domingo, 24 de abril de 2022

Jordan Mooney (1955-2022), a “Sex Pistol original”, rainha e primeiro rosto do punk

“Nunca tinha visto nada como tu.” Quem descreve assim Jordan Mooney é a diva da moda Vivienne Westwood. E aquilo que ela viu foi uma rebeldia no vestir que tornaria Mooney um ícone da cena punk. Fez parte dos Sex Pistols, escandalizou muitos que se cruzavam com ela — foi a “primeira cara do punk”.


Joana Amaral Cardoso 17 de Abril de 2022



 Jordan Mooney garantia que a sua atitude nos anos 1970 “não era uma questão de coragem, porque não queria saber o que os outros pensavam” Martyn Goodacre/Redferns/Getty Images

O pai era escriturário de dentistas, a mãe era empregada de bar e costureira. A filha, Pamela Anne Rooke, tornou-se ícone punk. Pamela era também Jordan Mooney, símbolo da moda e dos modos do punk rock inglês, e morreu há duas semanas, aos 66 anos. “Eras como um pequeno ícone”, recorda Vivienne Westwood sobre a imagem daquela amazona de cabelo oxigenado armado, maquilhagem negra nos olhos e muito vinil e collants rasgados no corpo. A designer de moda interpela-a como se ainda a estivesse a ver passar pela King’s Road em 1974. “Nunca tinha visto nada como tu.” A coisa mais escandalosa que a sua futura empregada, modelo e correligionária punk podia ter feito? Casar-se. Foi despedida do lugar que ocupava na portaria do punk por crime burguês.

Jordan Mooney não é um nome como o de Westwood, nem como o do seu companheiro Malcolm McLaren, padrinhos do punk a partir da sua boutique Sex (antes e depois de 1974 teve vários outros nomes) e da turba que por lá se reunia — foi ali que um grupo de jovens rebeldes se juntou a McLaren e onde nasceram os Sex Pistols; foi ali que Westwood, uma das mais inovadoras designers de moda britânicas, deu o seu cunho imagético à subcultura juvenil que emergia, irritada, “no future” e quejandos, em Londres, Nova Iorque e mundo fora. Jordan Mooney não era sequer tão conhecida como a banda Adam and The Ants, nem aclamada como o cineasta Derek Jarman. Mas Jordan Mooney estava lá, com todos eles, na génese do punk e ajudou a torná-lo no que foi. Foi, dizem, a primeira cara do punk. Ou, como decretava Jarman, “o Sex Pistol original”.

Na primeira actuação dos Sex Pistols na televisão para interpretar Anarchy in the UK, estava em palco com eles — bom, vemo-la na lateral do palco, com botas de salto brancas e uma provocadora braçadeira com uma suástica, e depois lá salta e rebola para o centro. Tinha lugar cativo nos concertos dos Pistols. Foi musa de Derek Jarman, pondo a uso a sua formação de bailarina para dançar como protagonista do filme Jubilee (1978) e também apareceu rapidamente na sua primeira longa-metragem, o homoerótico filme em latim Sebastiane (1976); e foi manager e stylist dos Adam and the Ants, com cujo baixista, Kevin Mooney, se casou.

A violação dos códigos antiburgueses foi demais para a sua empregadora, Vivienne Westwood, e revelar-se-ia trágica para o próprio casal, que viveu uma curta relação embebida em heroína. Foi a cura, sozinha e em casa dos pais, como recordava o New York Times no seu obituário na semana passada, que lhe devolveu Pamela Rooke e lhe entregou uma nova vida: a de criadora de gatos e assistente veterinária. “A normalidade salvou-me a vida”, disse ao diário britânico The Guardian há três anos. O cancro biliar levou-a, confirmou o seu irmão, na sua cidade natal, Seaford, em East Sussex.

Jordan Mooney por volta de 1970 CAROLINE GREVILLE-MORRIS/REDFERNS/GETTY IMAGES


Mas a sua imagem perdura. Com fragmentos de Bowie, das pin-ups e uma originalidade só sua, Jordan era uma atleta no liceu — praticava atletismo e ballet. Era mais sólida do que as frágeis modelos da moda dos anos 1960, como Twiggy. Tornar-se-ia a modelo dos anos 1970 punk, com um certo tipo de postura visualmente agressiva e extravagante mas que escondia, garantia, muita timidez. Decidiu ir trabalhar para Londres e arranjou emprego nos armazéns Harrod’s. No caminho para o trabalho, ia mostrando o currículo aqui e ali, mas seria a sua imagem a chamar a atenção de Westwood e McLaren, que lhe deram emprego na Sex e, confirmar-se-ia, um lugarzinho na história.

