A descontracção com que muitos receberam as notícias de incumprimento dos deveres contributivos de Pedro Passos Coelho — José António Saraiva, director do Sol, por exemplo, prefere nada dizer por suspeitar que, se for investigado, também terá as suas teias de aranha fiscais — diz muito da cultura videirinha e relativista que por aí abunda. O primeiro-ministro esteve anos sem fazer descontos? Deixa lá — como é que ficou o Benfica? Não somos a Suécia ou a Finlândia, claro está, onde as fugas aos impostos são consideradas um ataque à comunidade. Por cá, o escape aos deveres fiscais é motivo de confessado orgulho em conversas de café e a obrigação de pagar impostos é quase sempre vista como a prova acabada da tirania do Estado. Passos Coelho seria nessa narrativa um caso trivial. Poderia até ser visto por alguns como o político mais português de Portugal — mais um activista nessa gesta gloriosa contra a violência das contribuições.
Para outros, a causa do incumprimento é igualmente desculpabilizadora. Pode ser que o primeiro-ministro não tenha assumido os seus deveres por necessidade, como admitiu ao jornal Sol, e nesse caso a sua história até acaba por se tornar mais humana e compreensível. O que se lhe não admite é que o tenha feito por distracção ou por esquecimento até ao ponto de deixar levar os seus impostos ao limiar da execução fiscal. Porque aí há uma demissão cívica ou uma irresponsabilidade social que colam mal com a imagem de um primeiro-ministro. De resto, no caso das contribuições à Segurança Social, custa a acreditar que não soubesse que tinha de pagar, até porque Passos Coelho tem inteligência de sobra e competência que baste para saber como funcionam os impostos e a previdência.
Esta história só seria “banal” (para usar a definição condescendente de José António Lima, no Sol, jornal que, juntamente com o Observador, tradicionalmente severo em perscrutar as misérias morais da esquerda, se empenhou em mitigar a importância da questão) se deixarmos de exigir ao primeiro-ministro um padrão de comportamentos e de virtudes públicas capazes de servir de modelo aos cidadãos que governa. E se toda esta história não tivesse a ensombrá-la um contexto no qual Pedro Passos Coelho aparece em flagrante posição de incoerência. Um primeiro-ministro que (por evidente necessidade, reconheça-se) impôs ao país o mais brutal agravamento da carga fiscal em muitas décadas não pode aparecer aos olhos da opinião pública com uma história fiscal com tantas fragilidades. Um governante que aprovou leis que transformam o não pagamento de alguns cêntimos nas portagens das SCUT em multas de muitas centenas de euros não pode querer que aceitemos os seus buracos negros fiscais com um encolher de ombros. O político que vetou uma proposta de alteração legislativa que proibia a penhora das casas dos contribuintes em incumprimento fiscal não pode ter um currículo fiscal com falhas. Um líder partidário que, num congresso entre os seus pares, protesta contra as fugas aos impostos, em nome da defesa dos valores da social-democracia, não pode aparecer depois envolvido em casos de “distracção” sobre os deveres contributivos. Afinal queremos viver num país onde a exigência se cultiva, ou não?
O problema de Pedro Passos Coelho não é essencialmente ético, é fundamentalmente político. A aura que se esforçou por cultivar de governante austero, determinado e inflexível perante as receitas do Estado cola mal com essa imagem de contribuinte relapso, laxista e flexível. Se não sabia que tinha de pagar à Segurança Social, devia saber; se se distraiu em relação aos deveres fiscais e deixou o seu processo arrastar-se até à fase da execução fiscal, é laxista. Em qualquer um dos casos, é digno de censura pública pelo seu passado e essa mancha não se limpa com o pagamento a reboque dos impostos ou contribuições em falta. As corridas atrás do prejuízo depois de o fisco avançar com penhoras ou de todo o país ter dado conta que o seu primeiro-ministro passou anos em incumprimento são um salvar da face, não a redenção de actos culposos. Considerar que este comportamento de quem nos Governa é aceitável é transmitir um poderoso estímulo a todos os cidadãos para que se distraiam de pagar impostos ou que não se preocupem em saber que têm de descontar para a Segurança Social.
Pedro Passos Coelho não cometeu nenhum crime nem se deve demitir como alguns sugeriram. Estão aliás tão errados os que lhe estendem a corda da forca como os que se apressam a passar um pano por essa nódoa do seu passado em jeito de absolvição. O seu “julgamento” vai fazer-se onde deve ser feito, nas eleições. Ainda falta meio ano até às legislativas, o que quer dizer que o tempo apagará parte da mácula, mas não se acredite que esta saga associada aos impostos e à Segurança Social de quem nos governa se vai eclipsar sem consequências. Não vai.
É por saber disso que Pedro Passos Coelho mudou de estratégia nos últimos dias, deixando de falar em cabalas jornalísticas ou em chicanas políticas para começar a assumir responsabilidades pelo seu comportamento. A admissão de culpas, ainda que velada, a apologia da humildade e o reconhecimento da imperfeição ou até da vergonha com o seu comportamento é a única forma digna de Pedro Passos Coelho se libertar do estigma fiscal e de salvar a imagem da função que desempenha — uma ideia que ontem Miguel Sousa Tavares já havia subscrito no Expresso.
Deixar pairar no ar a ideia de que alguém pode passar oito anos como deputado, sair para a vida privada e desconhecer que tinha de fazer descontos para a Segurança Social ou é um sinal de monumental ignorância e incompetência ou uma ingénua tentativa de nos passar por parvos. Como ele é primeiro-ministro, prefiro acreditar na segunda tese. Daí a irritação.
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