quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Abriu-se mais uma Caixa de Pandora?

Pandora Papers

Chegaram os "Pandora Papers". Há dezenas de presidentes e primeiros-ministros expostos numa nova fuga de informação

O ICIJ, o consórcio que revelou os Luanda Leaks e os Panama Papers, está de volta, numa investigação feita a partir de 12 milhões de ficheiros com origem nalguns dos maiores paraísos fiscais do planeta. Entre os nomes descobertos estão entre outros, o atual primeiro-ministro da República Checa, o rei da Jordânia e o antigo chefe de governo britânico Tony Blair

Cinco anos depois dos Panama Papers, e apesar do impacto que essas revelações tiveram, o mundo dos negócios offshore parece estar ainda em grande forma. Pouco mudou desde então. Muitos dos que usavam os serviços da Mossack Fonseca, o escritório de advogados que foi a origem da fuga de informação dos Panama Papers, simplesmente passaram a recorrer a outros escritórios do género e continuaram com as suas vidas. Pelo meio, e durante este tempo, houve uma série de políticos que foram mantendo as suas fortunas em segredo atrás das suas companhias offshore. Até agora.

O Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), de que o Expresso é parceiro em Portugal, teve acesso a uma nova coleção de 11,9 milhões de ficheiros confidenciais que permitiram descobrir informações sobre companhias offshore ligadas a um total de 35 atuais e antigos Presidentes e primeiro-ministros, além de mais de 330 funcionários públicos em mais de 90 países. E também gente fugida à Justiça ou condenada por burla, fraude ou mesmo homicídio.

A lista de poderosos que aparecem nos Pandora Papers, o nome com que foi batizado este projeto de investigação jornalística do ICIJ, inclui o primeiro-ministro checo. Andrej Babis, que usou uma estrutura offshore para comprar um castelo de 19 milhões de euros em França; o rei da Jordânia, Abdullah II, que adquiriu três propriedades em Malibu, na Califórnia, por 59 milhões de euros, através da Ilhas Virgens Britânicas quando o seu país estava em profunda crise social e económica; o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e a sua mulher, que compraram um edifício por 7,6 milhões de euros a uma companhia offshore da família do ministro da Indústria do Bahrain, Zayed bin Rashid al-Zayani.

Os exemplos encontrados nos Pandora Papers de políticos que recorrem a paraísos fiscais para ocultar os seus ativos é extensa.
Faz o que eu digo, não o que eu faço

No Equador, o presidente Guillermo Lasso teve contas bancárias nos bancos Morgan Santley e no JP Morgan Chase tituladas por uma fundação registada no Panamá, acabando por transferir em 2017 essa titularidade para trusts confidenciais incorporados no Dakota do Sul, um estado norte-americano que se tornou entretanto num importante centro offshore nos Estados Unidos. Os ficheiros encontrados nos Pandora Papers mostram como nos formulários das contas bancárias, em vez de dar como morada o Equador, indicou como residência um escritório na Flórida.

No Líbano, onde há uma escassez crónica de eletricidade, água e bens alimentares, o atual primeiro-ministro, Najib Mikati, e o seu antecessor, Hassan Diab, o governador do banco central, Riad Salameh, bem como o antigo responsável pelo combate à corrupção no país, aparecem nos ficheiros. E um ex-ministro, Marwan Kheireddine, atual chairman de um banco, que chegou a dizer em 2019, quando as padarias e as mercearias já tinham as prateleiras vazias, que havia “evasão fiscal" e o Governo precisava "de resolver isso”, nesse mesmo ano usou uma companhia offshore para ser dono de um iate de quase dois milhões de euros.

No Quénia, o presidente Uhuru Kenyatta e a sua mãe foram identificados como sendo os beneficiários de uma fundação secreta no Panamá — isto é, sem que os nomes dos beneficiários sejam de acesso público. Outros elementos da sua família, incluindo três irmãos, são donos de cinco companhias offshore com quase 30 milhões de euros em ativos. Uma descoberta que contrasta com o que o próprio Kenyatta disse em 2018 à BBC. “Os bens de cada funcionário público devem ser declarados publicamente para que as pessoas possam questionar e perguntar — o que é que legítimo?” — E até foi mais longe nessa entrevista: “Se não conseguimos explicar [os bens que temos], incluindo eu próprio, então temos um caso que precisa de respostas.”

Essa falta de transparência também existiu no caso da República Checa. Apesar de estar obrigado a declarar o seu património, o media checo parceiro do ICIJ Investigace.cz constatou que o primeiro-ministro, Andrej Babis, deixou de fora do seu registo de interesses o que foi descoberto nos Pandora Papers.

Depois de ter comprado por 19 milhões de euros o Chateau Bigaud, perto de Cannes, no ano seguinte adquiriu mais sete propriedades nas redondezas desse castelo, com recurso a uma outra empresa de fachada. Em 2018 todos esses imóveis passaram a ser detidos através de uma companhia no Mónaco, controlada pelo primeiro-ministro — o mesmo que há dez anos, quando era ainda um homem de negócios a dar os primeiros passos na política, dizia aos eleitores que queria transformar a República Checa num lugar onde os empresários “ficarão felizes por pagar impostos”.

Um representante da empresa no Mónaco garantiu ao ICIJ que está tudo dentro da lei e, recusando-se a responder a perguntas sobre o chefe de governo checo, argumentou: “Como qualquer outra entidade empresarial, temos o direito de proteger os nossos segredos comerciais”. Quanto ao próprio Babis, optou por ficar em silêncio.



A mulher de Tony Blair diz que o ex-primeiro-ministro não esteve envolvido na compra de um imóvel ao ministro da Indústria do Bahrain e que não foi possível evitar comprá-lo através de uma companhia offshore

keld navntoft/afp/getty images

No Reino Unido, Tony e Cherie Blair preferiram falar — ainda que o que esteja em causa não seja o facto de terem omitido património numa declaração de interesses. A mulher do ex-primeiro-ministro britânico esteve disponível para contar o que aconteceu. Segundo explicou, o vendedor a quem compraram um edifício por 7,6 milhões de euros só estava disponível para vender a companhia offshore detentora do imóvel — e não o próprio imóvel. Isso teve consequências claras.

