Marco Vaza 25 de Junho de 2022
O Maracanaço está gravado na memória colectiva dos brasileiros, tal como as memórias da ditadura militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. A unir as duas memórias, um nome, Augusto da Costa, o defesa do Vasco da Gama que capitaneava essa selecção feita maldita pela história, polícia de profissão que, mais tarde, se tornou um agente da censura ao serviço da ditadura. Entre estes dois momentos, ainda foi treinador em Portugal, no Belenenses, mas nem no Restelo teve “festa bonita, pá”, como cantou Chico Buarque em “Tanto Mar” a propósito da Revolução dos Cravos a 25 de Abril de 1974 – uma música que se viria a cruzar com Augusto da Costa, mas já lá iremos.
Antes de tudo, Augusto da Costa nasceu a 22 de Outubro de 1920 no Rio de Janeiro, filho de portugueses. Aos 15 anos, entrou para as equipas juvenis do São Cristóvão, e começou por ser aprendiz de ponta-esquerda antes de recuar para a “zaga” e ganhar protagonismo, ao ponto de chamar a atenção do Vasco da Gama, que o contratou em 1945.
Augusto, apresentado num artigo da revista Sport Ilustrado como o “perfeito profissional de futebol”, fez parte de uma grande equipa cruz-maltina que ficou conhecida como o “Expresso da Vitória” – cinco vezes campeã carioca e campeã sul-americana de clubes em 1948. O “zagueiro”, que era polícia de profissão, era o capitão, cumprindo até 1953, ano em que terminou a carreira, 311 jogos pelo Vasco e sem nunca ter sido expulso.
Também ganhou lugar na selecção brasileira, onde também seria o capitão. Aquele jogo fatídico no Maracanã (que não era uma final, mas que decidia o título) seria o último dos 20 jogos que fez. O defesa vascaíno até já se tinha imaginado com a taça na mão, como contou mais tarde num depoimento ao jornalista Geneton Moraes Neto no livro “Dossier 50”.
“A cena já estava toda pronta na minha imaginação. O jogo terminava. O Brasil, absoluto, ganhava fácil do Uruguai. A gente se perfilava no gramado, em frente à tribuna de honra do Maracanã. Depois de cantar o Hino Nacional, eu pegaria a taça das mãos de Jules Rimet. Todo feliz, ergueria a taça lá para o alto. Mas tudo é sonho.”
Augusto da Costa nem deu tempo a si próprio de “curtir” a derrota e a desilusão de não ter cumprido o gesto que, mais tarde, seria repetido por cinco capitães da selecção em Mundiais conquistados pelo Brasil – Bellini, 1958; Mauro, 1962; Carlos Alberto, 1970; Dunga, 1994; Cafú, 2002. Augusto, aquele que foi buscar a bola ao fundo da baliza de Barbosa após o golo de Ghiggia, abandonou o Maracanã, foi para casa e, no dia seguinte, já estava a trabalhar. “Fui para a minha repartição. Eu era da Polícia Especial. Tive de aturar os meus colegas de polícia me gozando.”
De Chico a Zé do Caixão
Augusto levou o futebol nos relvados até 1953 e só deixou de ser polícia durante alguns meses em 1957, quando viajou até Portugal para ser treinador do Belenenses.
“Eu gosto de trabalhar e tudo farei para agradar! Não tenham dúvidas quanto à sinceridade das minhas palavras”, prometia o brasileiro à chegada a Lisboa, onde, esperava ele, iria cumprir um contrato de um ano, a duração da licença que tinha pedido ao seu empregador, a Polícia Especial de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
Augusto da Costa chegava ao Restelo para substituir o chileno Fernando Riera ao comando de uma equipa que tinha os irmãos Matateu e Vicente Lucas, com aspirações de uma boa equipa. Mas o polícia carioca só aguentou oito jornadas como treinador principal (quatro vitórias, um empate e três derrotas), e ficou para adjunto do seu sucessor, o argentino Helenio Herrera (proveniente do Sevilha), que também teria carreira curta nos “azuis” do Restelo, antes de regressar ao futebol espanhol pela porta do Barcelona e de se tornar no ideólogo do “catenaccio” como técnico de um Inter de Milão bicampeão europeu.
