LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 20/04/2015
Um fórum realizado na Universidade de Lisboa aprovou uma moção a defender que o Acordo Ortográfico de 1990 deve ser referendado. Os defensores do tratado acham que o esforço de unificação da língua compensa as eventuais imperfeições do AO.
Os subscritores da moção acham que o AO falhou o seu objectivo de “unificação das variantes do Português” e que a “alegada simplificação” que trouxe “corresponde a uma total insegurança ortográfica”. Do outro lado, os que defendem o AO – incluindo o seu principal negociador pelo lado português, Malaca Casteleiro, que o PÚBLICO ouviu –, não negam imperfeições ou incongruências, mas acham que é um pequeno preço a pagar por uma ortografia unificada.
E, se o jurista Ivo Miguel Barroso tiver razão, ainda haverá algum tempo para discutir o assunto antes de se esgotar o prazo de transição estabelecido para a aplicação do AO. Na sua intervenção na FLUL, Barroso procurou demonstrar, contrariando a interpretação oficial, que esse prazo não termina em Maio próximo, mas sim em Setembro de 2016, já que os seis anos previstos não devem ser contados, defende, a partir da data em que se procedeu ao depósito da ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do AO, mas da data da publicação no Diário da República (DR) do aviso dessa ratificação, o que só veio a acontecer em Setembro de 2010.
O jurista é também um dos dinamizadores de uma acção popular judicial levada ao Supremo Tribunal Administrativo, que requer a não-aplicação do AO no ensino público do 1.º ao 12.º ano, argumentando com a inconstitucionalidade da Resolução do Conselho de Ministros n.º8/2011, de 25 de Janeiro, que impôs o AO na administração do Estado a partir de Janeiro de 2012, e determinou que o acordo era aplicável ao sistema educativo logo no ano lectivo de 2011/12. “Espero que o tribunal tome uma decisão antes de começarem os primeiros exames, até porque se trata apenas de matéria de Direito”, disse Ivo Miguel Barroso ao PÚBLICO.
Tomada poucos meses antes de o Governo de Sócrates cair na sequência do chumbo do PEC IV, a resolução em causa antecipou em vários anos a aplicação do AO em sectores fundamentais da sociedade portuguesa e foi instrumental na criação de um facto consumado, levando, por exemplo, os editores de manuais escolares a adoptar um acordo ao qual muitos deles se tinham sempre oposto, como foi o caso de Vasco Teixeira, da Porto Editora.
Na reunião da FLUL, onde intervieram figuras como António Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, a ensaísta Maria Filomena Molder, o poeta Gastão Cruz, o escritor e colunista Pedro Mexia ou o humorista Ricardo Araújo Pereira, o tradutor Miguel Francisco Valada levou uma série de exemplos que parecem demonstrar que o AO veio criar instabilidade ortográfica onde esta não existia.
377 “fatos”
A par de inúmeros exemplos de erros de português que poucos dariam antes de surgir o AO, como “fato” ou “contato”, e que agora são frequentes em jornais e televisões, mas também em universidades ou no Parlamento – até o próprio texto do AO regista alguns –, Valada apresentou uma tabela em que conta o número de vezes que algumas destas grafias erradas ocorrem noDiário da República (DR). Em 2009 não aparece nenhum “fato” ou “fatos”, mas em 2012, o ano em que o DR começa a ser redigido segundo o AO, Valada detectou 377 ocorrências.
A tabela foi entregue na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, mas sem nenhum resultado prático, explicou Valada. Um silêncio que simboliza a dificuldade com que se defrontam os que ainda não desistiram de tentar travar o acordo: do outro lado raramente encontram interlocutores para uma discussão séria sobre o conteúdo do AO.
“As vias políticas estão bloqueadas”, reconhece Ivo Miguel Barroso, lembrando que o tratado e os posteriores protocolos modificativos foram sempre aprovados “por largas maiorias” no Parlamento, que três Presidentes da República – Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva – o ratificaram, e que o actual líder da oposição, o socialista António Costa, é um assumido defensor do AO.
Garantido o apoio dos grupos parlamentares do PSD e do PS – apesar da oposição de alguns raros deputados, como Manuel Alegre –, e com o AO a ser aplicado há quatro anos lectivos no ensino e a generalizar-se cada vez mais na edição e nos media, é compreensível que os seus defensores não tenham interesse em promover agora uma grande discussão pública.
Entre as iniciativas promovidas nos últimos anos contra o AO, Valada recordou o Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa, uma petição lançada em Maio de 2008, e que um ano depois, quando foi apreciada no Parlamento, já tinha recolhido mais de 115 mil assinaturas válidas, entre as quais se contavam as de Eduardo Lourenço, Vitorino Magalhães Godinho, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Vasco Graça Moura ou José Pacheco Pereira.
E antes disso, em 2005, quando o Governo de José Sócrates se preparava para ratificar o 2.º Protocolo Modificativo – destinado a permitir que o AO pudesse entrar em vigor sem a ratificação de todos os países signatários do tratado original (Angola e Moçambique ainda hoje não o fizeram) –, foi pedido, através do Instituto Camões, um conjunto de pareceres a várias instituições e especialistas. Descontado o da Academia das Ciências, da autoria do próprio Malaca Casteleiro, todos os outros oscilavam entre as críticas severas e a sugestão de que o processo deveria ser imediatamente suspenso, como o fez a Associação Portuguesa de Linguística. O próprio Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), hoje o principal instrumento de aplicação do acordo, afirmava que o AO “terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas normas, sobretudo na língua escrita no âmbito da Internet”.
Fingir que não ouvem
Para os adversários do AO, este não unifica a língua, como se propunha, e ao admitir um grande número de facultatividades – “Electrónica e Electrotecnia” poderá ser escrito de 32 formas diferentes sem violar o AO – contraria o próprio conceito de ortografia. E lembram que as grandes diferenças que separam as variantes portuguesa e brasileira da língua não são ortográficas, são lexicais, semânticas e morfossintácticas.
Com diferenças regionais e índices de iliteracia pouco comparáveis com os de Portugal, o Brasil tem problemas próprios no domínio da língua que poderemos estar a importar com este acordo. É o que defende Ivo Miguel Barroso, que acha que “o AO é desnecessário” e que “mais vale haver duas variantes: entendíamo-nos perfeitamente, e agora um brasileiro lê ‘receção’ e não sabe o que é”.
Do outro lado da barricada, os defensores acham que a “deriva ortográfica” entre Portugal e o Brasil ameaçava o futuro do português como língua mundial e crêem que uma ortografia mais próxima da fonética facilita a aprendizagem. Uma convicção partilhada pelos três apoiantes do AO que o PÚBLICO ouviu.
O argumento clássico contra esta convicção é o das crianças inglesas, que aprendem com aparente sucesso uma ortografia cuja relação com a pronúncia é bastante remota. E Vasco Graça Moura, numa entrevista ao autor deste artigo originalmente publicada na revista Cão Celeste (e que poder ler no PÚBLICO online), lembra que “as desgraçadas criancinhas” alemãs aprendem a escrever palavras como “Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän” [“capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]. E os alunos de gronelandês ocidental não têm melhor sorte. Francisco Miguel Valada trouxe ao fórum da FLUL, para a endereçar aos promotores do AO, uma palavra deste idioma, “Tusaanngitsuusaartuaannarsiinnaanngivipputit”, que em português significa, explicou, “não podem estar permanentemente a fingir que não estão a ouvir”.
O linguista João Malaca Casteleiro, negociador do AO e redactor da sua Nota Explicativa, admite que este “não é perfeito, não unifica completamente a ortografia, porque não foi possível”, e “tem algumas incongruências”. Mas defende que o acordo veio pôr fim a uma “deriva ortográfica que durava há um século”.
Salientando que se trata de um acordo, e não de uma reforma, diz que “se houve cedências etimológicas, o Brasil também cedeu na acentuação, suprimindo o trema, bem como os acentos agudos em palavras como ‘ideia’ e ‘assembleia’”.
De resto, a supressão das consoantes mudas parece-lhe positiva, uma vez que “não existem na pronúncia e não faz sentido mantê-las na escrita”. Mas também reconhece que, “se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”. Se Portugal tivesse envolvido o Brasil na reforma de 1911, diz, “o problema tinha ficado resolvido”.
O conselho de Verney
Já o linguista Fernando Cristóvão acha que a oposição ao AO é “uma coisa doentia” e lembra que o acordo foi aprovado pela AR e ratificado por Mário Soares em 1991. E aos que o encaram como uma concessão ao Brasil, lembra que “as mudanças que se fizeram com este acordo já tinham sido reclamadas em 1746 pelo português Luís António Verney”, que na obra O Verdadeiro Método de Estudar defende que os portugueses “devem escrever a sua língua da mesma sorte que a pronunciam”.
Se Cristóvão é um defensor de que a ortografia se aproxime tanto quanto possível da pronúncia, já D’Silvas Filho, pseudónimo literário de um consultor do site Ciberdúvidas e autor do livro Prontuário - Erros Corrigidos de Português (Texto, 2012), embora tenha apoiado o AO “desde a primeira hora”, acha que este pode ter propiciado interpretações que "levaram longe de mais a prioridade ao critério fonético”. Uma crítica em que está sintonizado com os adversários do AO.
Já não subscreve, no entanto, outra crítica recorrente: a que censura a este acordo a proliferação de duplas grafias facultativas. Dada a impossibilidade de as evitar, o que parece crucial a D’Silvas Filho é que tanto Portugal como o Brasil incorporem nos seus vocabulários ortográficos nacionais ambas as variantes. E a sua posição é a de que qualquer grafia registada no Vocabulário Ortográfico Português é de uso legítimo em Portugal.
O linguista lamenta que os que se opõem ao AO “não vejam a vantagem extraordinária que há em unir a língua”, elogia os progressos do recém-apresentado Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser desenvolvido pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), da CPLP, e que congrega já os vocabulários nacionais de alguns dos países que ratificaram o acordo, e congratula-se por “estarmos a caminho de poder organizar um dicionário para esta língua planetária”.
Mas o seu entusiamo não o impede de criticar o que lhe parece menos conseguido. Preferia, por exemplo, que “pára” mantivesse o acento, ou que “braço-de-ferro” não tivesse perdido os hífenes.
“Devem fazer-se aperfeiçoamentos”, diz, e espera que se possa aproveitar o actual trabalho no âmbito do IILP para melhorar o AO, mas acha que, “depois de todo o trabalho feito, não faria sentido suspender o acordo” para o corrigir.
“A pronúncia da língua corre o risco de ser desfigurada a breve prazo”
LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 20/04/2015
Esta entrevista a Vasco Graça Moura foi originalmente publicada em Abril de 2012, no número inaugural da revista O Cão Celeste, dedicado ao tema da ortografia, e reproduzimo-la aqui com a devida autorização.
Quando a maior parte dos portugueses mal tinha ainda ouvido falar do Acordo Ortográfico (AO), Vasco Graça Moura foi um dos primeiros a perceber o que estava em causa e a assumir publicamente a sua oposição. Se há um rosto da luta contra o acordo, é o dele. Pela persistência, pela qualidade da argumentação, e até pela coragem, já que correu óbvios riscos políticos ao decidir suspender a aplicação do AO no Centro Cultural de Belém, para o qual acabara de ser nomeado.
Respondendo ao jornalista Luís Miguel Queirós, que o entrevistou por escrito para O Cão Celeste, considera que o risco mais grave que este acordo coloca é o de a pronúncia da língua vir a ser desfigurada já nas próximas gerações. Uma catástrofe que não foi atempadamente travada por quem a podia travar: políticos de todos os partidos, universidades, editores. Mas aos que acham que já é tarde para entrar numa guerra de antemão perdida, o poeta e tradutor Vasco Graça Moura lembra que “enquanto há língua, há esperança”.
Cão Celeste: Num livrinho de divulgação do Acordo Ortográfico (AO), João Malaca Casteleiro e Pedro Dinis Correia inventariam alguns argumentos que justificariam a pertinência do AO. Um deles reza assim: “Torna-se imperioso pôr cobro a uma deriva ortográfica de quase um século”. Tendo em conta que, ao longo do dito século, o português do Brasil se alterou a um ritmo francamente mais intenso do que o de Portugal, este AO não é, no essencial, uma tentativa – que as intocadas diferenças sintácticas e lexicais bastariam para votar ao fracasso – de forçar o português de Portugal a dar uma espécie de salto gigantesco para recuperar o “terreno perdido” para o do Brasil?
Vasco Graça Moura: Este acordo decorre de várias causas concomitantes: a obsessão da unificação ortográfica, que remonta pelo menos aos anos 30 do século XX, a reutilização de um dispositivo autoritário e que teria sido posto em marcha por dois regimes autoritários em 1945, de um modo impensado e sem atender às transformações geopolíticas, a permanência de uma atitude colonialista, ignorando necessidades ortográficas dos PALOP’s, a transposição quase mecânica de coisas que vinham de 1945, não se atentando em que a própria Linguística evoluiu muito. Por exemplo: o que é que significa uma «pronúncia culta» da língua? Quem estudou as pronúncias cultas? Quantas são? A de Luanda? a de São Luís do Maranhão? a do Maputo? a de Bragança? Outras? Ora é esse conceito indeterminado e indeterminável que é usado como referência para a supressão das impropriamente chamadas consoantes mudas. O que ainda por cima é agravado pelo acolhimento das chamadas «grafias facultativas», que em caso algum eram admitidas em 1945. O português de Portugal acabou por não dar salto nenhum: abriu a porta a uma terceira via ortográfica, que é a situação perfeitamente estúpida – e anti-acordo – que se está a viver.
O AO alteraria – de chofre, por assim dizer – o português europeu, mas nada indica que alterasse os seus padrões de evolução futuros. Dado que as duas variantes evoluem, mesmo ao nível ortográfico, e também na cadência de introdução de novos termos, a ritmos manifestamente diferentes, não iríamos precisar de constantes actualizações impostas por decreto para acompanhar o passo acelerado da variante brasileira?
O problema principal para nós (e para os mais de 50 milhões de seres humanos que seguem a norma portuguesa) é o de a pronúncia da língua correr o risco gravíssimo de ser desfigurada a breve prazo. Há outros problemas, mas esse é o mais grave. As próximas gerações portuguesas e africanas tenderão a ler «setor», «receção», «deceção», etc., sem acentuarem a primeira vogal. Já Óscar Lopes, há 25 anos, pensava que «adoção» (de adoptar) conduziria os africanos a pronunciarem «adução» (de aduzir) .Outros problemas prendem-se com o absurdo das regras do hífen e das maiúsculas. Não sei como é que seriam incorporadas as actualizações, num tratado que envolveu sete países e que já teve também a adesão de Timor. Repare que, como disse acima, nem sequer se fixaram regras para a incorporação de vocábulos de origem africana. E, no mínimo, seria necessário que estivesse fixado o Vocabulário Ortográfico Comum (exigido pelo acordo e que não existe). A partir dele, seria possível deduzir algumas regras mais ou menos estáveis para as actualizações.
Outro argumento invocado por Casteleiro e Correia é o de que o português é língua de trabalho de várias organizações internacionais, sendo por isso “urgente” que disponha de uma ortografia unificada. Dadas as já referidas diferenças sintácticas e lexicais, e tendo ainda em conta a profusão de duplas grafias que este AO consagra, não lhe parece que só por milagre um mesmo texto, ainda que breve, poderia seria escrito de forma absolutamente idêntica por um português e um brasileiro?
É um argumento sem qualquer consistência. Até agora nunca houve nenhum problema em nenhuma organização internacional. Na União Europeia, nos dez anos em que fui deputado, nunca houve o mínimo inconveniente por razões ortográficas. E lá existem inúmeros tradutores e intérpretes brasileiros. As diferenças complicadas e relevantes são semânticas. Suponha-se uma regulamentação internacional sobre transportes ferroviários que envolva Portugal e o Brasil: nós escreveríamos «comboios», enquanto os brasileiros escreveriam «trens». Não há acordo ortográfico que resolva estas questões… De resto, o acordo já consagra uma série de diferenças, por exemplo no tocante à acentuação de certas esdrúxulas: económico / econômico, anatómico / anatômico, etc., etc.
O terceiro argumento esgrimido pelos mesmos autores é de “natureza pedagógica”. Uma só ortografia, sustentam, tornaria a aprendizagem mais fácil nos vários países em que, “por esse Mundo fora” se ensina o português. Aceita esta alegação?
O terceiro argumento esgrimido pelos mesmos autores é de “natureza pedagógica”. Uma só ortografia, sustentam, tornaria a aprendizagem mais fácil nos vários países em que, “por esse Mundo fora” se ensina o português. Aceita esta alegação?