Como não houve escritura, não houve pagamento ao equivalente no Reino Unido do IMT e do imposto do selo, o que significou uma poupança de 345 mil euros em impostos.

Por outro lado, os Blair admitiram que não sabiam que o verdadeiro dono do edifício era um ministro do Bahrain — e Cherie assegurou que não só o marido não esteve envolvido na transação como, depois de a compra estar concluída, a companhia das Ilhas Virgens Britânicas que detinha a propriedade foi encerrada.
50 vezes Portugal !

Além de políticos, há mais de 130 milionários de dezenas de países identificados nos ficheiros como beneficiários de estruturas offshore, bem como algumas das estrelas mais conhecidas do planeta, como a cantora Shakira ou a ex-modelo Claudia Schiffer. Da lista consta também um empresário e produtor de televisão russo, que chegou a ver o seu nome nomeado para um Óscar, Konstantin Ernst, que é considerado como o diretor criativo do Kremlin e o maior responsável pela construção da imagem do presidente Vladimir Putin. E que foi beneficiado pelo Estado, de forma secreta, num negócio de privatização de dezenas de cinemas em Moscovo.

Ao todo, os Pandora Papers permitiram identificar os donos de 29 mil companhias offshore. Há beneficiários de mais de 200 países — sendo a Rússia, o Reino Unido, a China e o Brasil os que possuem mais.

Os documentos têm origem em 14 empresas que fornecem serviços para este sector — são, na realidade, fornecedores de companhias offshore. Registam-nas, para depois serem geridas por intermediários e serem detidas por terceiros. Fazem na verdade aquilo que o escritório de advogados Mossack Fonseca fazia nos Panama Papers. Incorporam empresas nos registos comerciais de paraísos fiscais e tratam de todas as questões administrativas que são necessárias para manter essas empresas a funcionar. Invariavelmente as moradas são meras caixas postais, não há funcionários nem é realizado qualquer tipo de atividade económica ou industrial por essas companhias nos países onde estão registadas. Daí serem conhecidas como empresas de fachada. Existem apenas no papel. E servem, na maioria das vezes, para deter riqueza.

Aviões, iates, herdades, obras de arte, dividendos. Há mais de 10 biliões de euros — 10.000.000.000.000, um número com 13 zeros e que corresponde a 50 vezes o tamanho da economia portuguesa — de património e dinheiro que são detidos através de jurisdições offshore no mundo inteiro, de acordo com um estudo feito pela OCDE em 2020. Quanto dessa riqueza paga os impostos que são devidos pelos seus beneficiários nos países onde vivem? Ou quanto é que tem origem em crimes? Não é possível saber, por causa da forma opaca como este sistema funciona.

Ter companhias offshore e utilizá-las para fazer negócios ou para deter património não é ilegal na maioria dos países, incluindo Portugal, mas as jurisdições onde estas empresas são registadas, como as Ilhas Virgens Britânicas, o Panamá ou a Samoa, promovem a falta de transparência e facilitam a evasão fiscal, a fraude e a lavagem de dinheiro, alimentando um sector de atividade especializado que fornece todo o tipo de serviços de ocultação. Pessoas que passam por administradores mas que não fazem mais nada a não ser assinar papéis; companhias cuja única função é serem acionistas de fachada de outras empresas; contratos de consultoria que são usados apenas para justificar junto dos bancos a transferência de dinheiro.

Não se trata de um submundo frequentado apenas por criminosos que precisam de apagar o rasto dos seus crimes. Os maiores e mais reputados bancos da Europa e dos Estados Unidos aceitam este tipo de instrumentos. O uso errado ou não dessas estruturas offshore depende sempre da liberdade de escolha dos seus beneficiários.



Road Town, nas Ilhas Virgens Britânicas

foto linda whitwam/corbis

Os Pandora Papers mostram como o maior escritório de advogados dos Estados Unidos, o Baker McKenzie, teve um papel importante na criação do sistema offshore mundial, com as suas filiais a contribuírem para fomentar a aprovação de legislação favorável ao estabelecimento ou reforço de regimes offshore em vários cantos do mundo e em fornecer, entretanto, o melhor aconselhamento jurídico a quem queira tirar partido desses regimes.

Entre os clientes da Baker McKenzie estava Jho Low, um gestor financeiro que desviou quase quatro mil milhões de dólares de um fundo de desenvolvimento económico na Malásia e que é atualmente procurado pela Justiça. Um porta-voz do escritório de advogados sublinhou ao ICIJ que é feito um esforço para assegurar que os clientes “cumprem a lei e aderem às melhores práticas”, mas o certo é que algumas das empresas que faziam parte da complexa estrutura offshore aconselhada pela McKenzie acabaram por ser usadas por Jho Low para desviar o dinheiro do fundo público malaio.

Os Estados Unidos estão muito presentes nos Pandora Papers. Embora as autoridades norte-americanas obriguem outros países a fornecer informações sobre as atividades de bancos e cidadãos americanos no estrangeiro, essa atitude não tem sido recíproca. A Casa Branca optou por não aderir a um acordo em 2014, a que aderiram jurisdições como as Ilhas Caimão, que exigia que o sector financeiro americano fornecesse informação sobre o património e o dinheiro detidos nos Estados Unidos por empresas e cidadãos não americanos.

Isso faz com que alguns Estados norte-americanos prosperem como paraísos fiscais. Não é só em Nevada (Delaware), o mais conhecido desses Estados, que o sector financeiro offshore tem crescido muito. No Dakota do Sul, a riqueza detida por estrangeiros por trás de companhias sedeadas naquele Estado aumentou quatro vezes nos últimos dez anos e representa atualmente 310 mil milhões de euros. Uma antiga deputada local, Susan Wismer, lamentou ao ICIJ o exemplo dado pela Dakota do Sul ao resto do mundo. “Como cidadã, fico muito triste que o meu Estado tenha sido o Estado que abriu a caixa de Pandora”.

Este artigo foi escrito com base nas investigações realizadas por muitos jornalistas do ICIJ e dos seus media parceiros.

A Teia: O Segundo Império Britânico

 




Os mulatos do Sado

Parte da história de Portugal é ainda desconhecida para muitos de nós. No século XVI o vale do Sado foi povoado com escravos. Conheça os mulatos do Sado.



Éuma história praticamente desconhecida da grande maioria dos portugueses: a zona ribeirinha do rio Sado foi povoada por escravos trazidos das colónias portuguesas e ainda hoje podemos ver alguns traços fisionómicos nos descendentes actuais que habitam esta zona. Durante séculos a Lezíria e Ribeira do Sado foram um território desabitado, com fama de insalubridade, rodeado de charnecas e gândaras.


Rio Sado

Apenas a exploração das salinas implicava a deslocação de trabalhadores temporários, funcionando o rio como via de comunicação e escoamento de diversos produtos regionais e locais, de onde avultava o sal, produto que pelo menos desde o século XVI a meados do século XX, constituiu a principal actividade económica das regiões ribeirinhas entre Alcácer e Setúbal.


Rio Sado

O paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, era um mal endémico, correndo ainda hoje a versão que a pouca população existente em períodos anteriores ao século XX era constituída por africanos – supostamente imunes à doença – aí fixados pela Coroa como forma de assegurar alguma agricultura. Lenda ou não, o certo é que Leite de Vasconcelos na sua monumental Etnologia Portuguesa, refere e descreve os chamados pretos de Alcácer ou mulatos da Ribeira do Sado, correspondentes a habitantes desta região que apresentavam nítidos traços africanos.

ALENTEJANOS DE PELE ESCURA

Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão.

(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal, Alentejo, sul de Portugal)

Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.


Gandola


Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente verdadeiramente preta diante dos seus olhos, nem encontrará moças da cor do carvão propriamente dito na aldeia de São Romão. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.



Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características fisicas referidas. São os chamados mulatos de Alcácer, por vezes também designados carapinhas do Sado.



O seu aspecto é semelhante ao de muitos cabo-verdeanos, mas eles não têm quaisquer laços com as ilhas crioulas de Cabo Verde. São filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente, ao longo de muitas gerações. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.



É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.




O vale do Rio Sado, no troço indicado, é um vale alagadiço onde hoje se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo nesse troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se naquela região.



No séc. XVI, muitos portugueses embarcavam nas naus, o que agravava ainda mais o défice demográfico existente. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros.


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Corsários Portugueses

 

As Muralhas da cidade de Lagos

Durante o século XV os portugueses eram tidos como os maiores corsários da cristandade, actividade considerada nobre e honrada e apoiada pela família real. O corso era muito mais do que simples pirataria. Cumpria um papel determinante na defesa da costa Sul de Portugal e da navegação, sem encargos para o estado, que recebia parte dos lucros arrecadados. O corsário não era apenas um pirata, mas uma espécie de guerrilheiro do mar, que defendia os interesses estratégicos do país, preenchendo a lacuna da falta de uma marinha de guerra eficaz. A versatilidade dos navios corsários tinha uma grande eficiência no combate à pirataria inimiga e o caracter não oficial do corso desresponsabilizava a coroa dos actos por si cometidos.

Com a conquista de Ceuta, Portugal passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e afirma-se perante Castela como a grande potência naval da região. Este facto, aliado à necessidade de proteger os cada vez mais numerosos comboios de navios mercantes dos assaltos dos corsários Norte Africanos, origina um incremento do corso português, que esteve na génese dos próprios Descobrimentos.

Planta da cidade de Lagos de Alexandre Massay, 1621, códice Vieira da Silva, Museu da Cidade de Lisboa

Portugal utilizava a guerra no mar desde que era nação. O mais antigo corsário português de que há memória foi D. Fuas Roupinho, o Almirante, cavaleiro Templário e alcaide de Porto de Mós. A sua actividade como comandante naval desenvolveu-se durante o reinado de D. Afonso Henriques, combatendo os corsários Norte Africanos e fazendo incursões no Algarve e Andaluzia, chegando mesmo a atacar Ceuta. Contava com uma frota de 40 navios.

É inegável que Portugal tinha já nos séculos XIII e XIV uma indústria de construção naval forte, como provam as inúmeras referências a taracenas de construção e reparação de navios.

No século XIV, D. Dinis contrata o genovês Micer Manuel Pessanha (Emanuel Pessagno) para organizar a armada portuguesa e operar nas costas do Algarve e Alentejo. Pessanha introduz as galés na guerra do corso, navios movidos a remos e à vela, de grande versatilidade. Como recompensa pelos seus serviços foi-lhe concedido o título de Almirante e doada a Vila de Odemira.

Carta do Algave de Alexandre Massay, 1621, códice Vieira da Silva, Museu da Cidade de Lisboa

O Algarve era o centro da actividade marítima portuguesa ligada à guerra do corso e à exploração dos mares, e uma zona privilegiada no relacionamento com o Norte de Africa. Essa predisposição tem a ver com o facto de após a sua conquista pelos portugueses não ter existido um movimento significativo de populações para o Magrebe, ficando muitos mouros na região, que mantinham contactos e trocas comerciais com Marrocos. O Algarve era um mundo à parte no contexto de Portugal, isolado pela serra algarvia, mantendo as suas tradições e cultura intactas. “Basta referir que em 1320, no reinado de D. Dinis, não havia ainda, ao que se supõe, nenhuma igreja cristã em Lagos, o mesmo acontecendo aliás em Lagoa, Portimão, Monchique, Olhão ou Vila do Bispo”. (LOUREIRO, 2008, p. 17)

O aumento da presença dos portugueses no Algarve e sobretudo o desenvolvimento do comércio na região, que se torna um importante entreposto de produtos entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa, tem como consequência o incremento dos ataques dos corsários mouros, que frequentemente faziam pilhagens nas próprias cidades.