Augusto da Costa voltou ao Brasil e não tocou mais no futebol. Continuou como agente da Polícia Especial de Segurança Pública do Rio de Janeiro até ser nomeado para o Serviço de Censura das Diversões Públicas (SCDP), onde ficou até se reformar e foi aplicando o seu lápis azul a toda a produção cultural (nacional e internacional) que lhe aparecia pela frente, fosse uma peça de teatro, um livro, uma canção ou um filme. E, na impossibilidade de consultar ao pormenor todos os ofícios assinados pelo antigo zagueiro, aqui ficam alguns exemplos.
Em 1975, Chico Buarque de Hollanda gravou “Tanto Mar”, uma celebração em forma de música da revolução de Abril, a “festa bonita, pá” num país onde há “Primavera” e Chico pede que guardem “um cravo para mim”. A canção foi enviada para a censura e, segundo contou Wagner Homem no livro “Histórias de Canções – Chico Buarque”, só passou o título. Depois, Chico queixou-se da censura a “Tanto Mar” durante um espectáculo que fez com Maria Bethânia e onde estaria presente o próprio censor, relembrado, de caminho, o “Maracanaço”: “Porra, Augusto, você perde a Copa e ainda vem me aporrinhar.”
Outra censura famosa de Augusto envolveu um cineasta brasileiro chamado José Mojica Martins, que ganhou notoriedade nacional e internacional com a sua personagem “Zé do Caixão”, o sinistro agente funerário de cartola, barba negra e unhas gigantes. Na terceira aventura cinematográfica de “Zé do Caixão”, “Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver” (1966), Augusto da Costa sugere vários cortes, “da cena de sangue espirrando quando a cabeça do homem é amassada por uma pedra” e “redução da sequência das cobras no alçapão, atacando as moças, em montagem paralela com o casal em cópula”. O censor sugere ainda a gravação do diálogo final em que Zé do Caixão “diz que não acredita em Deus” para “uma mensagem positiva de crença em Deus”.
Dos casos que se conhecem e que têm sido divulgados por académicos e jornalistas brasileiros, Augusto da Costa também censurou, pelo menos, um filme de Luis Buñuel (“Viridiana”, 1961), um filme brasileiro que tinha um nu frontal (“Os Cafajestes”, 1962), várias peças de teatro e um anúncio de roupa interior masculina em 1981, em que alguém se queixava de “um actor com volumosos órgãos sexuais”, a que ele respondia que a publicidade não lhe parecia viável porque “posteriormente deverão também aparecer nas TVs mulheres de calcinha íntima, já que propaladamente os direitos são iguais”.
Estes mesmos investigadores e jornalistas tentaram confrontar Augusto da Costa com este seu passado de censor até à sua morte em 2004, mas o único depoimento que deu foi no já citado livro “Dossier 50”: “Sempre luto o máximo que posso. É o que fiz no meu emprego de funcionário público: entrei como polícia especial, cheguei a censor federal quando me aposentei. A gente também nunca deve pensar que uma coisa é fácil.”
Marco Vaza no Rio de Janeiro6 de Agosto de 2016
Quando se refere a qualquer coisa que envolva ditadura e repressão, Fernando Antunes Coimbra acrescenta sempre qualquer coisa. Vai polvilhando a sua história com “maldita”, malvada” e “filhos da puta” sempre que sente necessidade de reforçar um ponto em particular. O seu nome não será internacionalmente reconhecido, mas o apelido é. Antunes e Coimbra também são apelidos de um dos melhores jogadores brasileiros de sempre, nascido Arthur e conhecido como Zico. Nando é um dos seus irmãos mais velhos, também foi futebolista, mas a sua história não foi feita de golos.
