquilo que aconteceu no dia 21 de Janeiro reconciliou-me com a América. Vi e senti na rua aquilo que já se intuía desde o dia 9 de Novembro, um dia depois de acontecer o que tantos julgavam ser impossível. Hillary Clinton não ganhou mas há uma América que reagiu ao choque e que se está a mexer, a associar, a politizar e que vai resistir. Do desespero ao envolvimento. Em prol dos direitos humanos, da igualdade, da justiça social. A vitória de Trump teve esse, único, benefício, de politizar, nas bases, aqueles que de outra forma não o teriam feito. No seu discurso de despedida em Chicago, no dia 10 de Janeiro, o Presidente Barack Obama encorajou "o povo" à acção. Mas as mulheres já tinham respondido ao apelo de cidadania activa.



Trump não está a perder tempo. A primeira semana de trabalho já fez muitos estragos. Num dia começou a desmantelar o programa de saúde acessível que Obama conseguira montar com tanto custo. No outro, viu-se livre dos refugiados e começou a tratar da construção do muro. O website da casa branca já retirou referências a alterações climáticas, direitos cívicos e violência contra as mulheres. Mas do outro lado, também não estão a perder tempo. 21 de Janeiro foi o dia da solidariedade, do optimismo, dos contactos, da criação de novas redes e ideias, mas foi no regresso a casa que o verdadeiro trabalho começou. Um dia depois da Marcha das Mulheres, a organização anunciou logo as 10 acções a serem postas em prática nos próximos 100 dias. Podem lê-las em: