EK é Professor em diversas Universidades do Estado de Turíngia, na Alemanha. A sua tese de doutoramento é uma grossa reflexão de 4 volumes e meio intitulada "Ensaio sobre a Dinâmica Contratual Consoante o Credor - Contributo para uma Teoria Dinâmica do Dinamismo Contratual". O meio volume é apenas a bibliografia consultada. Esta interessante obra, que está a marcar a ciência jurídica contemporânea, procura explicar a razão de haver contratos com destinos muito diferentes consoante as partes envolvidas. O Professor Krause deslocou-se a Portugal na semana passada, pois parece que somos o país mais avançado do mundo nesta matéria, e realizou trabalho de campo valioso. Em rigoroso exclusivo, as notas do Professor Krause na sua viagem a Portugal:
"Portugal, que já deu novos mundos ao mundo", surpreendeu-me; afinal, Portugal também está a dar novos contratos ao mundo. Procurei por tantos países experiências que comprovassem as minhas teses, mas nunca tinha encontrado nada assim. Para simplificar, fiz uma categorização dos tipos raros de contratos que descobri e que nunca tinham sido observados a olho nu:
1. Contratos-fingimento - Esta curiosa categoria de contratos é muito surpreendente. Trata-se de contratos em que uma das partes assume plenamente que as suas obrigações não são para cumprir, sabendo, de antemão, que a outra parte não irá exigir o seu cumprimento, nem se preocupar muito com o assunto. São muito utilizados quando há compras a empresas alemãs de material militar ou quando se vendem empresas à China. Determina-se que as empresas estrangeiras têm que construir fábricas ou fazer outros investimentos, mas, passado uns tempos, o dinamismo contratual inerente faz com que essas obrigações desapareçam e fiquem adiadas até ver. É um extraordinário exemplo de obrigações contratuais descartáveis, uma brilhante inovação portuguesa.
2. Contratos-de-pedra - Dei este nome imortal a esta categoria de contratos. São contratos que vivem, sobrevivem e tornarão a viver para todo o sempre. Trata-se mesmo de uma situação de imobilismo contratual que daria para criar toda uma nova tese da ciência dos contratos. São contratos tão inalteráveis e rigídos que até dão para partir a cabeça de arremesso, se for necessário. Quando se discute a sua alteração, decide-se sempre que não podem ser alterados sob pena de o Estado de Direito acabar já amanhã. Exemplos destes contratos envolvem sempre investimentos avultados em contratações público-privadas e pagamentos ao Estado relacionados com energia. Admirável mundo novo contratual português!...
3. Contratos de requalificação - Esta espécie exótica de contratos é uma originalidade portuguesa. Diria mesmo que no glorioso firmamento contratual, esta é a espécie que cintila destacada de todas as outras. Trata-se de contratos de trabalho que contém em si os germes da sua própria destruição. Eu explico. Através da celebração de um contrato de trabalho, poderá haver lugar à requalificação. Só que não é a requalificação do trabalhador. É mesmo a requalificação do contrato, que passa a ser requalificado na sua não existência. Ou seja, através da requalificação, faz-se desaparecer o contrato num golpe de magia. O contrato e o trabalhador. De génio. Estes portugueses sabem o que fazem.
4. Contratos-não contratos - Foi este o contrato pelo qual me apaixonei e ao qual gostava de dedicar a minha obra final. Um contrato que se nega a si próprio. Um contrato que é em si um não contrato. Um contrato que nega a sua própria existência numa vertigem demente. Um contrato que se contorce e desaparece. O exemplo mais típico e acabado deste contrato são os contratos envolvem pensões de reforma do Estado. Num momento, existem. No outro, não. Num momento, pode haver pensão. Passado uns meses, pode haver outra pensão bem mais baixa. E tudo com o mesmo contrato. No fundo, não existe contrato nenhum. Desde o astrolábio náutico que os portugueses não inventavam algo tão genial."
"O mundo da realidade tem os seus limites. O mundo da imaginação não tem fronteiras." J.J. Rousseau ||| Faz mais ruído uma árvore que cai do que uma floresta a crescer.
quinta-feira, 30 de abril de 2015
O SONHO DOS RATOS
Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade.Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade…Bem pertinho é modo de dizer.
Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho…Os ratos odiavam o gato.
Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…
Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…
- O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.
- Socializaremos o queijo, dizia outro.
Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções.
Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”…
Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era.
O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu.
Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem.
Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram.
Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si.
Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projecto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:
“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”.
Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido.
O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra.
Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.
“Qualquer semelhança com factos reais é mera coincidência!”
Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho…Os ratos odiavam o gato.
Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…
Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…
- O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.
- Socializaremos o queijo, dizia outro.
Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções.
Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”…
Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era.
O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu.
Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem.
Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram.
Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si.
Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projecto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:
“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”.
Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido.
O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra.
Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.
“Qualquer semelhança com factos reais é mera coincidência!”
MARCO ANTÓNIO COSTA
Ex-dirigente do PSD denuncia Marco António Costa à PJ e à PGR
Paulo Vieira da Silva, ex-dirigente do PSD, enviou às autoridades uma denuncia contra o vice-presidente do partido e aquilo que considera a "rede", "homens de mão" e tráfico de influências do porta-voz social -democrata. Leia a acusação na íntegra.
Miguel Carvalho Sexta Feira, 24 de Abril de 2015
Actualmente empresário, este ex-dirigente social-democrata acusa, entre outras coisas, o vice-presidente e porta-voz do partido do Governo de ter promovido a "colonização" da Câmara de Gaia no tempo de Luís Filipe Menezes "com " amigos e boys "", com o objectivo de "" alimentar " alguns e para " pagar favores " a outros". Segundo refere, o secretário de Estado da Segurança Social, Agostinho Branquinho, os deputados Miguel Santos e Adriano Rafael Santos, e o presidente da distrital do PSD/Porto Virgílio Macedo, serão alguns dos "homens de mão" de Marco António. "No plano político", escreve aquele antigo dirigente, o vice-presidente do PSD "faz a gestão da escolha dos nomes das listas de deputados e dos candidatos às mais diversas autarquias, e com a sua influencia politica, vai conseguindo nomear dirigentes concelhios, familiares destes, e seus amigos, para gabinetes ministeriais, para diversos lugares na administração pública, que vão desde as administrações hospitalares, passando por lugares nas diversas delegações regionais e intermunicipais, pela administração da APDL, pela Lipor, por cargos intermédios de gestão na Administração Pública, entre muitos outros, reservando sempre para os "SHM [Seus Homens de Mão]" "os lugares mais apetecíveis". No caso da distrital do PSD, o objetivo é "arregimentar avenças nas áreas financeiras, contabilísticas e jurídicas para os seus homens de mão". Paulo Vieira da Silva dá como exemplo o caso de Virgílio Macedo, cuja empresa possuiu ou possui "diversas avenças milionárias como Revisor Oficial de Contas em diversas autarquias e empresas municipais no Distrito e no País".
Pugnando pela "moralização da vida política e pública" e "pela separação da política e dos negócios", aquele antigo conselheiro distrital e nacional do PSD fala ainda, no seu texto, das ligações suspeitas de Marco António Costa ao advogado Bolota Belchior, que terá servido os "interesses pessoais" do ex-vice-presidente da Câmara de Gaia e do PSD.
O autor do texto disponibilizou-se para "prestar todos os esclarecimentos" que as autoridades "entendam úteis ou necessários". Contactado pela VISÃO, o gabinete de imprensa do PSD esclareceu que Marco António Costa decidiu avançar com uma participação criminal contra Paulo Vieira da Silva.
segunda-feira, 20 de abril de 2015
Adversários do Acordo Ortográfico reclamam referendo
LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 20/04/2015
Um fórum realizado na Universidade de Lisboa aprovou uma moção a defender que o Acordo Ortográfico de 1990 deve ser referendado. Os defensores do tratado acham que o esforço de unificação da língua compensa as eventuais imperfeições do AO.
Os subscritores da moção acham que o AO falhou o seu objectivo de “unificação das variantes do Português” e que a “alegada simplificação” que trouxe “corresponde a uma total insegurança ortográfica”. Do outro lado, os que defendem o AO – incluindo o seu principal negociador pelo lado português, Malaca Casteleiro, que o PÚBLICO ouviu –, não negam imperfeições ou incongruências, mas acham que é um pequeno preço a pagar por uma ortografia unificada.
E, se o jurista Ivo Miguel Barroso tiver razão, ainda haverá algum tempo para discutir o assunto antes de se esgotar o prazo de transição estabelecido para a aplicação do AO. Na sua intervenção na FLUL, Barroso procurou demonstrar, contrariando a interpretação oficial, que esse prazo não termina em Maio próximo, mas sim em Setembro de 2016, já que os seis anos previstos não devem ser contados, defende, a partir da data em que se procedeu ao depósito da ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do AO, mas da data da publicação no Diário da República (DR) do aviso dessa ratificação, o que só veio a acontecer em Setembro de 2010.
O jurista é também um dos dinamizadores de uma acção popular judicial levada ao Supremo Tribunal Administrativo, que requer a não-aplicação do AO no ensino público do 1.º ao 12.º ano, argumentando com a inconstitucionalidade da Resolução do Conselho de Ministros n.º8/2011, de 25 de Janeiro, que impôs o AO na administração do Estado a partir de Janeiro de 2012, e determinou que o acordo era aplicável ao sistema educativo logo no ano lectivo de 2011/12. “Espero que o tribunal tome uma decisão antes de começarem os primeiros exames, até porque se trata apenas de matéria de Direito”, disse Ivo Miguel Barroso ao PÚBLICO.
Tomada poucos meses antes de o Governo de Sócrates cair na sequência do chumbo do PEC IV, a resolução em causa antecipou em vários anos a aplicação do AO em sectores fundamentais da sociedade portuguesa e foi instrumental na criação de um facto consumado, levando, por exemplo, os editores de manuais escolares a adoptar um acordo ao qual muitos deles se tinham sempre oposto, como foi o caso de Vasco Teixeira, da Porto Editora.
Na reunião da FLUL, onde intervieram figuras como António Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, a ensaísta Maria Filomena Molder, o poeta Gastão Cruz, o escritor e colunista Pedro Mexia ou o humorista Ricardo Araújo Pereira, o tradutor Miguel Francisco Valada levou uma série de exemplos que parecem demonstrar que o AO veio criar instabilidade ortográfica onde esta não existia.
377 “fatos”
A par de inúmeros exemplos de erros de português que poucos dariam antes de surgir o AO, como “fato” ou “contato”, e que agora são frequentes em jornais e televisões, mas também em universidades ou no Parlamento – até o próprio texto do AO regista alguns –, Valada apresentou uma tabela em que conta o número de vezes que algumas destas grafias erradas ocorrem noDiário da República (DR). Em 2009 não aparece nenhum “fato” ou “fatos”, mas em 2012, o ano em que o DR começa a ser redigido segundo o AO, Valada detectou 377 ocorrências.
A tabela foi entregue na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, mas sem nenhum resultado prático, explicou Valada. Um silêncio que simboliza a dificuldade com que se defrontam os que ainda não desistiram de tentar travar o acordo: do outro lado raramente encontram interlocutores para uma discussão séria sobre o conteúdo do AO.
“As vias políticas estão bloqueadas”, reconhece Ivo Miguel Barroso, lembrando que o tratado e os posteriores protocolos modificativos foram sempre aprovados “por largas maiorias” no Parlamento, que três Presidentes da República – Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva – o ratificaram, e que o actual líder da oposição, o socialista António Costa, é um assumido defensor do AO.
Garantido o apoio dos grupos parlamentares do PSD e do PS – apesar da oposição de alguns raros deputados, como Manuel Alegre –, e com o AO a ser aplicado há quatro anos lectivos no ensino e a generalizar-se cada vez mais na edição e nos media, é compreensível que os seus defensores não tenham interesse em promover agora uma grande discussão pública.
Entre as iniciativas promovidas nos últimos anos contra o AO, Valada recordou o Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa, uma petição lançada em Maio de 2008, e que um ano depois, quando foi apreciada no Parlamento, já tinha recolhido mais de 115 mil assinaturas válidas, entre as quais se contavam as de Eduardo Lourenço, Vitorino Magalhães Godinho, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Vasco Graça Moura ou José Pacheco Pereira.
E antes disso, em 2005, quando o Governo de José Sócrates se preparava para ratificar o 2.º Protocolo Modificativo – destinado a permitir que o AO pudesse entrar em vigor sem a ratificação de todos os países signatários do tratado original (Angola e Moçambique ainda hoje não o fizeram) –, foi pedido, através do Instituto Camões, um conjunto de pareceres a várias instituições e especialistas. Descontado o da Academia das Ciências, da autoria do próprio Malaca Casteleiro, todos os outros oscilavam entre as críticas severas e a sugestão de que o processo deveria ser imediatamente suspenso, como o fez a Associação Portuguesa de Linguística. O próprio Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), hoje o principal instrumento de aplicação do acordo, afirmava que o AO “terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas normas, sobretudo na língua escrita no âmbito da Internet”.
Fingir que não ouvem
Para os adversários do AO, este não unifica a língua, como se propunha, e ao admitir um grande número de facultatividades – “Electrónica e Electrotecnia” poderá ser escrito de 32 formas diferentes sem violar o AO – contraria o próprio conceito de ortografia. E lembram que as grandes diferenças que separam as variantes portuguesa e brasileira da língua não são ortográficas, são lexicais, semânticas e morfossintácticas.
Com diferenças regionais e índices de iliteracia pouco comparáveis com os de Portugal, o Brasil tem problemas próprios no domínio da língua que poderemos estar a importar com este acordo. É o que defende Ivo Miguel Barroso, que acha que “o AO é desnecessário” e que “mais vale haver duas variantes: entendíamo-nos perfeitamente, e agora um brasileiro lê ‘receção’ e não sabe o que é”.
Do outro lado da barricada, os defensores acham que a “deriva ortográfica” entre Portugal e o Brasil ameaçava o futuro do português como língua mundial e crêem que uma ortografia mais próxima da fonética facilita a aprendizagem. Uma convicção partilhada pelos três apoiantes do AO que o PÚBLICO ouviu.
O argumento clássico contra esta convicção é o das crianças inglesas, que aprendem com aparente sucesso uma ortografia cuja relação com a pronúncia é bastante remota. E Vasco Graça Moura, numa entrevista ao autor deste artigo originalmente publicada na revista Cão Celeste (e que poder ler no PÚBLICO online), lembra que “as desgraçadas criancinhas” alemãs aprendem a escrever palavras como “Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän” [“capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]. E os alunos de gronelandês ocidental não têm melhor sorte. Francisco Miguel Valada trouxe ao fórum da FLUL, para a endereçar aos promotores do AO, uma palavra deste idioma, “Tusaanngitsuusaartuaannarsiinnaanngivipputit”, que em português significa, explicou, “não podem estar permanentemente a fingir que não estão a ouvir”.
O linguista João Malaca Casteleiro, negociador do AO e redactor da sua Nota Explicativa, admite que este “não é perfeito, não unifica completamente a ortografia, porque não foi possível”, e “tem algumas incongruências”. Mas defende que o acordo veio pôr fim a uma “deriva ortográfica que durava há um século”.
Salientando que se trata de um acordo, e não de uma reforma, diz que “se houve cedências etimológicas, o Brasil também cedeu na acentuação, suprimindo o trema, bem como os acentos agudos em palavras como ‘ideia’ e ‘assembleia’”.
De resto, a supressão das consoantes mudas parece-lhe positiva, uma vez que “não existem na pronúncia e não faz sentido mantê-las na escrita”. Mas também reconhece que, “se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”. Se Portugal tivesse envolvido o Brasil na reforma de 1911, diz, “o problema tinha ficado resolvido”.
O conselho de Verney
Já o linguista Fernando Cristóvão acha que a oposição ao AO é “uma coisa doentia” e lembra que o acordo foi aprovado pela AR e ratificado por Mário Soares em 1991. E aos que o encaram como uma concessão ao Brasil, lembra que “as mudanças que se fizeram com este acordo já tinham sido reclamadas em 1746 pelo português Luís António Verney”, que na obra O Verdadeiro Método de Estudar defende que os portugueses “devem escrever a sua língua da mesma sorte que a pronunciam”.
Se Cristóvão é um defensor de que a ortografia se aproxime tanto quanto possível da pronúncia, já D’Silvas Filho, pseudónimo literário de um consultor do site Ciberdúvidas e autor do livro Prontuário - Erros Corrigidos de Português (Texto, 2012), embora tenha apoiado o AO “desde a primeira hora”, acha que este pode ter propiciado interpretações que "levaram longe de mais a prioridade ao critério fonético”. Uma crítica em que está sintonizado com os adversários do AO.
Já não subscreve, no entanto, outra crítica recorrente: a que censura a este acordo a proliferação de duplas grafias facultativas. Dada a impossibilidade de as evitar, o que parece crucial a D’Silvas Filho é que tanto Portugal como o Brasil incorporem nos seus vocabulários ortográficos nacionais ambas as variantes. E a sua posição é a de que qualquer grafia registada no Vocabulário Ortográfico Português é de uso legítimo em Portugal.
O linguista lamenta que os que se opõem ao AO “não vejam a vantagem extraordinária que há em unir a língua”, elogia os progressos do recém-apresentado Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser desenvolvido pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), da CPLP, e que congrega já os vocabulários nacionais de alguns dos países que ratificaram o acordo, e congratula-se por “estarmos a caminho de poder organizar um dicionário para esta língua planetária”.
Mas o seu entusiamo não o impede de criticar o que lhe parece menos conseguido. Preferia, por exemplo, que “pára” mantivesse o acento, ou que “braço-de-ferro” não tivesse perdido os hífenes.
“Devem fazer-se aperfeiçoamentos”, diz, e espera que se possa aproveitar o actual trabalho no âmbito do IILP para melhorar o AO, mas acha que, “depois de todo o trabalho feito, não faria sentido suspender o acordo” para o corrigir.
“A pronúncia da língua corre o risco de ser desfigurada a breve prazo”
LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 20/04/2015
Esta entrevista a Vasco Graça Moura foi originalmente publicada em Abril de 2012, no número inaugural da revista O Cão Celeste, dedicado ao tema da ortografia, e reproduzimo-la aqui com a devida autorização.
Quando a maior parte dos portugueses mal tinha ainda ouvido falar do Acordo Ortográfico (AO), Vasco Graça Moura foi um dos primeiros a perceber o que estava em causa e a assumir publicamente a sua oposição. Se há um rosto da luta contra o acordo, é o dele. Pela persistência, pela qualidade da argumentação, e até pela coragem, já que correu óbvios riscos políticos ao decidir suspender a aplicação do AO no Centro Cultural de Belém, para o qual acabara de ser nomeado.
Respondendo ao jornalista Luís Miguel Queirós, que o entrevistou por escrito para O Cão Celeste, considera que o risco mais grave que este acordo coloca é o de a pronúncia da língua vir a ser desfigurada já nas próximas gerações. Uma catástrofe que não foi atempadamente travada por quem a podia travar: políticos de todos os partidos, universidades, editores. Mas aos que acham que já é tarde para entrar numa guerra de antemão perdida, o poeta e tradutor Vasco Graça Moura lembra que “enquanto há língua, há esperança”.
Cão Celeste: Num livrinho de divulgação do Acordo Ortográfico (AO), João Malaca Casteleiro e Pedro Dinis Correia inventariam alguns argumentos que justificariam a pertinência do AO. Um deles reza assim: “Torna-se imperioso pôr cobro a uma deriva ortográfica de quase um século”. Tendo em conta que, ao longo do dito século, o português do Brasil se alterou a um ritmo francamente mais intenso do que o de Portugal, este AO não é, no essencial, uma tentativa – que as intocadas diferenças sintácticas e lexicais bastariam para votar ao fracasso – de forçar o português de Portugal a dar uma espécie de salto gigantesco para recuperar o “terreno perdido” para o do Brasil?
Vasco Graça Moura: Este acordo decorre de várias causas concomitantes: a obsessão da unificação ortográfica, que remonta pelo menos aos anos 30 do século XX, a reutilização de um dispositivo autoritário e que teria sido posto em marcha por dois regimes autoritários em 1945, de um modo impensado e sem atender às transformações geopolíticas, a permanência de uma atitude colonialista, ignorando necessidades ortográficas dos PALOP’s, a transposição quase mecânica de coisas que vinham de 1945, não se atentando em que a própria Linguística evoluiu muito. Por exemplo: o que é que significa uma «pronúncia culta» da língua? Quem estudou as pronúncias cultas? Quantas são? A de Luanda? a de São Luís do Maranhão? a do Maputo? a de Bragança? Outras? Ora é esse conceito indeterminado e indeterminável que é usado como referência para a supressão das impropriamente chamadas consoantes mudas. O que ainda por cima é agravado pelo acolhimento das chamadas «grafias facultativas», que em caso algum eram admitidas em 1945. O português de Portugal acabou por não dar salto nenhum: abriu a porta a uma terceira via ortográfica, que é a situação perfeitamente estúpida – e anti-acordo – que se está a viver.
O AO alteraria – de chofre, por assim dizer – o português europeu, mas nada indica que alterasse os seus padrões de evolução futuros. Dado que as duas variantes evoluem, mesmo ao nível ortográfico, e também na cadência de introdução de novos termos, a ritmos manifestamente diferentes, não iríamos precisar de constantes actualizações impostas por decreto para acompanhar o passo acelerado da variante brasileira?
O problema principal para nós (e para os mais de 50 milhões de seres humanos que seguem a norma portuguesa) é o de a pronúncia da língua correr o risco gravíssimo de ser desfigurada a breve prazo. Há outros problemas, mas esse é o mais grave. As próximas gerações portuguesas e africanas tenderão a ler «setor», «receção», «deceção», etc., sem acentuarem a primeira vogal. Já Óscar Lopes, há 25 anos, pensava que «adoção» (de adoptar) conduziria os africanos a pronunciarem «adução» (de aduzir) .Outros problemas prendem-se com o absurdo das regras do hífen e das maiúsculas. Não sei como é que seriam incorporadas as actualizações, num tratado que envolveu sete países e que já teve também a adesão de Timor. Repare que, como disse acima, nem sequer se fixaram regras para a incorporação de vocábulos de origem africana. E, no mínimo, seria necessário que estivesse fixado o Vocabulário Ortográfico Comum (exigido pelo acordo e que não existe). A partir dele, seria possível deduzir algumas regras mais ou menos estáveis para as actualizações.
Outro argumento invocado por Casteleiro e Correia é o de que o português é língua de trabalho de várias organizações internacionais, sendo por isso “urgente” que disponha de uma ortografia unificada. Dadas as já referidas diferenças sintácticas e lexicais, e tendo ainda em conta a profusão de duplas grafias que este AO consagra, não lhe parece que só por milagre um mesmo texto, ainda que breve, poderia seria escrito de forma absolutamente idêntica por um português e um brasileiro?
É um argumento sem qualquer consistência. Até agora nunca houve nenhum problema em nenhuma organização internacional. Na União Europeia, nos dez anos em que fui deputado, nunca houve o mínimo inconveniente por razões ortográficas. E lá existem inúmeros tradutores e intérpretes brasileiros. As diferenças complicadas e relevantes são semânticas. Suponha-se uma regulamentação internacional sobre transportes ferroviários que envolva Portugal e o Brasil: nós escreveríamos «comboios», enquanto os brasileiros escreveriam «trens». Não há acordo ortográfico que resolva estas questões… De resto, o acordo já consagra uma série de diferenças, por exemplo no tocante à acentuação de certas esdrúxulas: económico / econômico, anatómico / anatômico, etc., etc.
O terceiro argumento esgrimido pelos mesmos autores é de “natureza pedagógica”. Uma só ortografia, sustentam, tornaria a aprendizagem mais fácil nos vários países em que, “por esse Mundo fora” se ensina o português. Aceita esta alegação?
O terceiro argumento esgrimido pelos mesmos autores é de “natureza pedagógica”. Uma só ortografia, sustentam, tornaria a aprendizagem mais fácil nos vários países em que, “por esse Mundo fora” se ensina o português. Aceita esta alegação?
Não chega a ser um argumento. É uma infantilidade. Nos países em que por esse mundo fora se ensina o português, se se tratasse da França, da Alemanha, da Espanha, ou dos Estados Unidos, seria mais fácil ensinar o português a partir de grafias como «acção» ou «redacção», para dar só dois exemplos, porque o parentesco etimológico com as línguas deles seria mais visível.
Ainda no domínio da pedagogia, os defensores do AO, que assumem que este acordo privilegiou o critério fonético em detrimento do etimológico, têm insistido na ideia de que aproximar a ortografia da fonética facilita a aprendizagem. Admitindo que é verdade, não lhe pareceria mais sensato melhorar o ensino do que “baixar” a língua ao nível das presumidas (in)capacidades dos alunos?
É outra falácia. A escrita é uma convenção. Que dizer das desgraçadas criancinhas alemãs, francesas ou inglesas, que têm de aprender ortografias inverosímeis relativamente à maneira de as palavras serem pronunciadas. Por exemplo: Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän [traduzível por “capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]… ou espoir, ouenough? Deve ser por causa dessa argumentação que no Dicionário da Academia, que o Prof. Malaca dirigiu, encontramos este mimo: croissã paracroissant… As criancinhas devem ficar muito edificadas.
Percebe a razão de a subestimação da etimologia levar os autores do AO a suprimir, por exemplo o “c” em acto – fechando o “a” inicial, criando uma nova homógrafa, ocultando a raiz latina da palavra e distanciando o português de outras línguas europeias, como o francês, o inglês e o alemão – e, ao mesmo tempo, o critério etimológico ser invocado para manter, por exemplo, a dupla grafia “húmido / úmido”?
Já abordei a questão acima. Quando convém aos negociadores do acordo, invocam o uso ou a tradição, sem qualquer critério e sem qualquer espécie de lógica. Tratam as coisas como quem maneja um funil, ora pegando na parte larga, ora na parte estreita.
Não lhe parece que, de um modo geral, despojar as palavras dos seus traços etimológicos torna mais difícil, a alguém que se confronta com uma palavra que não conhece, deduzir o seu provável significado por analogia com outras palavras que partilhem a mesma raiz?
É claro que sim, e esse era um dos limites judiciosamente tidos em conta pelo acordo de 1945. As tais consoantes mudas, entre outros casos, eram mantidas após as vogais a, e ou o, quando não fosse invariável o seu valor fonético e ocorressem a seu favor outras razões, tais a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas, e ainda quando influíssem no timbre das referidas vogais (exemplos destes casos: acepção, adopção, abjecção, acção, arquitectura, circunspecção, contrafacção, projectar, retroactivo...). E também quando, embora mudas, devessem harmonizar-se com formas afins (exemplos: abjecto / abjecção, carácter / caracteres / didáctico / didactismo, insecto / insecticida).É importante manter a mesma imagem gráfica para o mesmo morfema lexical, de modo a facilitar-se o reconhecimento lexical na língua escrita. De resto, a "unidade românica" ultrapassa as próprias línguas latinas, abrangendo, em particular, uma grande parte do léxico em inglês, que é de origem latina.
Um dos argumentos mais frequentes dos entusiastas do AO é o de que a lógica de quem o contesta, a ter sido seguida no passado, faria com que ainda hoje escrevêssemos “pharmácia” e “photographia”. São estes dois os exemplos mais invocados. Tendo em conta que o francês e o inglês, que usam o “f” inicial em inúmeras palavras, abrem excepção para estas duas e para as que partilham a mesma etimologia (o mesmo é verdade para o alemão, salvo no caso de farmácia, já que Apotheke vem de outra palavra grega), acha que seria assim tão escandalosamente anacrónico que ainda hoje usássemos, nestes dois casos, o “ph”?
Os acordistas lançam mão do argumento mais estúpido e manipulador que lhes podia ocorrer. Nenhum dos ataques ao acordo visou restaurar dígrafos como «ph». Aqueles é que inventam o argumento, à falta de melhor… Note aliás que nenhum dos argumentos de fundo contra o acordo foi rebatido. Está-se no reino do «porque sim». Agora, em teoria, a mim não me repugnava nada escrever pharmacia ou philosophia. Teria de o fazer se escrevesse em francês ou inglês…
Não acha que, a par dos autores do AO e dos governantes portugueses que fizeram dele cavalo de batalha, como foi o caso do ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro no governo de José Sócrates, a responsabilidade pelo facto de a luta contra este acordo poder ser já uma guerra perdida cabe também, em larga medida, a alguns editores portugueses, e em particular aos que dominam o mercado do livro escolar?
Acho que sim. Os editores e as universidades são os grandes responsáveis num terreno em que a batota e a irresponsabilidade dos políticos (de todos os partidos) foi a nota principal. Talvez venham a arrepender-se amargamente. Acabo de ler no Público um artigo do engº Vasco Teixeira, que era contra o acordo mas mandou aplicá-lo nas suas edições escolares, a reconhecer a perspectiva desastrosa criada pelo facto de Angola e Moçambique não terem ratificado o dito. Temos agora três grafias e a perspectiva de perder um negócio avultado de exportação de livros para esses países. Não é propriamente a descoberta da pólvora. Desde 1986 que eu venho a alertar para isso.
Quais pensa terem sido as verdadeiras motivações deste acordo?
Além daquilo que disse na resposta à primeira pergunta, as causas terão sido uma chocante desactualização científica no plano da linguística, uma metafísica aberrante e ultrapassada sobre o «império» da língua portuguesa, e provavelmente a intenção do negócio editorial para o Brasil tomar conta dos mercados africanos.
Pedro Passos Coelho terá escrito um email, antes de ser primeiro-ministro, em que manifestava reservas ao acordo (está hoje reproduzido em inúmeras páginas da internet e, que se saiba, nunca desmentiu que o tivesse escrito). Quando o Parlamento, em 2008, aprovou a entrada em vigor do AO, Paulo Portas absteve-se, contrariando o sentido de voto maioritário da sua bancada. Francisco José Viegas afirmou há dias que há coisas que devem ser aperfeiçoadas neste AO e que está convencido de que será ainda possível fazê-lo até 2015. Tendo em conta que estamos a falar do primeiro-ministro e dos responsáveis pelos Negócios Estrangeiros e pela Cultura, parece-lhe que ainda pode haver esperança numvolte-face?
Costumo dizer que enquanto há língua, há esperança. A sociedade civil tem dado lições nesta matéria. A sociedade política não soube ainda aproveitá-las.
Algumas vozes, como a da ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, julgam que este AO dificilmente será abandonado de vez, mas sugerem uma espécie de terceira via, que passaria por uma revisão mais ou menos radical do seu conteúdo. Argumentam que o facto de este estar a ser criticado por figuras credenciadas em todos os países signatários deveria tornar possível levar os vários governos envolvidos a aceitar uma revisão. O que pensa desta possibilidade?
Uma revisão implica um novo tratado. Vamos a ver o que acontece: se Angola e Moçambique continuarem a não ratificar o acordo, como espero, as autoridades portuguesas terão de encontrar uma solução, que vai sair-nos muito cara. De resto não é difícil atalhar as coisas: nem o acordo está em vigor (porque não entrou em vigor na ordem jurídica internacional e por isso não pode entrar em vigor na ordem jurídica nacional), nem existe o vocabulário ortográfico comum que é pressuposto da sua aplicação. Quer dizer: cumprir o acordo será, neste momento, não o cumprir e, sobretudo, não adoptar a pantomina vocabular que anda por aí a ser aplicada como se do tal vocabulário se tratasse. Se se tratasse agora de estabelecer o vocabulário com intervenção de instituições dos países signatários, podia-se suspender o acordo, e ninguém perderia a face.
Além de criticar diversos aspectos do conteúdo do AO, tem-se destacado, entre os seus opositores, por trazer à colação argumentos de carácter jurídico, defendendo que, nas presentes circunstâncias – ou seja, com o tratado de 1990 ainda à espera das ratificações de Angola e Moçambique –, o acordo não pode entrar em vigor. Quer resumir os argumentos que o levam a sustentar esta posição?
Já o fiz acima, mas há ainda um ponto que deve ser tido em conta: a percentagem pretensamente exígua em que os defensores do acordo dizem que serão produzidas alterações na grafia da nossa língua baseia-se num vocabulário com 110.000 entradas. Ora, só o dicionário Houaiss tem qualquer coisa como 228.000. E o António Emiliano já chamou a atenção de que, no caso dos verbos afectados, cada um deles terá de ser multiplicado por 40 ocorrências…
O grande reformador
RUI TAVARES 20/04/2015
Mariano Gago fez o que fazem os grandes reformadores.
Mariano Gago foi generoso ao aceder àquele debate e polido a responder às perguntas, mas não facilitava — ou seja, não se moldava ao auditório. Nós estávamos sedentos de que nos dissessem o que queríamos ouvir; ele concordava connosco em parte, e na outra parte obrigava-nos a pensar.
Não fazíamos ideia de que ali estava o que viria a ser o governante mais importante para a nossa geração. Quando Guterres o nomeou Ministro da Ciência foi uma boa surpresa. E depois foi a revolução, uma revolução ao retardador de cujos efeitos só nos daremos completamente conta daqui a umas décadas.
Portugal teve alguns importantes reformadores na educação. Alguns, de Verney a António Sérgio, foram reformadores em potência, que influenciaram mas não governaram. Outros tiveram a possibilidade de concretizar as suas ideias. Mariano Gago pertenceu a esse grupo restrito. A sua acção política ficará para a história do conhecimento no nosso país como ficou a de Pombal ou Passos Manuel.
No fim da mesma década vi directamente o impacto dessa acção. Foi em Paris, na residência estudantil portuguesa da Cidade Internacional Universitária. Éramos das humanidades e das ciências, físicos e historiadores, músicos e antropólogos, biólogos e economistas. A maior parte com bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, fazendo mestrados e sobretudo doutoramentos. Vínhamos das ilhas e do continente, do litoral e do interior, de Trás-os-Montes e do Algarve e das ex-colónias. Acima de tudo, e talvez pela primeira vez de forma tão clara na história do país, éramos filhos de taxistas ou bancários, agricultores ou médicos, operários fabris ou gestores de empresas. Uma elite não elitista.
Claro que nem tudo estava por fazer antes de Mariano Gago. As universidades portuguesas já eram então bem melhores do que se pensava e dizia, ou aquela geração não se teria adaptado tão agilmente às melhores universidades do mundo. E não ficou tudo feito depois de Mariano Gago: depois de doutorados, muitos destes cientistas e estudiosos não puderam encontrar em Portugal a melhor forma de render o seu potencial. E claro que nem tudo o que Mariano Gago fez foi consensual ou mesmo positivo, da implementação do processo de Bolonha a uma certa insistência nos modelos excessivamente especializados e competitivos das ciências exactas. E claro que não o fez sozinho: na política como na academia, Mariano Gago teve aliados.
Ele fez o que fazem os grandes reformadores. O país deu um pulo, tanto na investigação científica de ponta como na disseminação da cultura científica. Do edifício que temos de construir, ele cavou alicerces, levantou paredes e traves mestras. Esse edifício, é verdade, está hoje em risco, mas há uma geração inteira para o defender.
Não haverá melhor homenagem para ele do que continuar a sua obra.
TERESA DE SOUSA 19/04/2015
Mariano Gago olhava-se como um servidor do Estado. Ou melhor, o Estado era para ser servido (de preferência pelos melhores) e não para se servirem dele.