Sofreu a perseguição de duas ditaduras, a brasileira e a portuguesa, porque, quando tinha 18 anos, foi voluntário num programa de alfabetização. Basicamente, quis ensinar pessoas a ler e, por isso, foi preso e chegou a ser torturado. “O meu crime foi ser professor”, diz ao PÚBLICO Nando Antunes, hoje com 71 anos, mas com uma memória muito fresca do que aconteceu quando era um jovem jogador a despontar nas camadas base do Fluminense. Agora, Nando já está reformado e vive no Rio de Janeiro. Escreve, pinta, cuida dos netos, nem sequer vai sair de casa enquanto a sua cidade estiver ocupada pelos Jogos Olímpicos, e conta a quem quiser ouvir a história que guardou durante mais de 40 anos. Só agora a conta porque antes, diz, tinha de proteger os irmãos.
A história precisa de um prólogo e esse é semelhante ao da história de Zico. Nando foi o terceiro dos seis filhos de José Antunes Coimbra, um português de Tondela que foi para o Brasil com dez anos de idade e que levou com ele uma devoção ao Sporting Clube de Portugal, a que se acrescentaria igual devoção pelo carioca Flamengo. Todos os domingos, José ouvia numa telefonia de ondas curtas os relatos dos jogos do Sporting, para além de receber a cada 15 dias o jornal do clube “leonino”, com as notícias, não só do futebol, mas também, recorda Nando, dos feitos de Livramento no hóquei em patins e de Agostinho no ciclismo. “O papai era um torcedor fanático do Sporting”, conta.
José Antunes Coimbra não queria que nenhum dos filhos fosse profissional de futebol, mas pode dizer-se que fracassou totalmente neste propósito. Dos seus seis filhos, só um não deu jogador, Maria José, a única rapariga. Todos os outros, em algum momento das suas vidas, foram jogadores. Zeca Antunes, o mais velho, jogou no Fluminense, no América e chegou à selecção, tal como Edu, que jogou ainda no Bahia e no Vasco da Gama. Tonico também jogou futebol, mas com menos projecção, e Nando esteve na formação do Fluminense e passou por vários clubes brasileiros (Madureira, Ceará, América) e dois portugueses (Belenenses e Gil Vicente).
Ao mesmo tempo que jogava nas categorias de base do Fluminense, Nando cumpria um dos desejos do pai, era estudante de filosofia e, a certa altura, aceitou o desafio da irmã, o de ser voluntário no Plano Nacional de Alfabetização (PNA), como professor. “A minha irmã falou comigo, fiz o concurso e passámos. Éramos nós os dois e mais uns primos meus. Fizemos três meses de formação e começámos a dar aulas. Mas em Março de 1964 rebentou a ditadura e eles extinguiram o PNA. Aqui começou a perseguição”, recorda Nando. “Mas, como estava no Fluminense, nem me preocupei, continuei a jogar bola.”
Depois, foi saltando de clube em clube, com sucesso relativo, mas acabava sempre por ser afastado e não percebia porquê. Até chegou a estar no América ao mesmo tempo dos irmãos Antunes e Edu, com quem iria jogar na frente do ataque, mas acabaria por ser afastado pelo treinador. Depois de um período com sucesso no Ceará, apareceu uma proposta para jogar em Portugal, no Belenenses, e Nando não hesitou. Em 1968, embarcou rumo a Lisboa e o que pensava ser o início de uma carreira de sucesso no futebol português, acabou por ser dois meses de sobressalto a olhar pelo ombro.
“Quando cheguei, levaram-me para o escritório do Belenenses, na Avenida da Liberdade. A proposta era só metade do que tinham oferecido antes e não assinei. Disseram-me que podia ficar a treinar no Belenenses e deram-me algum dinheiro, quatro mil escudos. Foi o que fiz, treinava de manhã, almoçava e ia dormir para o hotel”, conta.
