Lisboa guarda escândalos (quase) em cada esquina.
Majestic ClubO Majestic Club, hoje Casa do Alentejo, foi o primeiro casino da capital onde se faziam e desfaziam fortunas numa noite.
Três horas para ir da Praça da Alegria até à Rua do Carmo? A "culpa" é das imensas histórias, mais ou menos escandalosas, que saltam a cada passo destes cerca de dois quilómetros
A Praça da Alegria como ponto de encontro para uma visita guiada com o título Lisboa Escandalosa não provoca grande surpresa se pensarmos que no número 58 da praça funcionou durante muitos anos uma referência da noite lisboeta, o cabaré Maxime. Mas não é por aí que Mónica Queiroz, técnica da Câmara Municipal de Lisboa e guia desta viagem, começa este itinerário pedestre, um dos muitos que a autarquia organiza regularmente, realizado pela primeira vez na última quinta-feira e que se repetirá em várias datas até Junho.
O busto do músico, pintor e poeta Alfredo Keil (1850-1907), que empresta o nome ao jardim situado no meio da praça, dá o tom e leva o grupo de mais de duas dezenas de curiosos - muitos deles habitués destes itinerários - ao final do século XIX e a uma incursão por um símbolo nacional. Mais propriamente o hino - e o escândalo provocado pela letra de Henrique Lopes de Mendonça para a música composta por Alfredo Keil. A razão é simples: inicialmente (1890), um dos versos do refrão de A Portuguesa era "contra os bretões marchar, marchar" em vez de "contra os canhões marchar, marchar", pondo em causa a aliança entre Portugal e Inglaterra, velha de mais de cinco séculos, numa reacção contra o Ultimato britânico que obrigava Portugal a retirar as forças militares do território entre as colónias de Moçambique e Angola.
Ainda no Jardim, outro escândalo, este mais caseiro. E mais um recuo no tempo, agora até à Lisboa setecentista e ao caso de adultério da jovem e bonita Isabel Xavier Clesse, "que tentou envenenar o marido, Tomás Luís Goilão, um piloto da carreira das Índias que, por isso mesmo, passava muitos meses fora de casa", conta Mónica Queiroz. Ora, "o ácido nitroso que Isabel mandou o seu criado João comprar numa botica, dizendo que era para tratar dos calos ao marido", acabou por não ser fatal ao piloto, que se salvou. Já Isabel acabou por ser condenada à morte, por enforcamento, ali mesmo, na Praça da Alegria. A guia explica porquê: "Este local, onde até 1833 se realizava a feira da ladra, foi também Campo de Forca."
Campo de Forca.
A Praça da Alegria funcionou como Campo de Forca
Ainda no mesmo local, regresso ao século XX, aos anos 20 e à fundação dos teatros do Parque Mayer - Maria Vitória (1922), Variedades (1926), Capitólio (1931) e ABC (1956) - e "à criação de cabarés e outros clubes nocturnos, tendência que se manteve até aos anos 1950". Finalmente o Maxime, "o Ricks" Café de Lisboa, um ninho de espiões alemães, ingleses e franceses durante a Segunda Guerra Mundial", conta. "As bailarinas que aí trabalhavam tentavam conseguir informações a uns para vender a outros."
A Praça da Alegria funcionou como Campo de Forca
Ainda no mesmo local, regresso ao século XX, aos anos 20 e à fundação dos teatros do Parque Mayer - Maria Vitória (1922), Variedades (1926), Capitólio (1931) e ABC (1956) - e "à criação de cabarés e outros clubes nocturnos, tendência que se manteve até aos anos 1950". Finalmente o Maxime, "o Ricks" Café de Lisboa, um ninho de espiões alemães, ingleses e franceses durante a Segunda Guerra Mundial", conta. "As bailarinas que aí trabalhavam tentavam conseguir informações a uns para vender a outros."
O Cabaret Maxim era o Rick's café de Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial
Percorrendo uns metros na Rua da Glória, encontra-se a indicação "Tuna Comercial de Lisboa" no edifício do número 57. Era aí que em 1915 funcionava o Clube Montanha, e o cartaz que Mónica Queiroz mostra anuncia "jazz band, variedades", com indicação da hora de abertura, 19.00, quanto ao fecho… Este foi um dos muitos clubes nocturnos da Baixa onde os loucos anos 1920 agitaram a vida da capital. Estes espaços de diversão estavam ligados à modernidade de costumes e atitudes, muitas vezes vistos como escandalosos, claro, seja da moral vigente, das novas músicas que aí se ouviam ou das danças aí praticadas. Mas também por efectivas violações à lei, como era o caso do consumo de drogas, com destaque para a cocaína. "Foi neste clube que uma famosíssima corista francesa, Charlotte, introduziu o consumo da cocaína." E se nos vizinhos Ritz Club ou Maxim"s, agora Palácio Foz, era preciso uma bolsa mais recheada, "aqui bastavam 20 escudos para ser noite até de manhã", diz a guia, citando o cantor Vitorino.
Em 1908, no Palácio Foz foi criado o mais importante clube nocturno da cidade, o Maxim's
Descendo a Travessa da Glória em direcção à Avenida da Liberdade, o restaurante Sancho é aproveitado por Mónica Queiroz para recordar os anos escandalosos entre 1253 e 1258, em que Portugal foi um país excomungado pelo Papa. Com a sucessão em perigo por falta de herdeiros de D. Sancho II, o seu irmão, D. Afonso III, envolve-se numa conspiração no sentido de tomar a coroa. Casado desde 1235 com Matilde, condessa de Bolonha, também não tinha herdeiros e, por isso, em 1253 casa-se com D. Beatriz, filha de D. Afonso X, de apenas 9 anos. Ora, como Matilde de Bolonha só morreu em 1258, "o Papa não podia abençoar um rei bígamo".
No Convento da Anunciada, uma freira forjou chagas nas mãos e nos pulsos
É já do outro lado da Avenida, no Largo da Anunciada, junto à Igreja de São José, que chega um escândalo envolvendo a igreja. Aqui a protagonista é Soror Maria de Visitação de Menezes, que nos pulsos e nas mãos forjou chagas, com a ajuda involuntária do pintor espanhol Fernão Gomes que na altura estava a trabalhar no Convento da Anunciada. Com a Infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, a ser enganada por esta religiosa que visitava, bem como Filipe II, "que também acreditava na veracidade das chagas", é fácil perceber que este caso tenha alimentado muita literatura escandalosa e proibida.
Literatura essa que volta a ser referida já no regresso à Avenida da Liberdade, junto ao busto do escritor e político Pinheiro Chagas (1842-1895), amigo do escritor e jornalista Alfredo Gallis (1859--1910), que se tornou bastante popular com os folhetins e romances plenos de referências sensuais.
Uns passos mais à frente, nova paragem frente ao Condes, hoje o Hard Rock Café Lisboa. Um regresso à década de 70 do século XVIII para falar da actriz italiana Anna Zamperini, que actuou no teatro que aí existia na altura, e o desassossego que gerou na sociedade de então a sua relação com o padre Manoel de Macedo e com o filho do Marquês de Pombal, então presidente do Senado da Câmara de Lisboa. Conta Mónica Queiroz que, para garantir meios financeiros para o teatro (e para a sua sua amada), Henrique José de Carvalho e Melo convocou os comerciantes mais importantes da cidade e, com uma sala iluminada por 200 velas, fez entrar Anna Zamperini. A encenação foi convincente.
Em reacção ao livro "Portugal de Relance" de Madame Ratazzi, Bordalo Pinheiro fez uma caricatura da descendente de Napoleão.
De costas voltadas para o Condes, o itinerário regressa aos primeiros anos do século XX com passagem pelo agora Palácio Foz, que, em 1908, era "o melhor cabaret dancing de Lisboa, com sessões de striptease". "Com uma porta principal e outra secreta, com salas privadas, era uma casa de luxo, e para aí se entrar era preciso ter um cartão; era de grande prestígio social conseguir esse cartão", revela.
Por entre outras histórias que vai desfiando, Mónica Queiroz encaminha o grupo para as Portas de Santo Antão, com entrada na actual Casa do Alentejo, o primeiro casino da capital, inaugurado em 1918 com o nome de Majestic Club. O empresário Júlio César Resende "chama uma equipa de decoradores" e o seiscentista Palácio Alverca é renovado em estilo neomourisco. "Aqui entramos nas Mil e Uma Noites, onde se faziam e desfaziam fortunas numa noite", contextualiza. No primeiro andar, um palco divide o salão do restaurante e a sala de jogo, ambas decoradas com sensuais figuras femininas, e por onde circulavam "as papillons que tinham como missão manter os homens a beber e a jogar, a gastar dinheiro".
Após uma passagem pelo Rossio - onde Mónica tanto conta histórias do tempo da expansão em que o exotismo vindo das terras exploradas pelo portugueses ia espalhando o espanto durante o reinado de D. Manuel I como lê uma das poesias eróticas que notabilizaram Bocage (1765-1805) -, o itinerário termina no início da Rua do Carmo. Pretexto? O Hotel Europa, depois Armazéns do Chiado, onde entre 1874 e 1876 se instalou Madame Rattazzi, descendente da família de Napoleão Bonaparte, que, depois de regressar a Paris, escreveu o livro Portugal de Relance, no qual faz um retracto da sociedade portuguesa e, mais do que isso, denuncia esquemas de corrupção relacionados com lotaria e investimentos na bolsa. As denúncias, vindas de uma estrangeira, não foram bem-vistas e valeram uma caricatura de Bordalo Pinheiro, com a qual Mónica termina este itinerário - "um dos vários possíveis" - à Lisboa Escandalosa.
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