1. Pensava escrever hoje sobre esta estranha tranquilidade que paira sobre a Europa nestes últimos dias. A Grécia continua no olho do furacão, mas às vezes até dá a ideia de que já ninguém se importa. Permanece a falta assustadora de visão política que vai para além do discurso dos défices e das reformas. Não o farei.
Sou obrigada a falar de Mariano Gago, que faleceu na sexta-feira aos 66 anos de idade. Há algumas coisas que sinto o dever de dizer, mesmo que não sejam as mais importantes.
Conheci-o na revolta estudantil de 1969. Os laços de cumplicidade que se forjaram aí resistem a tudo. Era presidente da Associação do Técnico, eu estava em Económicas mas a convivência era constante enquanto durou a crise. Não era um contestatário igual a muitos outros. Lia com certeza Marx e Engels, mas também os clássicos da literatura. Já era o que sempre foi. Mais preparado, mais inteligente, a ver um pouco mais longe do que a Grande Revolução Cultural Proletária. São estas as minhas memórias mais longínquas. A última vez que falámos foi no almoço de aniversário do dr. Soares, em Dezembro. Estava igual a si próprio, sempre afável, nem dei por que estivesse doente. Ontem vi na televisão um reconhecimento da sua obra bastante generalizado. Não consigo avaliar com rigor o grau de hipocrisia de algumas das declarações, mas, pelo menos, este reconhecimento do seu papel crucial para nos colocar em matéria científica muito mais próximo do nível dos países europeu mais desenvolvidos, significa alguma coisa. Por uma vez, o país teve sorte: Mariano Gago teve tempo para consolidar a sua política através do critério imbatível dos resultados, porque esteve doze anos, primeiro no Ministério da Ciência e, depois, da Ciência e do Ensino Superior. A breve interrupção de dois anos (Barroso-Santana) não chegou para destruir o que ele já deixara feito. Hoje, quando vemos os nossos cientistas a brilhar lá fora, mas também cá dentro, nos centros de investigação de excelência, ninguém pode negar aquilo que o país lhe deve. O mérito também é dos chefes dos Governos a que pertenceu. Em primeiro lugar, de António Guterres, com os Estados Gerais que organizou para lançar as bases do seu programa de Governo. Foi aí que Mariano Gago apresentou as suas propostas revolucionárias (é mesmo o termo, porque eram absolutamente contrárias ao status quo universitário, fechado, hierarquizado, feito de capelas e capelinhas que defendiam do alto das suas cátedras tudo o que os não pusesse em causa). A maioria das políticas que apresentou foi realizada. Abriu a ciência e o ensino superior ao mundo, incluindo a internacionalização da avaliação, apostou na criação de uma nova elite científica preparada lá fora, que não aprendeu só a ciência mas também o modo como ela era feita nos países mais avançados. Em suma, colocou-nos no mapa científico europeu, vencendo resistências que pareciam impossíveis de vencer tendo como meta a excelência. Hoje, se os miúdos começam de pequenos a entusiasmar-se pelas coisas científicas, é graças ao Ciência Viva. Sem alarde, deixou ao país um legado único e, verdadeiramente, a coisa mais importante que pode ainda garantir um futuro aos nossos filhos e aos nossos netos. Hoje, toda a gente lhe tece elogios, mas foi contestadíssimo enquanto governou pelos mesmos que agora se curvam perante o seu contributo nacional. Assisti a vários episódios desses. Lembro um. Quando Mariano Gago lançou as parcerias com algumas grandes universidades americanas, como o MIT, assisti de boca aberta, confesso, a críticas ferozes à sua mania das grandezas. Como sempre acontece neste país, os que diziam isso deixaram de falar sobre o assunto a partir do momento em que os resultados se tornaram óbvios.
Lembrarmo-nos disto tudo é tanto mais importante quanto a mentalidade da maioria que nos governa vai em sentido contrário e muita gente que lhe é afecta tenta convencer-nos todos os dias que criámos doutorados a mais e para nada. Olham para a ciência como uma fábrica de salsichas, que se liga ou desliga conforme as necessidades e ignoram um facto primordial: a ciência precisa de uma massa crítica vasta e sólida para produzir a excelência e competir lá fora. É o mesmo com a educação. Os países que hoje são ricos e desenvolvidos, acabaram com o analfabetismo no início do século XX. Nós, sem esse efeito acumulado e irrepetível, temos um esforço muito maior a fazer. E como não temos (nem podemos ter) salários mais baixos do que Marrocos ou o Vietname, também não temos grande alternativa a não ser utilizar aquilo que acumulámos. Perceber isto é quase intuitivo. Quando ouço pessoas a brandir contra o excesso de doutorados (nem sequer comparam com a média europeia, da qual só agora nos estamos a aproximar), alegando que não têm emprego, dá-me vontade de sacar, metaforicamente, da pistola. Sejam quais forem as dificuldades, esses doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que mais tarde ou mais cedo lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor. O saber que adquiriram é-lhes útil, mesmo para fazer outras coisas. Quando Passos Coelho vai ao Japão dizer que a nossa economia se prepara para ser um das mais competitivas do mundo (fiquei de boca aberta), não está a pensar nos doutorados, está a pensar nos salários baixos. O risco é que um dia destes as famílias, que compreenderam que deviam investir na educação dos filhos mesmo com imensos sacrifícios, comecem a achar que não vale a pena.
2. Perguntei a Manuel Castells, há já um bom par de anos, qual era o factor principal do poder norte-americano. Ele respondeu sem a menor hesitação: as suas universidades. Pode ser que um dia seja assim também por cá. O essencial está feito. Também já está parcialmente feita a outra parte, mais difícil, que é a transmissão do saber para as empresas. Valente de Oliveira e Mira Amaral, no final dos governos de Cavaco, tiveram a visão suficiente para criar a Agência de Inovação (1993) dedicada a essa transmissão. Era apenas uma instituição embrionária. Durante os doze anos que Mariano esteve no Ministério, ela funcionou com resultados verdadeiramente notáveis. Há hoje incubadoras nas melhores universidades para fomentar esta transferência. Os resultados acabarão por chegar.
Quando o país regressar à superfície, temos pelo menos um sólido ponto de partida para reconstruir a economia. Com as empresas descapitalizadas, com a quebra brutal do investimento público e privado, esta capacidade científica e tecnológica é o que nos resta para atrair o investimento estrangeiro de que precisamos como de pão para a boca. E é também o único caminho decente que nos resta para alimentar a esperança no futuro. O mérito nunca é só de um homem. Muita gente contribuiu para pôr em prática as suas políticas. Teve com certeza defeitos e até pode ter errado em alguma coisa. Fez o que era preciso.
Mas há outro lado da vida de Mariano Gago que é ainda mais raro, mesmo que comum a outras pessoas que conheço da sua geração. Olhava-se como um servidor do Estado. Ou melhor, o Estado era para ser servido (de preferência pelos melhores) e não para se servirem dele. E o Estado era ou devia ser uma coisa séria e um instrumento estratégico para ajudar a pensar o país. Pensava assim e a sua vida foi assim, mesmo quando essa visão era esmagada por uma moda ideológica que via no Estado um obstáculo burocrático e dispendioso. Era um grande cientista e tinha uma vasta cultura. Vale a pena reler o seu Manifesto para a Ciência em Portugal. Está lá quase tudo para perceber o que somos como país. Regressando a 1969, talvez seja também importante dizer que, antes de tudo, para ele era preciso conquistar a liberdade.
Mariano Gago com António Guterres numa visita ao Ipatimup, no Porto, em 1998 PAULO PIMENTA
TERESA FIRMINO 18/04/2015
Cinco minutos de paragem das actividades ao meio-dia, na segunda-feira.
Esta homenagem partiu de um grupo de investigadores como forma de reconhecimento público pela contribuição do antigo ministro da Ciência dos governos socialistas de António Guterres, entre 1995 e 2002, e de José Sócrates, entre 2005 e 2011. “Alguns de nós não gostaríamos de deixar de assinalar a sua passagem e o seu contributo para a ciência portuguesa”, referem em comunicado os autores da iniciativa, nos quais se incluem, entre outros, Alexandre Quintanilha, Carmo Fonseca, Manuel Heitor, Manuel Sobrinho Simões, Maria de Sousa, João Relvas, Maria Mota, Mário Barbosa e Teresa Paiva.
Mariano Gago era físico de partículas, que trabalhou, após o doutoramento em Paris, em 1976, no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), em Genebra, Suíça. Foi à frente da então Junta Nacional de Investigação Científica (JNICT), antecessora da actual Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que entre 1987 e 1989 se revelou um gestor de ciência e pôs a investigação científica na agenda política. Após a saída da JNICT, escreveu o livro Manifesto para a Ciência em Portugal, considerado um programa de governo para a investigação científica. Quando deixou de ser ministro, em 2011, regressou ao Instituto Superior Técnico de Lisboa, onde era professor catedrático, e ao Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), que presidiu até agora.