Depois, o susto maior. “Um dia bateram na porta do meu quarto. Eram dois caras de terno, pensava que era da imprensa e abri. Os caras mostraram a carteira da PIDE e eu fiquei apavorado, mas não demonstrei. Deram a entender que sabiam muita coisa minha e queriam meus documentos. Tive sorte porque segui um conselho que me deram, de dizer que tinha os documentos todos na embaixada brasileira. Eles foram embora, mas disseram que iam voltar”, diz Nando, que alguns dias depois voltaria a ter um encontro imediato com alguém que também sabia da sua história.
“No Restelo estava tomando banho e disseram-me que estava lá fora alguém querendo falar comigo. Ele me disse que eu estava complicando muito e me disse para eu ter cuidado porque era filho de portugueses e podia ir parar à guerra em África. Sozinho em Lisboa, com 21 anos, fiquei desesperado. Falei com um representante do Belenenses que me colocou a viver numa pensão ao lado da pastelaria de Belém e passei a ir a pé para o estádio”, recorda. O fim da aventura lisboeta estava quase a terminar, mas ainda passou por mais um susto. A conselho de um representante do Belenenses, decidiu voltar para o Brasil sem dizer nada a ninguém e ficou um dia inteiro no aeroporto à espera do avião. “Qualquer pessoa que eu visse, pensava que me vinha prender. Só quando estava no ar é que respirei fundo.”
No pouco tempo que esteve em Lisboa, Nando fez um amigo chamado Eusébio da Silva Ferreira, por via de um colega no Belenenses que também era moçambicano. “Ficámos amigos. Ele era um apaixonado pelo Brasil e era um cara excepcional. O filho da puta do Salazar, para não deixar ele sair, obrigou-o a entrar para o serviço militar. Muitas vezes ia com ele ao quartel para ele assinar o ponto. Que maldade era a ditadura. Ainda tem gente que gosta.” Nando ainda voltaria, mais tarde, a Portugal para jogar no Gil Vicente, mas sofreu uma lesão grave e a sua carreira acabou quando tinha 26 anos.
Nando regressou ao Brasil e não pensou mais em futebol. Não contou a ninguém o que se tinha passado, nem aos pais, nem aos irmãos. Zico, nesta altura já despontava no Flamengo, a prometer o talento que mais tarde iria mostrar. Mas a perseguição continuou. Seria preso com vários outro membros da sua família e esteve cinco dias no cárcere. “Estive dois dias em pé com as mãos na cabeça. Quando as pernas começavam a falhar, eles vinham com as espingardas com baioneta, encostavam-me a baioneta nas costas e diziam-me. Se tu caíres, nós vamos te furar. Era interrogado toda a noite com vendas nos olhos, queriam saber se eu era de alguma célula comunista.”
Depois da passagem pelo Gil Vicente em 1971-72, Nando não voltou a jogar futebol. Fez vida como vendedor e, depois, como funcionário do ministério da educação no Brasil, sem nunca falar da perseguição, convencido de que podia prejudicar os seus irmãos e considera que a sua ligação ao PNA impediu, ainda durante a ditadura, que Edu fosse convocado para a selecção brasileira no Mundial de 1970 (em que o Brasil foi campeão) e que Zico fosse aos Jogos Olímpicos de 1972, ele que marcara o golo decisivo da qualificação. Mas Nando não se arrepende de nada do que fez aos 18 anos. “Claro que não. Fazia tudo de novo.”
Quando o Flamengo conquistou a Libertadores em 1981, houve um avançado que entrou, não para marcar golos, mas para bater num adversário. Vive em Portugal há quase 30 anos.
Marco Vaza 30 de Novembro de 2019
Há uma semana, em Lima, o Flamengo conseguiu uma reviravolta épica na final da Taça Libertadores. De virtual derrotado aos 88’, o gigante “rubro negro” comandado por Jorge Jesus emergiu triunfante após o último apito do árbitro graças ao duplo acerto de Gabigol, aos 89’ e aos 92’. Numa final, nunca se desiste e o Flamengo alimentou-se dessa crença para ter a força suplementar que faltou ao River Plate nesta final de jogo único na capital do Peru. Há 38 anos, os últimos minutos do terceiro embate entre Flamengo e os chilenos do Cobreloa na final da Libertadores já não iriam dar nada de novo. O Flamengo vencia por 2-0, já tinha no bolso o seu primeiro título continental, mas ainda estava em jogo um sentimento chamado vingança. Anselmo Pereira, um avançado suplente da equipa brasileira, entrou nesses últimos instantes com uma missão, bater num adversário, ordenado para tal pelo seu treinador. Entrou, bateu e saiu. Assim nasceu a lenda de Anselmo Vingador.