Para fazer face a esta situação, “el-rei D. Pedro concedeu aos moradores de Lagos o direito de andarem armados (…) a concessão régia deste privilégio dá bem ideia do ambiente de guerra latente que se vivia…” (LOUREIRO, 2008, p. 23)

O Mar das Éguas era permanentemente percorrido por navios corsários, portugueses e mouros, em busca de vítimas para os seus ataques.

“Embora os contactos comerciais pacíficos nunca tenham sido interrompidos, assistiu-se então ao recrudescimento da pirataria. De parte a parte, tornam-se cada vez mais frequentes os ataques de piratas a embarcações comerciais ou as incursões a povoações costeiras.” (LOUREIRO, 2008, p. 21)

O Mar das Éguas ou Golfo dos Algarves visto de satélite

Vemos assim que no final do século XIV a actividade corsária generaliza-se em Portugal. Os corsários portugueses actuavam preferencialmente no chamado Mar das Éguas, ou Golfo dos Algarves, e no Atlântico, mas também no Mediterrâneo, quer fosse ao serviço do Rei de Portugal ou de nobres nacionais, quer fosse por conta própria, quer fosse inclusivamente ao serviço de potências estrangeiras. Ao corsário era atribuída uma “carta de corso”, documento que legitimava a sua actuação perante as autoridades e lhe permitia usar os portos desse país como bases. Em troca, o corsário ficava vinculado à política externa do seu patrocinador, a quem entregava 1/5 dos seus proveitos.

A casa real não se limitava a apoiar o corso, como detinha os seus próprios navios corsários, que saqueavam e atacavam navios, e promoviam expedições de busca de novas terras, para a expansão da sua actividade, pilhagem dos seus recursos e sobretudo rapto e escravidão dos seus habitantes. O corso era uma forma de enriquecimento e de ascensão social, já que muitos escudeiros eram nomeados cavaleiros após passarem algum tempo nos navios corsários, beneficiando também de reduções e isenções de impostos.

A actividade dos corsários portugueses teve um tal incremento no século XV, que não só atacavam os navios sarracenos, como os próprios navios de Portugal e Castela, motivando frequentes queixas ao rei. Era comum os navios corsários portugueses posicionarem-se na foz do Guadalquivir para atacar os navios mercantes espanhóis assim que estes se faziam ao mar.


O Forte da Ponta da Bandeira em Lagos

Os principais ninhos de corsários portugueses eram Lagos, Tavira, Odemira, Lisboa, Buarcos e Leça da Palmeira, mas Ceuta suplantaria todos eles na sua importância após a sua conquista em 1415.

Lagos tinha uma posição estratégica para o controlo da navegação, pela curta distância a que se encontra do Cabo de S. Vicente. Era a vila do Infante D. Henrique, sua principal base e um verdadeiro ninho de corsários e piratas.

O governador do Reino do Algarve escreveria alguns anos mais tarde sobre Lagos, em carta enviada ao Rei D. José, que “este lugar era a chave do reino, por ser situado na costa do mar, com uma baía onde podiam dar fundo mais de duzentas naus de guerra e que junto tinha uma praia de mais de légua onde em poucas horas se podia fazer um desembarque de grande exército”. (LOPES, 1988, obra citada)

Em 1444, Lançarote de Freitas, almoxarife da Vila de Lagos, funda a Parceria de Lagos, uma “sociedade de exploração e comércio organizada para resgate e descobrimentos da costa da Guiné” (PAULA, 1992, p. 357), que irá congregar os principais corsários de Lagos, como Soeiro da Costa, Gil Eanes, Vicente Dias e Estêvão Afonso, entre outros, promovendo expedições à costa Ocidental de Africa para captura de escravos.


Vista de Lagos . A Cidade e a Baía

A primeira expedição parte nesse mesmo ano de 1444 e é constituída por 6 navios, comandados por Lançarote de Freitas, Gil Eanes, Estêvão Afonso, Rodrigo Alvares e João Dias, capturando 235 berberes e negros nos bancos de Arguim, na costa da Mauritânia. A sua venda num terreiro junto às Portas da Vila em Lagos foi descrita por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné:

“Uns tinham as caras baixas, e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos neles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao pai da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais posto que as palavras da linguajem aos nossos não pudesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza (…) as mães apertavam os outros filhos nos braços, e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhe não serem tirados! (…) O Infante estava ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro” (ZURARA, [1448] 1841, p. 133-135)

Nos dois anos que se seguiram partiram mais expedições de Lagos com destino a Arguim, trazendo escravos. O volume do tráfico negreiro era tal, estimado em 700 a 800 escravos traficados por ano, que foi fundada uma feitoria em Arguim, onde se trocavam trigo, tecidos e cavalos por escravos e ouro, e que originou a criação em Lagos da Casa de Arguim e da Casa da Guiné para gerir o negócio.


infante D. Henrique

O rei tinha os seus próprios corsários, os “corsário del rei”. Os infantes D. Henrique, D. Fernando, D. Pedro e D. Duarte tinham todos corsários ao seu serviço, mas o infante D. Henrique era de longe o grande promotor dos corsários de Portugal. Era D. Henrique quem promovia e autorizava as expedições corsárias e o tráfico de escravos, e sobretudo que lucrava pessoalmente com o negócio, já que era detentor do seu monopólio.

As condições dos contratos celebrados entre o Infante e os particulares impunham que “se o particular armasse uma caravela à sua custa, e a carregasse de mercadoria, teria de pagar ao Infante um quarto da carga importada de Africa”, mas “se o Infante armasse a caravela e o particular a abastecesse de mercadoria, o Infante receberia metade da carga de retorno”. (LOUREIRO, 2008, p. 61)

Para além da casa real, a nobreza também promovia o corso como um investimento lucrativo e uma forma de afirmar o seu poder e influências. Nobres como Álvaro de Castro, conde de Monsanto, ou Sancho de Noronha, Conde de Odemira, eram proprietários de navios corsários, pagando o correspondente tributo à casa real. O próprio clero participava neste negócio, como atesta o facto de D. Álvaro Afonso, bispo de Silves e Évora, chanceler-mor do infante D. Pedro, ter navios no corso. De entre a extensa lista de corsários portugueses destacam-se figuras como Bartolomeu Dias, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Vasco Anes de Corte Real, Álvaro Fernandes Palenço, Álvaro Mendes de Cerveira ou Pedro Vaz de Castelo Branco.


Corsários

As Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis também estiveram envolvidas na guerra do corso. Não foi estranho a esta situação o facto do Infante D. Henrique ter sido administrador da Ordem de Cristo até 1460 e D. Fernando da Ordem de Santiago. A Ordem de Avis foi particularmente activa no Mediterrâneo, onde se destacaram os corsários Soeiro da Costa, alcaide de Lagos, Rodrigo Sampaio, Diogo de Azambuja e Pedro de Ataíde o inferno, o mais famoso de todos os corsários portugueses, que ficou na história pelo terror que incutia nos mares por onde navegava.

As Praças portuguesas e as principais bases corsárias Norte-africanas na costa de Marrocos

O estabelecimento das Praças-fortes portuguesas em Marrocos foi em parte motivado pela actividade dos corsários Norte-africanos, já que a sua relação com as cidades da costa de Marrocos sempre foi evidente. Para além disso, a presença portuguesa no local levaria a guerra do corso para o território inimigo, abrindo outras perspectivas em termos de estratégia. A conquista de Ceuta de 1415 é assim determinante na luta de Portugal contra a pirataria Norte-africana.

Conforme refere David Lopes, ”Esses ladrões do mar, no Mediterrâneo como no Estreito e no Atlântico, ou ao longo das suas costas, salteavam os navios e as populações do litoral, roubando uns e outros, cativando as pessoas, ou matando-as, se resistiam. Quando a nossa gente entrou em Ceuta, encontrou lá dois sinos que os corsários tinham tomado em Lagos, e foram colocados na antiga mesquita convertida em igreja.” (LOPES, [1937] 1989, p. 8)

David Lopes refere também as inegáveis vantagens que as praças de Marrocos prestaram na luta contra o corso. “Desde então Ceuta foi padrasto dos mouros. A cavaleiro do Mediterrâneo e do Estreito, vigiava essa navegação inimiga, e impedia-a muitas vezes, ao mesmo tempo que protegia a outra navegação cristã entre o Mediterrâneo e o Atlântico. O benefício geral que daí resultava era muito grande e Portugal prestava um inestimável serviço à navegação europeia.” (LOPES, [1937] 1989, p. 9)

Gravura de Ceuta no séc. XVI de Braun and Hogenberg


Ceuta transforma-se rapidamente na maior base de corsários portugueses, suplantand o a importância de Lagos. A conquista de Ceuta alarga o âmbito das açcões de Portugal, que passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e a sabotar o comércio entre Marrocos e o reino de Granada.

D. Pedro de Menezes é nomeado capitão da Praça e responsável pela sua defesa. Pedro de Menezes compreende rapidamente que a defesa de Ceuta não se faz só por detrás dos seus muros, mas principalmente no mar. Inicialmente só tinha ao seu dispor duas galés deixadas por D. João I à guarda de Micer Tom, irmão do Almirante da armada de Portugal, que se mostraram embarcações pouco adequadas para combater os corsários muçulmanos.

“Na altura do regresso a Portugal, após a conquista de Ceuta, João I deixou em Ceuta duas galés para guardar o Estreito e defender a praça, recém-ocupada. O tempo demonstrou, no entanto, que para reprimir a pirataria muçulmana, era conveniente usar-se um tipo de barco, rápido e ligeiro, capaz de perseguir e se aproximar do inimigo e, naturalmente, apresá-lo. Ocorreu, assim, a necessidade de se construírem embarcações menores e mais velozes, a fim de se adaptarem às águas da bacia do Mediterrâneo e do «Mar das Éguas». Também se verificou o recurso a lenhos capturados pelos corsários, que iam engrossar a marinha de guerra portuguesa. A coroa e, em particular, Ceuta assimilaram esta experiência funcional, ao optarem pelo fabrico de naves de baixa tonelagem, adaptadas à singularidade de navegação no Estreito. Ao menor porte, exigia-se que fossem céleres. Ora, uma pequena vela actuava em qualquer praia, ancoradouro, enseada, o que não acontecia com outras de maiores dimensões, que exigiam lugares mais apropriados.” (CRUZ, 2003, p. 54)


Fusta com pavilhão português, de Jan Huygen van Linschoten, Koninklijke Bibliotheek, Holanda

O primeiro navio construído em Ceuta foi uma fusta baptizada “Santiago Pé de Prata”, cujo comando foi confiado ao corsário Afonso Garcia, homem que nutria um ódio muito particular pelos mouros, dado que passara algum tempo nas masmorras de Marrocos. Seguiu-se a construção de outros barcos de pequeno porte e a utilização de navios aprisionados. “Do que foi dado a estudar, a frota portuguesa empregou, preferencialmente, a fusta e o bergantim, seguido da galeota e da barca e, com menor expressão, a barqueta, galé, além da caravela e alaúde”. (CRUZ, 2003, p. 55)

Muitos nobres mantinham frotas de corso em Ceuta, a começar por D. Henrique e D. Pedro, cujas embarcações circulavam entre a cidade e Lagos. Zurara refere-se às “Fustas do Conde, das quais era o principal Capitão Álvaro Fernandes Palenço, homem por certo nobre, e que grandes, e muito notáveis coisas fez no mar”. (ZURARA, [1463] 2015, p. [534-535] 330-331 )

Outros estabeleceram-se em Ceuta e aí geriam os seus negócios, como Micer João de Salla-Nova, Diogo Vasques ou Fernão Guterres. Muitos estrangeiros também utilizavam Ceuta como sua base, principalmente genoveses e aragoneses, como Pêro Palau ou Benito Fernandez. D. Pedro de Meneses empregava nos seus navios corsários portugueses e estrangeiros, como o genovês Pedro Palhão ou o castelhano João Riquelme, construindo em poucos anos um autêntico império económico.