“Há pessoas que corporizam um lugar e um tempo. Não deixam uma obra artística ou escritos, mas a sua imagem é tal que é como se o tivessem feito. Jordan era impressionante nesse sentido. A sua presença física era tão poderosa quanto isso”, postula o crítico Jon Savage no obituário do New York Times. “Via-a como um arquétipo inglês; como uma paródia de uma dona de casa suburbana dos anos 1950 misturada com uma dominatrix — ​o inverso de Margaret Thatcher.”

Afinal, qual era essa força que a imagem, a moda, a roupa de Jordan projectava? Era “a cara do punk”, como a coroou o Guardian em 2019; “punha as pessoas apoplécticas” com o que usava, diz a própria em entrevista ao mesmo jornal.

 Jordan Mooney durante uma sessão fotográfica com modelos de roupa à venda na Seditionaries (sucedânea da SEX), na King's Road, em Londres, em Maio de 1977 Bill Kennedy/Mirrorpix/Getty Images

O cabelo normalmente estava erguido sobre um andaime invisível feito de laca, loiro e espetado ou enrolado num beehive que os rockabilly tanto adoram. Os olhos faziam dela uma super-heroína, com uma lista negra a arrastar-se à laia de mascarilha. Não era só quando uivava a sua música Lou (sobre Lou Reed, com quem estava enervada na canção) com Adam and The Ants que tudo se agudizava. Às vezes saía de roupa transparente e sem roupa interior, ou de cuecas de vinil; tornava collants em meias de rede queimando-os com cigarros. Os saltos eram altíssimos. Só porque decidiu que queria ser diferente.

A mãe odiava tudo isto, as duas horas de comboio para trabalhar em Londres eram uma batalha. “As pessoas ficavam apoplécticas de raiva. Tinha de ser mudada para a primeira classe para minha segurança”, recordava. Vestir-se como se vestia nos anos 1970 era um insulto à ordem estabelecida.

Jordan Mooney e Johnny Rotten DR

Por isso mesmo, e antes de o punk ser mais transversal, a sua rebeldia era exemplar para rapazes e raparigas com quem se cruzava. Achava isso comovente, admitiu à revista Dazed and Confused em 2016. E era exemplar para Westwood e McLaren, que depois de a verem passar na rua a caminho do Harrod’s a chamaram para personificar a Sex.

Fora dessa bolha, “todos os dias eram uma corrida de obstáculos”, disse ao Guardian. “As pessoas tinham medo de mim. E o que é mais engraçado é que na verdade eu era bastante tímida.” Dentro da loja, era outra história e Jordan, com McLaren ou Westwood, muitas vezes desencorajavam ou recusavam vender algo às pessoas que consideravam que não mereciam ou cujas motivações destoavam da filosofia da loja.

Jordan, que aos 14 anos começou a chamar-se assim por não se rever em Pamela, garantia que a sua atitude nos anos 1970 “não era uma questão de coragem, porque não queria saber o que os outros pensavam”. “Sempre me senti muito confortável na minha pele”, disse a despreocupada pioneira involuntária à Dazed. “É como estar num movimento artístico — alguém tem de o começar.”



R.I.P Jordan Punk Icon and teenage obsession.

RIP #jordan An amazing woman. She changed our world. And she loved cats. So sad she’s gone.


Hermann Nitsch (1938-2022), um artista visceral

 

Era um polémico pintor, escritor, músico, dramaturgo e cenógrafo. Tinha 83 anos e morreu depois de anos a sofrer de uma “doença grave”.

Rodrigo Nogueira 24 de Abril de 20
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Herman Nitsch tinha 83 anos e era conhecido pela sua arte literalmente visceral MARCO CANTILE/LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES

Hermann Nitsch, artista avant-garde austríaco, morreu no dia 18, o mesmo dia em que abriu ao público uma exposição do seu trabalho em Veneza, que vai decorrer ao mesmo tempo que a bienal. Tinha 83 anos e, segundo o que a mulher, Rita Nitsch, com quem era casado desde 1987 e que também era sua agente, disse à imprensa austríaca, sofria de uma “doença grave”. O multidisciplinar Nitsch estudou artes gráficas e pintura abstracta, mas era também escritor, músico, cenógrafo, entre outras actividades, sempre tentando unir várias artes, entre pintura, teatro, performance ou música.

Nascido em Viena pouco depois da ocupação do seu país pelos nazis, em 1938, era conhecido pelas suas controversas manifestações artísticas, que envolviam com frequência vísceras. Literalmente, além de pele e carne. Várias das obras tinham cordeiros sacrificados, carcaças estripadas ou animais esquartejados, o que o tornou muitas vezes alvo de grupos de activismo dos direitos dos animais. Mais do que o choque e apavorar o público, aquilo que procurava no seu trabalho, dizia, era a catarse.