Ainda hoje, 38 anos depois, os adeptos do Flamengo idolatram Anselmo como um herói, ao lado de Zico, Júnior e outros dessa grande equipa que marcou uma era do futebol brasileiro entre os anos 1970 e 1980. Aquelo soco de Anselmo a Mario Soto, defesa chileno do Cobreloa, foi dado com a força de milhões de flamenguistas, uma catarse colectiva para jogadores, treinadores e adeptos, depois de uma final em três jogos marcada por múltiplos episódios de violência em campo. À distância do tempo e do espaço, Anselmo Pereira olha para esse gesto com os olhos de um homem de 60 anos. “Não é uma coisa que se deva fazer no futebol, mas foi o que fiz”, conta Anselmo ao PÚBLICO. “O Paulo [César Carpegiani, treinador] mandou e eu nem pensei duas vezes.”
Em 2019, José António Cardoso Anselmo Pereira é funcionário administrativo de um agrupamento escolar na Quarteira, no sul de Portugal, onde vive há 29 anos. Todos o tratam por Anselmo, mas nem todos conhecem o seu passado no futebol. Vive à beira do mar algarvio e já deixou o futebol para trás. Gosta de pescar e de fazer mergulho e agrada-lhe a pacatez algarvia fora da época de Verão. Tinha jogado no Louletano em 1988-89, em relvados e pelados da Zona Sul da segunda divisão portuguesa, gostou do Algarve e, depois de mais um ano no Brasil, voltou. “Como a segurança no Brasil – acho que continua igual – e eu com filhos pequenos, tinha onde ficar aqui [na Quarteira] e fui trabalhar para a escola. Os filhos já não estão aqui, casaram, já estão fora. E eu continuo aqui.”
A batalha
Em 1981, o Flamengo participava na Taça Libertadores da América com o estatuto de campeão brasileiro de 1980. Era a maravilhosa equipa de Zico, o “Galinho de Quintinho”, de Júnior, de Tita, de Mozer e tantos outros. Anselmo, que vinha das categorias de base do clube carioca, também. Nesta altura, participavam duas equipas de cada país e, na primeira fase, os grupos eram formados por representantes de dois países – os brasileiros Flamengo e Atlético Mineiro estavam com os paraguaios Olímpia e Cerro Porteño. O Flamengo avançou para a segunda fase de grupos após um play-off com o Atlético e, depois, ganhou o respectivo grupo para aceder à primeira final da sua história. Tal como o “Mengão”, o Cobreloa, treinado pelo argentino Vicente Cantatore (futuro treinador do Sporting durante três semanas em 1997) também seria um estreante.
Neste modelo de final a duas mãos, que só foi descartado em 2019, o Maracanã foi palco do primeiro jogo a 13 de Novembro. Zico marcou os dois golos do triunfo por 2-1, bastando ao Flamengo um empate no segundo jogo, sete dias depois, em Santiago de Chile, para chegar ao título. Mas o jogo foi para o Cobreloa, uma vitória por 1-0 (autogolo de Leandro) que levou a decisão da final para um desempate em Montevideu e deixou o Flamengo com queixas. “O Cobreloa abusou da violência e o árbitro não fez nada”, queixava-se Zico.