Ataques corsários portugueses realizados a partir de Ceuta


O aumento do número de corsários e dos recursos navais expandiu a actividade do corso sediado em Ceuta para o Mar de Alborán, a Leste, até ao Cabo Gata e para a costa Atlântica de Marrocos até Anafé. A esta expansão da actividade do corso correspondeu também o aparecimento das incursões em terra, muitas vezes de forma concertada com a marinha de guerra e a tropa regular, saqueando aduares com o objectivo de fazer cativos e pilhar gado, colheitas e outros bens.

“Como nos faz crer Zurara, era difícil a Ceuta manter-se sossegada: ora se faziam entradas território adentro, ora incursões marítimas”. (CRUZ, 2003, p. 50)

A Ceuta afluíam muitos aventureiros em busca de fortuna, nobres que procuravam fama e honra, degredados que expiavam os seus crimes. Ceuta transforma-se em pouco tempo numa cidade sem uma estrutura social tradicional, vivendo de actividades parasitárias e acolhendo uma população marginal, sendo geralmente referenciada como o “presídio de Ceuta”.

Corsários portugueses

Nos séculos seguintes o corso português expande-se pelos 4 cantos do mundo, do Oriente às Caraíbas, nas costas Ocidental e Oriental de Africa. O incremento do comércio marítimo origina o aparecimento do corso generalizado nas várias potências europeias.

Muitos portugueses viriam a ter um papel preponderante no contexto da pirataria mundial, ao serviço de Portugal, de outras potências ou de si próprios.

É inegável o contributo de Portugal para o desenvolvimento da indústria da construção naval, do aperfeiçoamento das técnicas de navegação e da cartografia, mas os Descobrimentos portugueses, iniciados no final do século XIV e início do século XV ficaram inevitavelmente marcados pela política de guerra personificada pelo Infante D. Henrique e por actividades menos nobres que lhe estavam associadas, como a pirataria e o tráfico de escravos.

Mães de agora e as avós de antigamente

Este texto, o recado e a resposta, é genial. O autor estava com a inspiração ao mais alto nível e, o retrato dos dias de hoje, não podia ser mais fiel! Excelente.

RECADOS DE UMA MÃE PARA UMA AVÓ, QUE VAI FICAR COM OS NETOS ALGUNS DIAS, EM AGOSTO...

• Deixei um saco com comida para os miúdos. Arroz sem glúten, massa sem glúten, bolachas sem açúcar, alfarroba desidratada e biscoitos de aveia e quinoa dos Andes.
• Não lhes dê bolos de pastelaria. Nem sumos de pacote. Nem leite de vaca. Nem chocolates. Nem leite com chocolate.
• Eles não comem nada que tenha açúcar refinado. Eu sei que a mãe faz um bolo de cenoura ótimo, mas se fizer use apenas açúcar amarelo. Mas só metade da dose. E cenoura biológica.
• Deixei também açúcar amarelo. É especial, extraído de cana-de-açúcar explorada de forma sustentável.
• Se eles insistirem muito para comer doces, dê-lhes uma peça de fruta biológica. Ou um abraço.
• O Pedro pode brincar com o iPad dele antes de ir para a cama. Mas não nos últimos 34 minutos antes de apagar a luz. É o que dizem os estudos mais recentes.
• Se ele ensaiar uma fita por causa disso, não o contrarie de mais. Não lhe tire o iPad das mãos à força. Dialogue com ele. Convença-o. Queremos que os miúdos tenham capacidade de argumentação e não queremos contrariá-los de mais, para não serem castrados na construção da sua personalidade. No fim, dê-lhe um abraço.
• O iPad é a única coisa eletrónica que o Pedro tem. O psicólogo dele dizia que não devia haver tecnologia nenhuma até aos 12 anos. Mudámos de psicólogo e o outro diz que pode haver, desde que tenha jogos que estimulem a parte do cérebro onde se constroem as emoções. Como ficámos baralhados, arranjámos um terceiro psicólogo, que disse para fazermos o que quisermos.
• Eles têm uma série de brinquedos de madeira e metal, feitos por artesãos velhinhos. Às vezes queixam-se que as rodas de lata não andam. Se for o caso, ajude-os a brincar com outra coisa qualquer, desde que não tenha plástico. Não queremos brinquedos de plástico.
• Se forem à feira e eles quiserem comprar bugigangas nos vendedores, compre-lhes uma rifa. Ou uma maçã. Ou dê-lhes um abraço.
• Todos os brinquedos devem ser partilhados. Não há brinquedo de menina e brinquedo de menino. Se o João quiser brincar com as bonecas de linho biológico da irmã, não há problema.
• Se ele quiser vestir as saias dela, também não há problema. Não queremos limitar a identidade de género dos nossos filhos.
• Há um saco com sabonete natural e champô à base de plantas medicinais sem aditivos químicos. Cheira um pouco mal, mas é ótimo para o cabelo.
• Mandei também umas toalhas de algodão biológico. Use só essas quando forem para a praia. São as melhores para o pH da pele deles.
• Todas as noites eles devem ouvir um pouco de música. Não pode ser o Despacito. O ideal é ser aquele CD de monges tibetanos. Aqueles sons são bons para o cérebro e para a digestão.
• Se eles quiserem subir às árvores, podem subir. Mas devem dar um abraço ao tronco antes disso. De preferência, devem agradecer à árvore antes de subirem para cima dela.
• Eles precisam de três abraços por dia. Pelo menos. Por favor não esqueça isso. E se puder, dê-lhes abraços de pele a tocar na pele. A energia positiva assim passa de forma mais eficaz.
PS 1: Mãe, não se enerve depois de ler isto tudo.
PS2: Cole este papel na porta do frigorífico, para não se esquecer de nada. Mas não use fita-cola, que isso tem plástico.