Não chega a ser um argumento. É uma infantilidade. Nos países em que por esse mundo fora se ensina o português, se se tratasse da França, da Alemanha, da Espanha, ou dos Estados Unidos, seria mais fácil ensinar o português a partir de grafias como «acção» ou «redacção», para dar só dois exemplos, porque o parentesco etimológico com as línguas deles seria mais visível.
Ainda no domínio da pedagogia, os defensores do AO, que assumem que este acordo privilegiou o critério fonético em detrimento do etimológico, têm insistido na ideia de que aproximar a ortografia da fonética facilita a aprendizagem. Admitindo que é verdade, não lhe pareceria mais sensato melhorar o ensino do que “baixar” a língua ao nível das presumidas (in)capacidades dos alunos?
É outra falácia. A escrita é uma convenção. Que dizer das desgraçadas criancinhas alemãs, francesas ou inglesas, que têm de aprender ortografias inverosímeis relativamente à maneira de as palavras serem pronunciadas. Por exemplo: Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän [traduzível por “capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]… ou espoir, ouenough? Deve ser por causa dessa argumentação que no Dicionário da Academia, que o Prof. Malaca dirigiu, encontramos este mimo: croissã paracroissant… As criancinhas devem ficar muito edificadas.
Percebe a razão de a subestimação da etimologia levar os autores do AO a suprimir, por exemplo o “c” em acto – fechando o “a” inicial, criando uma nova homógrafa, ocultando a raiz latina da palavra e distanciando o português de outras línguas europeias, como o francês, o inglês e o alemão – e, ao mesmo tempo, o critério etimológico ser invocado para manter, por exemplo, a dupla grafia “húmido / úmido”?
Já abordei a questão acima. Quando convém aos negociadores do acordo, invocam o uso ou a tradição, sem qualquer critério e sem qualquer espécie de lógica. Tratam as coisas como quem maneja um funil, ora pegando na parte larga, ora na parte estreita.
Não lhe parece que, de um modo geral, despojar as palavras dos seus traços etimológicos torna mais difícil, a alguém que se confronta com uma palavra que não conhece, deduzir o seu provável significado por analogia com outras palavras que partilhem a mesma raiz?
É claro que sim, e esse era um dos limites judiciosamente tidos em conta pelo acordo de 1945. As tais consoantes mudas, entre outros casos, eram mantidas após as vogais a, e ou o, quando não fosse invariável o seu valor fonético e ocorressem a seu favor outras razões, tais a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas, e ainda quando influíssem no timbre das referidas vogais (exemplos destes casos: acepção, adopção, abjecção, acção, arquitectura, circunspecção, contrafacção, projectar, retroactivo...). E também quando, embora mudas, devessem harmonizar-se com formas afins (exemplos: abjecto / abjecção, carácter / caracteres / didáctico / didactismo, insecto / insecticida).É importante manter a mesma imagem gráfica para o mesmo morfema lexical, de modo a facilitar-se o reconhecimento lexical na língua escrita. De resto, a "unidade românica" ultrapassa as próprias línguas latinas, abrangendo, em particular, uma grande parte do léxico em inglês, que é de origem latina.
Um dos argumentos mais frequentes dos entusiastas do AO é o de que a lógica de quem o contesta, a ter sido seguida no passado, faria com que ainda hoje escrevêssemos “pharmácia” e “photographia”. São estes dois os exemplos mais invocados. Tendo em conta que o francês e o inglês, que usam o “f” inicial em inúmeras palavras, abrem excepção para estas duas e para as que partilham a mesma etimologia (o mesmo é verdade para o alemão, salvo no caso de farmácia, já que Apotheke vem de outra palavra grega), acha que seria assim tão escandalosamente anacrónico que ainda hoje usássemos, nestes dois casos, o “ph”?
Os acordistas lançam mão do argumento mais estúpido e manipulador que lhes podia ocorrer. Nenhum dos ataques ao acordo visou restaurar dígrafos como «ph». Aqueles é que inventam o argumento, à falta de melhor… Note aliás que nenhum dos argumentos de fundo contra o acordo foi rebatido. Está-se no reino do «porque sim». Agora, em teoria, a mim não me repugnava nada escrever pharmacia ou philosophia. Teria de o fazer se escrevesse em francês ou inglês…
Não acha que, a par dos autores do AO e dos governantes portugueses que fizeram dele cavalo de batalha, como foi o caso do ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro no governo de José Sócrates, a responsabilidade pelo facto de a luta contra este acordo poder ser já uma guerra perdida cabe também, em larga medida, a alguns editores portugueses, e em particular aos que dominam o mercado do livro escolar?
