"António Ferro, O inventor do salazarismo", por Orlando Raimundo, Publicações Dom Quixote, 2015, é uma reportagem histórica sobre a figura singular de António Ferro, o homem a quem Salazar confiou o aparelho da propaganda, logo no início do seu regime. Será talvez temerário atribuir a Ferro a invenção do salazarismo enquanto ideologia e culto, já que o ditador possuía um modo de pensar que ia ao encontro de largas faixas da população que nele confiaram, quase cegamente, até aos finais da II Guerra Mundial. Mas é indubitável que Ferro foi um encenador magistral do orgulho nacionalista, um recuperador de tradições e um urdidor panfletário sem precedentes na cena política portuguesa, mitificando o chamado providencialismo do Chefe. É à volta da personagem e do período áureo do salazarismo que Orlando Raimundo abre o pano e nos desvela um modernista que se metamorfoseou em acérrimo nacionalista, um futurista que se bandeou para o tradicionalismo num estranho equilíbrio para o qual fez convergir intelectuais e artistas das mais díspares procedências.
O autor revela-nos um António Ferro que soube habilmente gravitar à volta do modernismo e do futurismo, foi acidentalmente um nome que ficou na revista Orpheu, teve experiências malsucedidas no território da dança clássica, foi nome indiferenciável no jornalismo, sentiu-se atraído pelo sidonismo, sabe ir, habilidosamente, à procura do escândalo e do fogo-de-artifício, viaja até ao Brasil, as suas peças de teatro são pateadas, e consorcia-se com Fernanda de Castro, a conhecida autora de Mariazinha em África, que se afirmará como indefetível companheira de projetos. E é assim que chegamos à ascensão de Salazar ao poder.
Passo a passo, o republicano Ferro vai-se envolvendo em movimentos filofascistas, e é assim que apoia Filomeno da Câmara, nome sonante do "Golpe dos Fifis", que correu bem mal, foi um ensaio a favor do regresso à ordem autoritária. Ferro cultiva a imagem de vanguarda, dedica-se ao cinema, recebe intelectuais fascistas e políticos nazis, cria as marchas populares, endeusa o Galo de Barcelos, e entrevista largamente Salazar em 1932, iniciativa determinante para a confiança do ditador, que o nomeia como responsável do Secretariado da Propaganda Geral. Entretanto, Ferro cria prémios literários, concursos, atribui subsídios, elege aldeias típicas, os tapetes de Arraiolos, sonha em difundir teatro popular, manda fazer cinema que elogie a ditadura. Eufórico, adere a qualquer proposta para festejos, desde que estes sirvam para presentear Salazar ou tranquilizar as massas: é assim que surge a Festa do Trabalho Nacional, a Exposição Marítima do Norte de Portugal, são atraídos ao país intelectuais com vista a abençoar o regime, caso de Gonzague de Reynold ou Maurice Maeterlinck.
Estamos numa época da saudação fascista, nas grandes paradas é possível ouvir - Quem vive? - pergunta o comandante da lança. - Portugal! Portugal! Portugal! - respondem todos. - Quem manda? - pergunta a mesma voz. - Salazar! Salazar! Salazar! - gritam os legionários. Ferro acolita o ditador em todos os momentos difíceis, caso da guerra civil de Espanha. Salazar não gosta do cinema proposto por Ferro, não aprecia as galhofadas e as tiradas de comediantes como António Silva ou Vasco Santana, gosta do épico, mesmo na sua dimensão imperial, do religioso, do histórico. Orlando Raimundo fala das falsificações de Ferro, como a do Paço Ducal de Guimarães, lembra o grande espetáculo da grande Exposição do Mundo Português de 1940, os serões para trabalhadores organizados pela FNAT, a apologia do fado... E assim se procurou aplacar o período de imensas dificuldades suscitadas pela guerra.
A era de António Ferro chega ao fim quando se extinguem as ditaduras nazi-fascistas, Salazar irá recriar a imagem do seu regime e Ferro é mandado como Ministro Plenipotenciário de Portugal em Berna. A estrela vai-se apagando mas ficou a ilusão de que "Ferro foi um homem de cultura que vendeu a alma ao diabo e não um agente do diabo no território da cultura". Uma reportagem histórica de inegável interesse para compreender a ascensão e consolidação do regime de Salazar através do seu agente maior da propaganda.
Autor: Beja Santos
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