A 23 de Novembro, o Estádio Centenário, em Montevideu, seria o palco do jogo três da final. Zico colocaria a final fora do alcance da equipa chilena com golos aos 17’ e aos 74’, mas a hostilidade entre as duas equipas ultrapassava a componente desportiva. “As agressões foram mais que muitas, foi um absurdo o que foi feito. A equipa de arbitragem parecia que não via. Não foram factos isolados”, recorda Anselmo. A poucos minutos do fim, num lance sem bola, e mesmo em frente ao banco do Flamengo, Mario Soto agride Tita com um soco e o jogador do Flamengo cai no relvado. Carpegiani e todos os outros que estavam no banco queriam invadir o campo, mas o técnico dos “cariocas” teve outra ideia. Chamou Anselmo, um possante homem de área, e deu-lhe uma ordem: “Entra lá e dá uma porrada no cara.”
Sem aquecer, Anselmo, o n.º 25, entrou para o lugar de Nunes e foi direito a Soto. “São coisas do momento. Não foi premeditado. Quando se tem tempo de pensar no que vai fazer… Mas naquele momento, você está vendo os jogadores serem agredidos, pisados, tudo o que aconteceu, e todo o mundo com os nervos à flor da pele, toda aquela confusão dentro do campo… Eu estava ao lado do Paulo, ele olhou para mim e deu a ordem”, conta o antigo avançado. Soto ainda o viu chegar e Anselmo acabou por o atingir, meio com o punho, meio com o cotovelo. Nem se preocupou em fingir que não tinha feito nada e nem esperou pela ordem de expulsão para sair do campo, perseguido pelos adversários e protegido por colegas e pela polícia em direcção ao balneário. Foi um de cinco jogadores expulsos – dois do Flamengo, Andrade e Anselmo, três do Cobreloa, Jiménez, Alarcón e Soto.
“Foi um facto isolado que me prejudicou bastante”, conta Anselmo quase quatro décadas depois. O avançado ainda foi com a equipa até ao Japão e viu de perto o triunfo do Flamengo por 3-0 sobre o Liverpool na Taça Intercontinental, mas a sua carreira nunca mais foi a mesma. “Tinha uma transferência acertada com o Fluminense, mas os directores do clube resolveram não fechar por essa situação. Dentro do campo, havia jogadores que queriam bater-me e outros que me diziam, antes dos jogos, para eu ter calma, como se fosse uma coisa que eu fizesse no dia-a-dia”, lamenta.
Anselmo saiu do Flamengo em 1982, bicampeão brasileiro e da Libertadores, passando ainda por diversos clubes brasileiros, pelo futebol boliviano e por Portugal, na tal época em que o Louletano ficou a dois pontos de subir à primeira divisão. Em 1990 aterrou no Algarve e não mais saiu de lá, mantendo-se na memória colectiva dos flamenguistas como Anselmo Vingador – até tem uma música dedicada a ele. Voltaria a fazer o mesmo? “Não me arrependo. Eu fiz uma coisa errada, no lugar errado, mas no momento certo.”
Rubem Fonseca era grande adepto do Vasco da Gama, tal como Pelé, que chegou a jogar pelos vascaínos quando tinha 16 anos, marcando os seus primeiros golos no Maracanã frente ao Belenenses.
Marco Vaza 18 de Abril de 2020
A frase, transcrita num obituário do site “Trivela” dedicado ao escritor, foi retirada de um artigo do jornal carioca Diário de Notícias de 1973 e evoca os tais breves momentos em que um dos melhores jogadores de todos os tempos, que jogou quase duas décadas no paulista Santos, usou o emblema da Cruz de Malta em três jogos, um deles frente ao português Belenenses. O que Rubem Fonseca não sabia (ou, se calhar, até já sabia) é que esta frase, feita em partes iguais de orgulho vascaíno e inveja por não ter tido o “Rei” durante 20 anos, era a mais pura das verdades. Mas já lá iremos.
