Era um polémico pintor, escritor, músico, dramaturgo e cenógrafo. Tinha 83 anos e morreu depois de anos a sofrer de uma “doença grave”.
Rodrigo Nogueira 24 de Abril de 2022
Herman Nitsch tinha 83 anos e era conhecido pela sua arte literalmente visceral MARCO CANTILE/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES
Hermann Nitsch, artista avant-garde austríaco, morreu no dia 18, o mesmo dia em que abriu ao público uma exposição do seu trabalho em Veneza, que vai decorrer ao mesmo tempo que a bienal. Tinha 83 anos e, segundo o que a mulher, Rita Nitsch, com quem era casado desde 1987 e que também era sua agente, disse à imprensa austríaca, sofria de uma “doença grave”. O multidisciplinar Nitsch estudou artes gráficas e pintura abstracta, mas era também escritor, músico, cenógrafo, entre outras actividades, sempre tentando unir várias artes, entre pintura, teatro, performance ou música.
Nascido em Viena pouco depois da ocupação do seu país pelos nazis, em 1938, era conhecido pelas suas controversas manifestações artísticas, que envolviam com frequência vísceras. Literalmente, além de pele e carne. Várias das obras tinham cordeiros sacrificados, carcaças estripadas ou animais esquartejados, o que o tornou muitas vezes alvo de grupos de activismo dos direitos dos animais. Mais do que o choque e apavorar o público, aquilo que procurava no seu trabalho, dizia, era a catarse.
Na sua biografia, escrita pelo próprio em minúsculas no seu site oficial, actualizada ao pormenor com todos os grandes marcos da carreira, Nitsch dizia que se interessava “por poesia, prosa, teatro e música clássica” e queria “produzir uma obra de arte total”, que começasse na “tragédia grega” e chegasse a nomes que o fascinavam como Monteverdi, Wagner, Strauss, Debussy, Scriabin, Kandinsky e Schoenberg. Nesse texto, perguntava, sobre uma peça que começou a tentar fazer em 1958, quando começou a ser artista gráfico e a trabalhar no Museu Técnico de Viena: “Porque é que deveria o meu público só ser afectado pelas reminiscências verbalmente citadas de impressões e percepções sensoriais?” Exigia, diz, deste mesmo público “uma experiência sensorial directa”.
Hermann Nitsch em acção, aos 60 anos LEOPOLD NEKULA/SYGMA VIA GETTY IMAGES
“A peça tinha directivas a dizer-lhes para provarem, cheirarem, olharem, escutarem e tocarem”, continua. Davam-lhes “pele, vísceras e fruta” e espalhava “odores” pela sala, de incenso a sangue, passando por gasolina, vinagre, urina, amoníaco, terebentina, leite ou água quente. Foi o início do Orgien Mysterien Theater, ou seja, o Teatro das Orgias e dos Mistérios, que começou em 1962 e teve mais de cem performances por todo o mundo, com música, dança, imagética e rituais religiosos, sempre com a participação activa do público.
Na mesma biografia, Nitsch mencionava que, entre 1943 e 1945, cresceu com bombardeamentos todos os dias e o seu pai foi morto na Rússia. “A guerra transformou-me num cosmopolita e um oponente de todos os nacionalismos e de toda a política, quando era apenas um estudante.”
Em 1959, descobriu, numa exposição, nomes como Sam Francis, Jackson Pollock ou Willem de Kooning e percebeu, segundo o próprio, que estavam a fazer em pintura aquilo que ele queria fazer com o teatro. Usava esponjas com cor vermelha e espremia-as na tela, simulando sangue, ou baldes para espalhar tinta pelo quadro, como na pintura de acção de Pollock. Esta foi a primeira etapa do seu trabalho, descrevia.
“De 1960 a 1967, fiz exposições, performances de acção e pintura em Viena que provocaram muitos protestos e escândalo e me valeram três sentenças de prisão e uma decisão de tribunal de um ano e meio de pena suspensa”, conta, explicando ainda que a sua arte não lhe dava dinheiro e era, nessa altura, apoiado financeiramente pela mulher, Eva Krannich, com quem se tinha casado entretanto e de quem se divorciou em 1967. Essa altura foi também a era dos chamados “accionistas vienenses”, aos quais foi associado, apesar de sempre ter mantido que não eram propriamente um grupo. Chegou a passar duas semanas na prisão por causa do Festival de Naturalismo Psico-Físico, que envolvia um cordeiro eviscerado numa cave.
Hermann Nitsch: “A guerra transformou-me num cosmopolita e um oponente de todos os nacionalismos e de toda a política, quando era apenas um estudante” GEORG HOCHMUTH/EPA
No início da década de 1970, Beate König, com quem se tinha casado entretanto, comprou o Castelo de Prinzendorf, na Áustria, à Igreja Católica. O castelo tornou-se a base de operações de Hermann, com um atelier e um espaço onde montar as suas peças. Vivia entre Prinzendorf e Ansolo, em Itália. Beate morreu em 1977, na sequência de um acidente, algo que Hermann descrevia como “a desgraça mais severa” que lhe tinha acontecido. Casou-se, dez anos depois, com Rita Leitenbor.
Este ano, no final de Julho, será levada à cena no Castelo de Prinzendorf, apenas pela segunda vez desde que se estreou em 1998, a Peça dos 6 Dias, a tal “obra de arte total” em que começou a pensar em 1958, e que pretende ser “a maior e mais importante celebração do homem”, com recurso a mais de 15 mil litros de vinho, muito tomate e uvas e corpos de animais mortos. Em entrevistas, Hermann dizia que o seu desejo era que tal acontecesse em 2021, uma última actuação. Serão apenas os dois primeiros dias da peça, contudo.
Além do castelo, há também a Fundação Nitsche em Viena e dois museus a ele dedicados, um em Mistelbach, Áustria, e outro em Nápoles, Itália. Vários museus e galerias têm obras da sua autoria. Ao longo da carreira, Hermann Nitsche fez também cenografia para várias óperas.
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