“O professor Mariano Gago impulsionou e marcou profundamente a ciência em Portugal nas últimas décadas, contribuindo decisivamente, enquanto presidente da [antecessora da] FCT e ministro da Ciência, para o desenvolvimento do sistema científico nacional em muitas das suas vertentes”, referem ainda os autores da homenagem de segunda-feira.
terça-feira, 14 de abril de 2015
Lugares-chave da Misericórdia são ocupados por militantes de PSD e CDS
Daí os Milhões de prejuízos da Misericórdia!
Transparência
José António Cerejo, Jornal Público, de 06/8/014
“Os serviços (da Casa Santa?!) da Misericórdia de Lisboa são controlados em grande parte, desde a posse de Santana Lopes, em Setembro de 2011, por pessoas próximas do provedor e dos membros da sua equipa, muitas delas com ligações directas ao PSD e ao CDS.
Não se trata propriamente de uma novidade, visto que a SCML é gerida há muito, tanto pelo PSD, como pelo CDS e pelo PS, numa lógica partidária.
Actualmente, porém, e tanto quanto é possível avaliar, esta lógica ganhou peso dentro da instituição.
A mesa, composta pelo provedor, vice-provedor e três vogais, é, por via dos estatutos, nomeada pelo primeiro-ministro e pelo ministro da Segurança Social.
Daí para baixo, as fidelidades políticas e pessoais destacam-se tradicionalmente entre os critérios de nomeação e contratação dos quadros e dirigentes.
Traçar um retrato rigoroso da distribuição de poder em função dessas filiações não é, todavia, tarefa fácil.
Desde logo porque não há informação disponível e suficiente sobre quem faz o quê ao nível das chefias e direcções da instituição. Tanto mais que,entre 2012 e 2013, o número dos seus dirigentes cresceu 23%, passando de 190 para 233.
O PÚBLICO pediu nos últimos meses informação detalhada sobre o assunto — atendendo a que a SCML, ao contrário das restantes misericórdias do país, é tutelada pelo
Estado —, mas não obteve resposta. Numa primeira fase, foi remetido para o site da instituição, onde apenas apareciam os nomes de parte dos dirigentes de topo, embora alguns deles não correspondessem a quem estava em funções. Recentemente, o site foi actualizado, mas continuam a não constar do mesmo os nomes dos dirigentes intermédios.
E, mesmo entre os directores e subdirectores, há muitos que lá não estão, como os do Departamento de Jogos, da direcção de aprovisionamento e da direcção dos assuntos jurídicos.
Em todo o caso, a consulta do site e outros dados recolhidos indiciam que a situação se agravou em relação ao mandato anterior, em que o provedor era o socialista Rui Cunha.
Começando pela mesa, além de Santana Lopes, dois dos seus vogais são membros importantes do PSD: Helena Lopes da Costa, ex-deputada e ex-vereadora da Câmara de Lisboa, quando Santana era presidente; ePaulo Calado, ex-vereador em Setúbal e sócio da sociedade de advogados Global Lawyers, criada por Santana Lopes.
No lugar de vice-provedor está Paes Afonso, um destacado militante do CDS que já integrou os seus órgãos nacionais. No tempo de Rui Cunha, para lá dele próprio, não havia outros socialistas de relevo na cúpula da Misericórdia.
Por outro lado, em lugares-chave encontram-se agora pessoas comoHelena do Canto Lucas, directora de Gestão Imobiliária, Irene Nunes Barata, directora de Aprovisionamento, e Teresa Paradela, subdirectora do Património, todas muito próximas do provedor. A primeira entrou como jurista para a EPUL no mandato de Santana Lopes na Câmara de Lisboae, em Setembro passado, integrou a lista do PSD à Câmara da Figueira da Foz, da qual Santana foi presidente entre 1998 e 2002. É casada com um advogado que partilhou com ela e com Santana Lopes um escritório em Lisboa, além de ser sócio deste na imobiliária Espaço Castilho.
A segunda foi directora do Departamento de Apoio à Presidência da Câmara de Lisboa no mandato de Santana. A terceira, além de arquitecta do quadro da câmara da capital, tem sido candidata a vários órgãos autárquicos em listas do PSD.
Entre os nomes conhecidos como próximos do provedor está tambémLídio Lopes, antigo vice-presidente da Câmara da Figueira e até há pouco líder histórico da concelhia local do PSD, que ocupa as funções de subdirector do Departamento de Qualidade e Inovação.
Em postos chave aparece igualmente Anabela Sancho, directora Operacional do Departamento de Jogos, que é casada com o antigo ministro do Turismo e dirigente do CDS Telmo Correia, o do Escândalo do Casino-Estoril-Sol.
Também a mulher do deputado centrista João Gonçalves Pereira, Joana Lacerda, desempenha funções na direcção de Aprovisionamento.
Ainda do lado do CDS encontra-se o nome de João Duarte Gomes, presidente da concelhia de Torres Vedras, que surge frequentemente como testemunha dos contratos celebrados com fornecedores pela directora de aprovisionamento.
Por outro lado, na direcção do Gabinete de Auditoria Interna está Maria de São José Louro, uma advogada muito ligada ao vice-provedor Paes Afonso, com o qual partilha as quotas da empresa de consultoria Think Global.
Muito notada foi também a entrada para a SCML de Eduarda Napoleão, uma antiga vereadora da Câmara de Lisboa, que veio com Santana da Câmara da Figueira da Foz. Depois de uma breve passagem pela instituição, entrou no Fundbox, uma sociedade gestora de fundos imobiliários, onde é responsável pela reabilitação urbana e em cujo capital a Misericórdia tem uma pequena participação.
Entre outros, o Fundbox gere o fundo Santa Casa 2004, onde está uma parte do património imobiliário da instituição.
Entre os administradores não executivos do Fundbox esteve, desde 2006 até Janeiro deste ano, Ricardo Amantes, um gestor que foi substituído no lugar de director de gestão imobiliária e património por Helena do Canto Lucas. Logo a seguir, assumiu as funções de director daCoporgest, uma imobiliária participada pelo Grupo Espírito Santo, que tem o antigo líder do PSD Marques Mendes como administrador, e que em 2012 fez uma importante permuta de edifícios com a Santa Casa.
Comunicação para cenários de crise
LPM e Cunha Vaz trabalham para a Santa Casa
A SCML tem contratos com as duas mais importantes empresas de comunicação do país: a LPM e a Cunha Vaz & Associados, para além de a Misericórdia de Lisboa possuir a sua própria direcção de Comunicação e Marketing com vários assessores de comunicação.
Com a LPM, a Santa Casa já celebrou desde o final de 2012 três contratos de assessoria de comunicação, um dos quais ainda em vigor, no valor total de 252.000 euros (cerca de 10.000 por mês).
Justificação: ausência de recursos próprios. Um desses contratos foi assinado em Novembro de 2012, por ajuste directo como os outros, temum valor de 126.000 euros e foi adjudicado ao abrigo de uma norma legal que não permite ajustes directos superiores a 75.000 euros.
No caso da Cunha Vaz, foi outorgado, também por ajuste directo e porausência de recursos próprios, um contrato de 22.050 euros em Janeiro deste ano. O contrato refere que o seu objecto principal consiste,
entre outras coisas, em “elevar os níveis de influência junto de um conjunto de jornalistas estratégicos para o Departamento de Jogos (DJ)”; criar através de “uma relação de proximidade com os órgãos de comunicação social (...) barreiras a cenários de crise”; e “permitir notícias focadas nos interesses do DJ e da SCML”. Apesar de este contrato se referir expressamente ao DJ, a Cunha Vaz trabalhadirectamente com o provedor. Este conta também com a colaboração deAlexandre Guerra, um assessor de imprensa que até há pouco estava no gabinete dos vereadores do PSD na Câmara de Lisboa.”
quinta-feira, 9 de abril de 2015
António Ferro, o inventor do salazarismo
"António Ferro, O inventor do salazarismo", por Orlando Raimundo, Publicações Dom Quixote, 2015, é uma reportagem histórica sobre a figura singular de António Ferro, o homem a quem Salazar confiou o aparelho da propaganda, logo no início do seu regime. Será talvez temerário atribuir a Ferro a invenção do salazarismo enquanto ideologia e culto, já que o ditador possuía um modo de pensar que ia ao encontro de largas faixas da população que nele confiaram, quase cegamente, até aos finais da II Guerra Mundial. Mas é indubitável que Ferro foi um encenador magistral do orgulho nacionalista, um recuperador de tradições e um urdidor panfletário sem precedentes na cena política portuguesa, mitificando o chamado providencialismo do Chefe. É à volta da personagem e do período áureo do salazarismo que Orlando Raimundo abre o pano e nos desvela um modernista que se metamorfoseou em acérrimo nacionalista, um futurista que se bandeou para o tradicionalismo num estranho equilíbrio para o qual fez convergir intelectuais e artistas das mais díspares procedências.