Na sua biografia, escrita pelo próprio em minúsculas no seu site oficial, actualizada ao pormenor com todos os grandes marcos da carreira, Nitsch dizia que se interessava “por poesia, prosa, teatro e música clássica” e queria “produzir uma obra de arte total”, que começasse na “tragédia grega” e chegasse a nomes que o fascinavam como Monteverdi, Wagner, Strauss, Debussy, Scriabin, Kandinsky e Schoenberg. Nesse texto, perguntava, sobre uma peça que começou a tentar fazer em 1958, quando começou a ser artista gráfico e a trabalhar no Museu Técnico de Viena: “Porque é que deveria o meu público só ser afectado pelas reminiscências verbalmente citadas de impressões e percepções sensoriais?” Exigia, diz, deste mesmo público “uma experiência sensorial directa”.


Hermann Nitsch em acção, aos 60 anos LEOPOLD NEKULA/SYGMA VIA GETTY IMAGES

“A peça tinha directivas a dizer-lhes para provarem, cheirarem, olharem, escutarem e tocarem”, continua. Davam-lhes “pele, vísceras e fruta” e espalhava “odores” pela sala, de incenso a sangue, passando por gasolina, vinagre, urina, amoníaco, terebentina, leite ou água quente. Foi o início do Orgien Mysterien Theater, ou seja, o Teatro das Orgias e dos Mistérios, que começou em 1962 e teve mais de cem performances​ por todo o mundo, com música, dança, imagética e rituais religiosos, sempre com a participação activa do público.

Na mesma biografia, Nitsch mencionava que, entre 1943 e 1945, cresceu com bombardeamentos todos os dias e o seu pai foi morto na Rússia. “A guerra transformou-me num cosmopolita e um oponente de todos os nacionalismos e de toda a política, quando era apenas um estudante.”

Em 1959, descobriu, numa exposição, nomes como Sam Francis, Jackson Pollock ou Willem de Kooning e percebeu, segundo o próprio, que estavam a fazer em pintura aquilo que ele queria fazer com o teatro. Usava esponjas com cor vermelha e espremia-as na tela, simulando sangue, ou baldes para espalhar tinta pelo quadro, como na pintura de acção de Pollock. Esta foi a primeira etapa do seu trabalho, descrevia.

“De 1960 a 1967, fiz exposições, performances de acção e pintura em Viena que provocaram muitos protestos e escândalo e me valeram três sentenças de prisão e uma decisão de tribunal de um ano e meio de pena suspensa”, conta, explicando ainda que a sua arte não lhe dava dinheiro e era, nessa altura, apoiado financeiramente pela mulher, Eva Krannich, com quem se tinha casado entretanto e de quem se divorciou em 1967. Essa altura foi também a era dos chamados “accionistas vienenses”, aos quais foi associado, apesar de sempre ter mantido que não eram propriamente um grupo. Chegou a passar duas semanas na prisão por causa do Festival de Naturalismo Psico-Físico, que envolvia um cordeiro eviscerado numa cave.

 
Hermann Nitsch: “A guerra transformou-me num cosmopolita e um oponente de todos os nacionalismos e de toda a política, quando era apenas um estudante” GEORG HOCHMUTH/EPA

No início da década de 1970, Beate König, com quem se tinha casado entretanto, comprou o Castelo de Prinzendorf, na Áustria, à Igreja Católica. O castelo tornou-se a base de operações de Hermann, com um atelier e um espaço onde montar as suas peças. Vivia entre Prinzendorf e Ansolo, em Itália. Beate morreu em 1977, na sequência de um acidente, algo que Hermann descrevia como “a desgraça mais severa” que lhe tinha acontecido. Casou-se, dez anos depois, com Rita Leitenbor.

Este ano, no final de Julho, será levada à cena no Castelo de Prinzendorf, apenas pela segunda vez desde que se estreou em 1998, a Peça dos 6 Dias, a tal “obra de arte total” em que começou a pensar em 1958, e que pretende ser “a maior e mais importante celebração do homem”, com recurso a mais de 15 mil litros de vinho, muito tomate e uvas e corpos de animais mortos. Em entrevistas, Hermann dizia que o seu desejo era que tal acontecesse em 2021, uma última actuação. Serão apenas os dois primeiros dias da peça, contudo.

Além do castelo, há também a Fundação Nitsche em Viena e dois museus a ele dedicados, um em Mistelbach, Áustria, e outro em Nápoles, Itália. Vários museus e galerias têm obras da sua autoria. Ao longo da carreira, Hermann Nitsche fez também cenografia para várias óperas.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

O humanismo ocidental é decente?