Em 1957, o Belenenses foi um dos convidados a participar no Torneio Internacional do Morumbi. Os “azuis” do Restelo levavam na comitiva Matateu e Vicente Lucas, entre outros, e ficaram no grupo do Rio de Janeiro, que iria disputar os jogos no Maracanã. A abrir, a 16 de Junho, o emblema da Cruz de Cristo iria defrontar um combinado de jogadores do Vasco da Gama e do Santos (que tinha a sua equipa principal numa digressão pelo mundo). Pelé, então com 16 anos, estava nessa equipa que alinhou com o emblema da Cruz de Malta, e o jogo foi dele: marcou três golos na vitória do combinado Vasco/Santos por 6-1, os seus primeiros no Maracanã, onde, mais de 12 anos depois, marcaria aquele que está fixado na sua estatística oficial como o seu golo 1000 (de penálti, pelo Santos e contra o Vasco).
Pelé e a paixão pelo Vasco da Gama
Para o Belenenses, foi uma participação sem grande história. Voltou a perder contra o Flamengo (3-1) e nem chegou a fazer o terceiro jogo com o Dínamo Zagreb. Pelé ainda fez mais dois jogos e mais dois golos com a camisola do Vasco neste torneio, que teria depois a sua fase final em São Paulo - onde, tal como tinha ficado acordado, o misto Vasco/Santos usaria a camisola da equipa paulista. Pouco depois, Pelé seria chamado pela primeira vez à selecção brasileira e, no Verão do ano seguinte, seria campeão do mundo pela primeira vez. O resto, como se costuma dizer, é história.
Avancemos até ao ano de 2020. Com todos os anos passados no Santos, Pelé, agora com 79 anos, relembrou numa entrevista a um canal do Youtube que o seu coração sempre pertenceu ao Vasco da Gama e que nunca foi do Santos. “Não fui vascaíno. Ainda sou, para quem não se lembra. O meu time, todo o mundo sabe que foi o Santos. Mas sou vascaíno”, confessou Pelé sobre um amor que já era público, pelo menos, desde 1977, revelado durante uma entrevista televisiva - e o pai jogou no Vasco de São Lourenço, terra de Pelé, e o craque que nasceu Edson Arantes do Nascimento ficou a dever o nome pelo qual é conhecido ao guarda-redes dessa equipa, que se chamava Bilé e a quem o garoto Edson chamava Pelé.
O coração de Pelé era ocupado pelo Vasco da Gama, tal como o de Rubem Fonseca, que passou essa paixão aos filhos - um deles, o realizador José Henrique Fonseca, que dirigiu o filme “Heleno” (2012) sobre a vida curta e turbulenta de Heleno de Freitas, avançado que chegou a representar o Vasco durante uma época. E a paixão pelo Vasco também pingou para a sua obra. Num dos seus romances, “O Seminarista” (2009, Sextante), a personagem principal, um assassino a soldo que só matava “gente ruim”, é adepto do Vasco da Gama porque “fez um time com pretos e pobres” - o Vasco foi um clube pioneiro nos anos 1920 na luta contra o elitismo racial e social que existia no futebol brasileiro. A paixão de Rubem Fonseca talvez se explique, então, pela importância histórica do Vasco ou pelas suas origens portuguesas - os pais eram de Trás-os-Montes.
Pelé tem uma aparição breve na única obra que Rubem Fonseca dedicou ao futebol. Foi um conto chamado “Abril, no Rio, em 1970”, incluído na colectânea “Feliz Ano Novo”, um livro editado com enorme sucesso em 1975 mas que seria proibido pela censura da ditadura militar - voltaria a ser reeditado apenas em 1989. É a história de um jovem aprendiz de futebolista que trabalha como contínuo num escritório e que tenta a ascensão social através do futebol - e tenta convencer a namorada, que “é fogo”, a não o puxar para a cama porque tem jogo no dia seguinte e quer mostrar-se ao treinador de um clube grande. Tudo com base numa teoria de que se avalia a forma de um futebolista pela forma como cospe. Só que Nely, a namorada da “cara ossuda” e do “lábio grosso”, não acreditou. “Tive vontade de dizer mais”, pensou o jovem aspirante a craque. “Mas fiquei com medo que ela quebrasse outro prato na minha cabeça.”
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