O autor revela-nos um António Ferro que soube habilmente gravitar à volta do modernismo e do futurismo, foi acidentalmente um nome que ficou na revista Orpheu, teve experiências malsucedidas no território da dança clássica, foi nome indiferenciável no jornalismo, sentiu-se atraído pelo sidonismo, sabe ir, habilidosamente, à procura do escândalo e do fogo-de-artifício, viaja até ao Brasil, as suas peças de teatro são pateadas, e consorcia-se com Fernanda de Castro, a conhecida autora de Mariazinha em África, que se afirmará como indefetível companheira de projetos. E é assim que chegamos à ascensão de Salazar ao poder.
Passo a passo, o republicano Ferro vai-se envolvendo em movimentos filofascistas, e é assim que apoia Filomeno da Câmara, nome sonante do "Golpe dos Fifis", que correu bem mal, foi um ensaio a favor do regresso à ordem autoritária. Ferro cultiva a imagem de vanguarda, dedica-se ao cinema, recebe intelectuais fascistas e políticos nazis, cria as marchas populares, endeusa o Galo de Barcelos, e entrevista largamente Salazar em 1932, iniciativa determinante para a confiança do ditador, que o nomeia como responsável do Secretariado da Propaganda Geral. Entretanto, Ferro cria prémios literários, concursos, atribui subsídios, elege aldeias típicas, os tapetes de Arraiolos, sonha em difundir teatro popular, manda fazer cinema que elogie a ditadura. Eufórico, adere a qualquer proposta para festejos, desde que estes sirvam para presentear Salazar ou tranquilizar as massas: é assim que surge a Festa do Trabalho Nacional, a Exposição Marítima do Norte de Portugal, são atraídos ao país intelectuais com vista a abençoar o regime, caso de Gonzague de Reynold ou Maurice Maeterlinck.
Estamos numa época da saudação fascista, nas grandes paradas é possível ouvir - Quem vive? - pergunta o comandante da lança. - Portugal! Portugal! Portugal! - respondem todos. - Quem manda? - pergunta a mesma voz. - Salazar! Salazar! Salazar! - gritam os legionários. Ferro acolita o ditador em todos os momentos difíceis, caso da guerra civil de Espanha. Salazar não gosta do cinema proposto por Ferro, não aprecia as galhofadas e as tiradas de comediantes como António Silva ou Vasco Santana, gosta do épico, mesmo na sua dimensão imperial, do religioso, do histórico. Orlando Raimundo fala das falsificações de Ferro, como a do Paço Ducal de Guimarães, lembra o grande espetáculo da grande Exposição do Mundo Português de 1940, os serões para trabalhadores organizados pela FNAT, a apologia do fado... E assim se procurou aplacar o período de imensas dificuldades suscitadas pela guerra.
A era de António Ferro chega ao fim quando se extinguem as ditaduras nazi-fascistas, Salazar irá recriar a imagem do seu regime e Ferro é mandado como Ministro Plenipotenciário de Portugal em Berna. A estrela vai-se apagando mas ficou a ilusão de que "Ferro foi um homem de cultura que vendeu a alma ao diabo e não um agente do diabo no território da cultura". Uma reportagem histórica de inegável interesse para compreender a ascensão e consolidação do regime de Salazar através do seu agente maior da propaganda.
Autor: Beja Santos
domingo, 5 de abril de 2015
A Dor
Terminou o cerco à universidade de Garissa, no Nordeste do Quénia. Morreram 147 pessoas e há 79 feridos, entre eles nove estudantes em estado crítico.
Atacantes da Al-Shabab executaram vários quenianos cristãos nos dormitórios
Uma sobrevivente do ataque à universidade é confortada por uma colega
sábado, 4 de abril de 2015
A consagração dos mortos pela hipocrisia dos vivos
JOSÉ PACHECO PEREIRA 04/04/2015
O festival de hipocrisia que avassala Portugal sempre que morre um consagrado “consensual” revela as nossas enormes fragilidades no espaço público.
Não há tão bom revelador do que é a elite portuguesa do que a maneira como trata os mortos que entende serem “seus”. O festival de hipocrisia que avassala Portugal sempre que morre um consagrado “consensual” revela as nossas enormes fragilidades no espaço público, e uma mistura de reverência oca, de ignorância, de imenso provincianismo e de uma ritualização pobre e subdesenvolvida. E aqui os media e o poder político vivem em simbiose total.
Merecem Eusébio, Herberto Helder, Manoel de Oliveira, José Silva Lopes, as homenagens dos portugueses? Merecem sem dúvida, mesmo do “país” se o houvesse. Só que não merecem estas “homenagens” político-mediáticas que tornam cada uma destas figuras peças de cera de um museu morto, que se empacotam numa prateleira logo que termina a exploração da sua morte e venha o esquecimento.
Deixemos Eusébio que tem características especiais, uma das quais ser, nesta lista, o único conhecido pelo povo e o mais “sentido” pelo povo, em Portugal, mas principalmente em Moçambique. Aceitem esta simples dicotomia povo-elites que uso apenas por comodidade de expressão e para não pesar sobre a economia do texto.
Todos os outros são praticamente desconhecidos pela maioria dos portugueses, e se formosa falar da sua obra, então são tão remotos ao comum do povo como Xenófanes de Cólofon. Só que o povo não se põe a falar destes homens como se os conhecesse de intimidade, tivesse estudado a sua obra e por isso pudesse fazer juízo de valor. Essa presunção não tem.
Herberto Helder é um completo desconhecido, pelo povo e pela maioria das nossas elites, que agora aparecem todas como íntimas de um poeta singular e difícil, que nunca leram e sobre o qual disseram não só as maiores banalidades, como enormidades. Manoel de Oliveira, que chegava ao povo mais por ter 106 anos do que pela sua obra, era “conhecido” por ser autor de filmes intragáveis, que ninguém via até o fim, ou sequer até ao principio, e gozado por filmar horas de filme em que nada acontecia ou por fazer fotografia e não cinema. Fazia parte de um certo anedotário que servia para mostrar desprezo pela cultura e pelos intelectuais, ou então, no extremo oposto, como um génio intocável, que em tudo o que mexia produzia arte intangível na sua grandeza absoluta. Estas duas atitudes são aliás mais próximas do que se imagina, porque criam um ecrã sobre a obra que dificulta um julgamento equilibrado e o exercício crítico.
A ignorância sobre Herberto Helder manifestou-se também por este mesmo desequilíbrio, reduzindo a história da poesia portuguesa do século XX a dois “génios”, Pessoa e Helder. Pelo caminho, já esquecidas, estão idênticas apreciações sobre, por exemplo, Eugénio de Andrade, Sophia e outros.
Por ironia destas coisas, o menos comemorado, em parte porque todas as televisões, rádios e jornais já tinham há muito preparado as peças necrológicas para Manoel de Oliveira, e de Helder não havia muitas imagens, foi José Silva Lopes, o único que as nossas elites políticas conheciam, tal como os espectadores habituais do cabo, porque já não tinha mérito para ocupar os preciosos minutos da televisão generalista. Silva Lopes também teve até agora a singularidade de não ter tido internacionalmente as necrologias habituais, mas um pequeno artigo de opinião no New York Timesonline, nem mais nem menos do que do Nobel da Economia Paul Krugman. Por isso, está tudo trocado, e uma coisa é a repercussão pública oficial, com direito a mensagem televisionada do Presidente no caso de Oliveira, e vários dias de luto nacional, outra é a realidade da relação entre estas personalidades e a consciência colectiva portuguesa, quer a do povo, quer a das elites.
Tudo isto se passa num dos momentos em que a nossa elite política no poder mais afastada está de qualquer preocupação intelectual e, com algumas raras excepções, com elevados níveis de ignorância sobre qualquer matéria desta natureza. Por isso é que se agarram ao discurso pomposo da comemoração necrológica, que lhes dá uma espécie de álibi cultural que, de outra maneira, não poderiam ter. Quanto mais ignorantes, mais comemorativos, podia ser um axioma dos nossos dias.
O problema não está apenas na parte do dinheiro que vai para a “cultura”, questão que nunca considerei ser uma questão de cultura mas de “política de espírito”, ou seja, a propaganda moderna que os Estados e os governos fazem usando a intangibilidade das artes e da literatura para se promoverem ou aos seus chefes. O melhor exemplo é a longa continuidade da política de Malraux, depois de Lang, e no nosso caso de Manuel Maria Carrilho. Entre os seus cultores nacionais estão políticos como Santana Lopes, que aliás mereceu elogios de muita gente que hoje quer certamente esquecer-se de que foi “santanista” na altura útil. Aliás, muita gente que se proclama liberal e de direita é francamente a favor da subsidiação dos “criadores” e das “bolsas de escritores” e outras perversidades.
Mas, pelo contrário, entendo que o melhor que se pode fazer é tratar da cultura como uma questão patrimonial, de educação, e mesmo de “indústria”, e aí há muita coisa a fazer que os nossos homens do poder não fazem, e não querem fazer. Temos muito património a esboroar-se, muito património a vender-se mais ou menos às claras no estrangeiro, muita educação para as artes, quando existe, no mesmo estado degradado do Conservatório, e mesmo uma “indústria cultural” muito para além da Joana Vasconcelos, que se “vende” bem.