Acho que sim. Os editores e as universidades são os grandes responsáveis num terreno em que a batota e a irresponsabilidade dos políticos (de todos os partidos) foi a nota principal. Talvez venham a arrepender-se amargamente. Acabo de ler no Público um artigo do engº Vasco Teixeira, que era contra o acordo mas mandou aplicá-lo nas suas edições escolares, a reconhecer a perspectiva desastrosa criada pelo facto de Angola e Moçambique não terem ratificado o dito. Temos agora três grafias e a perspectiva de perder um negócio avultado de exportação de livros para esses países. Não é propriamente a descoberta da pólvora. Desde 1986 que eu venho a alertar para isso.
Quais pensa terem sido as verdadeiras motivações deste acordo?
Além daquilo que disse na resposta à primeira pergunta, as causas terão sido uma chocante desactualização científica no plano da linguística, uma metafísica aberrante e ultrapassada sobre o «império» da língua portuguesa, e provavelmente a intenção do negócio editorial para o Brasil tomar conta dos mercados africanos.
Pedro Passos Coelho terá escrito um email, antes de ser primeiro-ministro, em que manifestava reservas ao acordo (está hoje reproduzido em inúmeras páginas da internet e, que se saiba, nunca desmentiu que o tivesse escrito). Quando o Parlamento, em 2008, aprovou a entrada em vigor do AO, Paulo Portas absteve-se, contrariando o sentido de voto maioritário da sua bancada. Francisco José Viegas afirmou há dias que há coisas que devem ser aperfeiçoadas neste AO e que está convencido de que será ainda possível fazê-lo até 2015. Tendo em conta que estamos a falar do primeiro-ministro e dos responsáveis pelos Negócios Estrangeiros e pela Cultura, parece-lhe que ainda pode haver esperança numvolte-face?
Costumo dizer que enquanto há língua, há esperança. A sociedade civil tem dado lições nesta matéria. A sociedade política não soube ainda aproveitá-las.
Algumas vozes, como a da ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, julgam que este AO dificilmente será abandonado de vez, mas sugerem uma espécie de terceira via, que passaria por uma revisão mais ou menos radical do seu conteúdo. Argumentam que o facto de este estar a ser criticado por figuras credenciadas em todos os países signatários deveria tornar possível levar os vários governos envolvidos a aceitar uma revisão. O que pensa desta possibilidade?
Uma revisão implica um novo tratado. Vamos a ver o que acontece: se Angola e Moçambique continuarem a não ratificar o acordo, como espero, as autoridades portuguesas terão de encontrar uma solução, que vai sair-nos muito cara. De resto não é difícil atalhar as coisas: nem o acordo está em vigor (porque não entrou em vigor na ordem jurídica internacional e por isso não pode entrar em vigor na ordem jurídica nacional), nem existe o vocabulário ortográfico comum que é pressuposto da sua aplicação. Quer dizer: cumprir o acordo será, neste momento, não o cumprir e, sobretudo, não adoptar a pantomina vocabular que anda por aí a ser aplicada como se do tal vocabulário se tratasse. Se se tratasse agora de estabelecer o vocabulário com intervenção de instituições dos países signatários, podia-se suspender o acordo, e ninguém perderia a face.
Além de criticar diversos aspectos do conteúdo do AO, tem-se destacado, entre os seus opositores, por trazer à colação argumentos de carácter jurídico, defendendo que, nas presentes circunstâncias – ou seja, com o tratado de 1990 ainda à espera das ratificações de Angola e Moçambique –, o acordo não pode entrar em vigor. Quer resumir os argumentos que o levam a sustentar esta posição?
Já o fiz acima, mas há ainda um ponto que deve ser tido em conta: a percentagem pretensamente exígua em que os defensores do acordo dizem que serão produzidas alterações na grafia da nossa língua baseia-se num vocabulário com 110.000 entradas. Ora, só o dicionário Houaiss tem qualquer coisa como 228.000. E o António Emiliano já chamou a atenção de que, no caso dos verbos afectados, cada um deles terá de ser multiplicado por 40 ocorrências…
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