RESPOSTA DA AVÓ QUE FICOU COM OS NETOS ALGUNS DIAS NAS FÉRIAS:


• Olha, filha, não sei se percebi bem os recados que me deixaste. Dizias que a Matilde não come arroz, mas houve um dia em que ela quis provar do arroz de frango que fiz para mim e para o teu pai e gostou. E pediu para repetir. Duas vezes. Já não me lembro se vocês são vegetarianos ou não, se os miúdos comem carne às vezes ou só às terças e quintas, mas ela pareceu tão consolada que no dia seguinte fiz mais. E também gostou do sarrabulho.
• Não lhes dei bolos, como pediste. Mas o teu pai não leu os recados. E ele deu. Todos os dias ao fim da tarde iam dar um passeio com o avô e o cão e passavam por casa da tia Idalina, que lhes dava uns biscoitos. Só soube isto no fim das férias. Mas acho que os biscoitos são muito bons. Depois peço-lhe a receita para te dar. Mas ela não usa cá açúcar amarelo. Não há disso na aldeia.
• Comeram iogurtes e tivemos de comprar mais queijo porque eles acabaram num instante o que tínhamos cá em casa. Já não me lembro se podiam comer queijo ou não ou se era o leite de vaca que não podiam beber. Mas como é difícil arranjar leite de cabra, comprámos do outro na mercearia e não nos chateámos com isso. Não te chateies tu também.
• Não brincaram com o iPad. Enquanto estiveram cá na aldeia nem lhe mexeram. Mas adormeciam a ver televisão. Dizias uma coisa qualquer sobre ecrãs à noite, mas eu não percebi bem.
• Houve algumas birras. E numa delas o João fartou-se de chorar. Ele disse que ia ligar-te, mas o teu pai disse-lhe para ir mas é jogar à bola e estar calado e a coisa resultou.
• Não lhes comprei brinquedos de plástico na feira, como tu disseste. E eles ficaram amuados comigo e não quiseram voltar à feira mais nenhum dia, o que foi uma chatice. Que raio de ideia, filha. Isso não correu muito bem.
• O champô que mandaste para eles, aquele das plantas medicinais, cheirava mesmo mal. Tem paciência, mas lavei a cabeça dos teus filhos com o meu champô. É bem mais barato do que o teu. Andas a gastar uma fortuna numa coisa malcheirosa, filha.
• As toalhas de algodão armado ao pingarelho que tu mandaste são tão fofinhas e estavam tão bem arrumadas que as deixei estar no sítio. Tive medo de as estragar. Os teus filhos tomaram banho todos os dias e limparam-se às toalhas que havia cá em casa. E não lhes caiu nenhum pedaço de pele. Acho que fiz tudo bem.
• Querias que lhes desse três abraços por dia. Nuns dias dei mais, noutros não dei nenhum. E houve um em que me apeteceu dar um tabefe à Matilde, porque estava a fazer uma fita, mas depois acalmou.
• Não houve cá abraços a árvores. Esqueci-me. E houve um dia em que o Pedro caiu da árvore do quintal e fez uns arranhões. Acho que não tinha vontade nenhuma de dar abraços ao tronco.
• Aquela coisa de o João vestir as saias da Matilde é que me pareceu esquisito. Ele nunca pediu para vestir a roupa da irmã. Eu achei isso bem e fiquei contente.
• Todas as noites ouviram música, como pediste, mas não foi o CD dos monges tibetanos, que isso irritava o teu pai. Ouviam a música dos altifalantes da festa. Não querias o Despacito, mas ouviram isso umas dez vezes por dia. E o Toy também. E o Tony Carreira e o Emanuel.
• Só deves ver este papel quando acabares de tirar as coisas dos sacos dos miúdos. Deixei isto no fundo da mochila do Pedro de propósito. Assim, antes de saberes das coisas que não fiz como tu querias, viste os teus filhos e viste como estavam bem alimentados e cuidados.
PS: não precisas de colar isto na porta do frigorífico. Não quero que gastes fita-cola. Se tiveres alguma dúvida, telefona-me. É isso que as mães fazem: atendem o telefone às filhas para responder a dúvidas sobre os netos."
AUTOR
Paulo Farinha
Jornalista.

sábado, 2 de outubro de 2021

Abimael Guzmán (1934-2021), o professor de Filosofia que aterrorizou o Peru

Morreu aos 86 anos o líder do Sendero Luminoso, a organização terrorista de inspiração maoísta responsável por centenas de atentados e por deflagrar um conflito que em pouco mais de uma década causou 70 mil mortos.


João Ruela Ribeiro 19 de Setembro de 2021


Abimael Guzmán na prisão de Ancon, em Callao, Peru, em Junho de 2017 MARIANA BAZO/REUTERS

Durante mais de uma década, Abimael Guzmán foi o cérebro de uma das insurreições mais irracionais, destrutivas e sangrentas da História da América Latina. O culto que construiu em torno do Sendero Luminoso foi responsável por um conflito que tirou a vida a 70 mil peruanos e do qual o país ainda se ressente. Morreu, aos 86 anos, na prisão militar de alta segurança onde cumpria uma pena perpétua. O seu corpo será cremado.