Se se quer ajudar as pessoas a compreender o valor de Oliveira ou Herberto Helder, ou melhor ainda, a serem “tocados” pelas suas obras, naquilo em que a criação nos muda, troco dias de mensagens, votos de pesar, funerais nacionais (e agora até a obrigação de colocar os corpos no Panteão...) e luto oficial, por medidas minimalistas que ajudem a que se conheça a poesia portuguesa ou o cinema nacional.
Seja fazer com que nas livrarias e nas bibliotecas das escolas haja os clássicos portugueses em edições límpidas e seguras, baratas e agradáveis (experimentem procurar o Crisfal ou a Menina e Moça), que nas escolas os professores possam fazer clubes de recitação, haja concursos nacionais de recitação (com o “serviço público de televisão” ao lado); se forneça material de vídeo e se ensine a filmar, a montar um filme, a ir para além dos vídeos do YouTube, depois de se saber fazer vídeos para o YouTube; se forneçam os laboratórios das escolas para se poderem fazer experiências de física e química; se ensine a “ler” um quadro ou uma escultura, e, acima de tudo, que se ajude a curiosidade, mais do que as abstractas “metas” das disciplinas escolares.
Estas atiram alunos, que nunca leram um livro, para os Maias do Eça, cujo vocabulário, metáforas, histórias mitológicas ou bíblicas desconhecem de todo, ou a aprender nomenclaturas gramaticais que são decoradas e esquecidas no dia seguinte, ou a atirar estudantes para Descartes e Kant (imaginem!) sem qualquer cultura geral seja do que for.
Querem comemorar os nossos mortos consagrados? Ajudem os vivos a percebê-los e não a colocá-los numa prateleira, receando que o que haja de subversivo na sua criação saia de lá e chegue à rua. O poder precisa de múmias e não de arte ou cultura, e, nestes dias, a indústria de mumificação está em pleno.
Historiador
O festival de hipocrisia que avassala Portugal sempre que morre um consagrado “consensual” revela as nossas enormes fragilidades no espaço público.
Merecem Eusébio, Herberto Helder, Manoel de Oliveira, José Silva Lopes, as homenagens dos portugueses? Merecem sem dúvida, mesmo do “país” se o houvesse. Só que não merecem estas “homenagens” político-mediáticas que tornam cada uma destas figuras peças de cera de um museu morto, que se empacotam numa prateleira logo que termina a exploração da sua morte e venha o esquecimento.
Deixemos Eusébio que tem características especiais, uma das quais ser, nesta lista, o único conhecido pelo povo e o mais “sentido” pelo povo, em Portugal, mas principalmente em Moçambique. Aceitem esta simples dicotomia povo-elites que uso apenas por comodidade de expressão e para não pesar sobre a economia do texto.
Todos os outros são praticamente desconhecidos pela maioria dos portugueses, e se formosa falar da sua obra, então são tão remotos ao comum do povo como Xenófanes de Cólofon. Só que o povo não se põe a falar destes homens como se os conhecesse de intimidade, tivesse estudado a sua obra e por isso pudesse fazer juízo de valor. Essa presunção não tem.
Herberto Helder é um completo desconhecido, pelo povo e pela maioria das nossas elites, que agora aparecem todas como íntimas de um poeta singular e difícil, que nunca leram e sobre o qual disseram não só as maiores banalidades, como enormidades. Manoel de Oliveira, que chegava ao povo mais por ter 106 anos do que pela sua obra, era “conhecido” por ser autor de filmes intragáveis, que ninguém via até o fim, ou sequer até ao principio, e gozado por filmar horas de filme em que nada acontecia ou por fazer fotografia e não cinema. Fazia parte de um certo anedotário que servia para mostrar desprezo pela cultura e pelos intelectuais, ou então, no extremo oposto, como um génio intocável, que em tudo o que mexia produzia arte intangível na sua grandeza absoluta. Estas duas atitudes são aliás mais próximas do que se imagina, porque criam um ecrã sobre a obra que dificulta um julgamento equilibrado e o exercício crítico.
A ignorância sobre Herberto Helder manifestou-se também por este mesmo desequilíbrio, reduzindo a história da poesia portuguesa do século XX a dois “génios”, Pessoa e Helder. Pelo caminho, já esquecidas, estão idênticas apreciações sobre, por exemplo, Eugénio de Andrade, Sophia e outros.
Por ironia destas coisas, o menos comemorado, em parte porque todas as televisões, rádios e jornais já tinham há muito preparado as peças necrológicas para Manoel de Oliveira, e de Helder não havia muitas imagens, foi José Silva Lopes, o único que as nossas elites políticas conheciam, tal como os espectadores habituais do cabo, porque já não tinha mérito para ocupar os preciosos minutos da televisão generalista. Silva Lopes também teve até agora a singularidade de não ter tido internacionalmente as necrologias habituais, mas um pequeno artigo de opinião no New York Timesonline, nem mais nem menos do que do Nobel da Economia Paul Krugman. Por isso, está tudo trocado, e uma coisa é a repercussão pública oficial, com direito a mensagem televisionada do Presidente no caso de Oliveira, e vários dias de luto nacional, outra é a realidade da relação entre estas personalidades e a consciência colectiva portuguesa, quer a do povo, quer a das elites.
Tudo isto se passa num dos momentos em que a nossa elite política no poder mais afastada está de qualquer preocupação intelectual e, com algumas raras excepções, com elevados níveis de ignorância sobre qualquer matéria desta natureza. Por isso é que se agarram ao discurso pomposo da comemoração necrológica, que lhes dá uma espécie de álibi cultural que, de outra maneira, não poderiam ter. Quanto mais ignorantes, mais comemorativos, podia ser um axioma dos nossos dias.
O problema não está apenas na parte do dinheiro que vai para a “cultura”, questão que nunca considerei ser uma questão de cultura mas de “política de espírito”, ou seja, a propaganda moderna que os Estados e os governos fazem usando a intangibilidade das artes e da literatura para se promoverem ou aos seus chefes. O melhor exemplo é a longa continuidade da política de Malraux, depois de Lang, e no nosso caso de Manuel Maria Carrilho. Entre os seus cultores nacionais estão políticos como Santana Lopes, que aliás mereceu elogios de muita gente que hoje quer certamente esquecer-se de que foi “santanista” na altura útil. Aliás, muita gente que se proclama liberal e de direita é francamente a favor da subsidiação dos “criadores” e das “bolsas de escritores” e outras perversidades.
Mas, pelo contrário, entendo que o melhor que se pode fazer é tratar da cultura como uma questão patrimonial, de educação, e mesmo de “indústria”, e aí há muita coisa a fazer que os nossos homens do poder não fazem, e não querem fazer. Temos muito património a esboroar-se, muito património a vender-se mais ou menos às claras no estrangeiro, muita educação para as artes, quando existe, no mesmo estado degradado do Conservatório, e mesmo uma “indústria cultural” muito para além da Joana Vasconcelos, que se “vende” bem.
Se se quer ajudar as pessoas a compreender o valor de Oliveira ou Herberto Helder, ou melhor ainda, a serem “tocados” pelas suas obras, naquilo em que a criação nos muda, troco dias de mensagens, votos de pesar, funerais nacionais (e agora até a obrigação de colocar os corpos no Panteão...) e luto oficial, por medidas minimalistas que ajudem a que se conheça a poesia portuguesa ou o cinema nacional.
Seja fazer com que nas livrarias e nas bibliotecas das escolas haja os clássicos portugueses em edições límpidas e seguras, baratas e agradáveis (experimentem procurar o Crisfal ou a Menina e Moça), que nas escolas os professores possam fazer clubes de recitação, haja concursos nacionais de recitação (com o “serviço público de televisão” ao lado); se forneça material de vídeo e se ensine a filmar, a montar um filme, a ir para além dos vídeos do YouTube, depois de se saber fazer vídeos para o YouTube; se forneçam os laboratórios das escolas para se poderem fazer experiências de física e química; se ensine a “ler” um quadro ou uma escultura, e, acima de tudo, que se ajude a curiosidade, mais do que as abstractas “metas” das disciplinas escolares.
Estas atiram alunos, que nunca leram um livro, para os Maias do Eça, cujo vocabulário, metáforas, histórias mitológicas ou bíblicas desconhecem de todo, ou a aprender nomenclaturas gramaticais que são decoradas e esquecidas no dia seguinte, ou a atirar estudantes para Descartes e Kant (imaginem!) sem qualquer cultura geral seja do que for.
Querem comemorar os nossos mortos consagrados? Ajudem os vivos a percebê-los e não a colocá-los numa prateleira, receando que o que haja de subversivo na sua criação saia de lá e chegue à rua. O poder precisa de múmias e não de arte ou cultura, e, nestes dias, a indústria de mumificação está em pleno.
Historiador
Subscrever:
Mensagens (Atom)