(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 09/03/2022)


Por ser um bom cidadão do mundo ocidental condeno a invasão russa da Ucrânia, participo em manifestações contra Putin, choro os mortos de Kiev, comovo-me com o drama dos refugiados ucranianos, sou solidário com as vítimas da brutalidade russa e recuso comprar produtos russos. E faço-o com convicção.

Mas isto não chega, isto é humanismo genérico, serve para qualquer um em qualquer parte do mundo – o humanismo ocidental é especial, o humanismo ocidental é único, o humanismo ocidental é original, o humanismo ocidental exige mais de mim…

O humanismo ocidental é seletivo: ignorou os 12 mil haitianos enviados pelos Estados Unidos para a prisão de Guantánamo e a invasão do país em 1994; ignorou a instigação e a participação da NATO nas guerras da Jugoslávia e os seus 150 mil mortos; ignorou as duas Guerras do Golfo, a mentira que desculpou uma delas e os 100 mil mortos diretos que os combates provocaram; ignorou mais 100 mil mortos que o Iraque “protegido” pela coligação internacional lá instalada provocou; ignorou a presença norte-americana durante 20 anos no Afeganistão e os 65 mil mortes que ali ocorreram; ignorou os envolvimentos, desde 2001, diretos ou indiretos, de forças ocidentais na Síria (estimam-se 400 mil mortes); ignora o que se passa na Somália e no Iémen; ignora a ocupação da Palestina por Israel e, nos últimos anos, os 21 500 mortos desse conflito.

O humanismo ocidental tem coração mole para um lado e coração de pedra para o outro. As guerras espalhadas pelo mundo com envolvimento do Ocidente somam, em 30 anos, quase um milhão de mortos, a grande maioria civis, mas o bom cidadão ocidental não chora por eles.

O humanismo ocidental é dúbio. Condena vigorosamente a prisão do opositor de Putin, Alexei Navalny, mas deixa apodrecer na cadeia o denunciador das brutalidades das tropas americanas e da NATO, Julian Assange.

O humanismo ocidental é criterioso. Manifesta-se quando críticos de Putin são envenenados no estrangeiro mas arquiva no esquecimento o cientista inglês David Kelly que, misteriosamente, suicidou-se dois dias depois de depor no parlamento sobre a falsificação de provas da existência de armas de destruição maciça no Iraque. E o jornalista que deu essa notícia em primeira mão foi despedido.

O humanismo ocidental é esclarecido. Classifica a imprensa estatal russa de instrumento de propaganda “tóxica” mas glorifica o World Service da BBC, pago pelo Ministério dos Estrangeiros britânico e onde muitos jornalistas portugueses que lá trabalharam foram obrigados, durante décadas, a pedir autorização superior para fazer qualquer tipo de entrevista… e essa autorização só vinha depois de lida a lista de perguntinhas a fazer!

O humanismo ocidental é dinâmico. Indigna-se aos gritos com a censura de Putin ao jornalismo independente, mas refila baixinho quando proíbem a Russia Today de emitir no Ocidente ou quando os potentados das redes sociais, que ninguém controla, filtram o que o povo pode ou não pode dizer.

O humanismo ocidental enerva-se com a brutalidade policial contra manifestações políticas em países longínquos e contra as prisões indiscriminadas de gente comum, mas cala-se, conformado, quando isso é feito nos seus países contra os que recusam vacinar-se, contra os que exigem direitos para os negros, contra os sindicalistas, contra os imigrantes pobres e de pele escura. O humanismo ocidental já nem se lembra de George Floyd.

O humanismo ocidental é espertalhão. Explica todas as intervenções militares do Ocidente no resto do mundo com a necessidade de defender a democracia, o contexto histórico e sociológico das regiões, as tensões estruturais das economias locais, as rivalidades das religiões, as divisões tribais, as fronteiras mal definidas, a selvajaria dos ditadores locais. Mas para comentar a guerra ucraniana só aceita começar a análise por um facto: Putin invadiu no dia 24 de fevereiro o país de Zelensky. Falar do que está para trás, dos 13 mil mortos do Donbass, do crescimento da NATO para leste, por exemplo, é trair a Ucrânia, é trair o Ocidente, é trair a humanidade – e se o fazes, és mesmo má pessoa!

O humanismo ocidental é ingrato. Garante que a Rússia não é do Ocidente, exige que ignoremos 2 mil anos de cristandade partilhada, as leituras de Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov, Gorki; as músicas de Tchaikovsky, Stravinsky, Shostakovich, Prokofiev; os filmes de Eisenstein, Tarkovsky; os pensamentos de Bakunine, Lenine ou Trotsky. O humanismo ocidental acredita que nada deve do que é à Rússia.

Eu adoro os valores teóricos do humanismo ocidental, são um exemplo para o mundo, a sério, mas não aguento a constante prática violenta do humanismo ocidental, uma vergonha neste mundo, a sério.