A imprensa peruana celebrou enfaticamente a morte de um “genocida”, o “pior terrorista” da história do país, um homem “sanguinário”. O destino a dar ao corpo do antigo líder do Sendero Luminoso tornou-se objecto de disputa, entre os que defendiam a cremação e os que desejavam que os seus restos físicos desaparecessem. Mais do que o fim definitivo de um capítulo negro, a maioria dos peruanos parece querer fazer da morte de Abimael Guzmán um “exorcismo”, diz ao PÚBLICO o jornalista Gustavo Gorriti, estudioso da insurreição maoísta no Peru.

Guzmán na base naval de Callao, em Novembro de 2012 - as causas da morte do antigo líder terrorista não foram divulgadas Paolo Aguilar/EPA

Manuel Rubén Abimael Guzmán Reinoso nasceu a 3 de Dezembro de 1934 na cidade costeira de Mollendo, na província de Arequipa, no Sudoeste do Peru. Frequentou uma escola católica, entrou na Universidade de Arequipa para estudar Filosofia e aos 27 anos iniciava uma carreira académica. Vai dar aulas na Universidade Nacional San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho, onde rapidamente se torna um professor muito popular entre os alunos.

Por esta altura, influenciado pelo êxito da Revolução Cubana de 1959, Guzmán era já um marxista. “Ao contrário de outros, que mantiveram flexibilidade e tolerância, ele era disciplinado, literal, ultra-ortodoxo e plenamente dedicado a impor uma revolução comunista no país através da violência”, escreve Gorriti num ensaio publicado a propósito da morte de Guzmán.

Guzmán visita a China em duas ocasiões, a última das quais em 1967, quando a Revolução Cultural lançada por Mao Tsetung atravessa um período de intensa violência. O contacto próximo com o ambiente fervilhante das purgas, perseguições e, sobretudo, o culto a Mao, causam uma forte impressão junto do professor de Filosofia.

A partir da década de 1970 Guzmán dedica-se quase em exclusivo a doutrinar e recrutar estudantes universitários para a organização que tinha fundado: o Partido Comunista do Peru — Sendero Luminoso. O carisma e a capacidade para influenciar quem o ouvia são qualidades omnipresentes nas descrições feitas a seu propósito. Em 1980, numa altura em que a ditadura militar dava lugar a um processo de democratização no Peru, o Sendero Luminoso dá início à sua fase de violência. Imbuído de toda a prática maoísta, Guzmán — que os seus seguidores tratavam como “presidente Gonzalo” — lança a insurreição a partir dos campos e só depois avança rumo às cidades.

Seguem-se anos de inúmeros atentados contra instituições públicas, assembleias de voto, esquadras e instalações militares. No seu auge, o Sendero Luminoso chegou a contar com dez mil militantes e ameaçou tomar conta do Peru. Guzmán não era um operacional; actuava como pólo ideológico, com a função de manter vivo o fanatismo dos recrutas. Nem sempre os alvos do fanatismo senderista eram governamentais. Os militantes maoístas foram responsáveis por um massacre em que seis mil ashaninkas, um povo indígena amazónico, foram mortos, e muitos outros sujeitos a abusos sexuais e trabalho escravo.


Guzmán visita a China em duas ocasiões, a última das quais em 1967, quando a Revolução Cultural lançada por Mao Tsetung atravessa um período de intensa violência

Os ensinamentos do professor, explica Gorriti, forneciam “uma ideologia completa, uma interpretação redonda do mundo, que ia desde a Física até à Psicologia, que falava de leis históricas inelutáveis, que falava do desenvolvimento da humanidade, que dizia que o caminho para o socialismo e depois para o comunismo era difícil, que exigia bastantes sacrifícios, que exigia um rio de sangue, mas que por fim iria permitir alcançar a sociedade da harmonia plena e da justiça social”.

Mais do que uma luta em nome dos peruanos oprimidos, frequentemente era o fanatismo ideológico inculcado por Guzmán aos seus seguidores o que mais importava. Em Lima, chegaram a aparecer cães mortos com cartazes que diziam “Deng Xiaoping, filho de uma cadela”, ou então murais com lemas maoístas que deixavam os habitantes locais perplexos. “Por trás disso estavam os quadros ultra-ideologizados, levados a um frenesim, sentindo que estavam a levar em frente a verdade histórica, a necessidade dialéctica, segundo o comando daquele que consideravam o maior filósofo ao cimo da terra”, diz Gorriti.

Os peruanos passaram os anos 1980 sem conhecerem a fonte do seu terror. Pouco se sabia sobre o obscuro líder do Sendero Luminoso, e nem fotografias suas existiam. A sua captura parecia uma miragem e essa aura da invencibilidade ajudava a atrair mais poder para a organização.

Até que em 1991, numa audaciosa operação da unidade antiterrorismo da polícia é encontrado um vídeo em que Guzmán e outros membros do comité central do Sendero aparecem a dançar a música de Zorba, o Grego, pondo fim ao manto de secretismo que cobria o “presidente Gonzalo”.

Depois de meses de uma minuciosa preparação, Guzmán é capturado vivo e sem qualquer ferimento numa casa em Lima, a 12 de Setembro de 1992. A prisão e o julgamento de Abimael Guzmán transformaram-se numa manobra de propaganda para o Presidente Alberto Fujimori, que acabava de orquestrar um golpe parlamentar para se manter no poder.

O homem que aterrorizou o Peru durante mais de uma década foi presente a um tribunal militar vestido com um uniforme prisional às riscas e óculos de sol. Declarou-se culpado de todos os crimes e foi condenado a prisão perpétua. Formalmente, o Sendero Luminoso manteve-se em actividade, mas, com Guzmán atrás das grades e a aparecer na televisão a pedir a rendição dos restantes elementos, a organização rapidamente soçobrou.


A imprensa peruana celebrou enfaticamente a morte de um “genocida”, o “pior terrorista” da história do país, um homem “sanguinário”