“Mr. Five Percent”
Instalado há oito meses em Portugal, Calouste Gulbenkian foi detido pela polícia política de Salazar em Dezembro de 1942. Um episódio que o próprio manteve em segredo e que a ditadura apagou de todos os seus arquivos.
Por José Pedro Castanheira
Calouste Gulbenkian foi um dos muitos milhares de refugiados que se acolheram em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial. Chegado em Abril de 1942, com o estatuto de diplomata do Irão, era já então um dos homens mais ricos do mundo. Hospedado no Hotel Aviz, o melhor de Lisboa, onde tinha à sua conta cinco quartos, foi preso ao fim da
tarde de 17 de Dezembro de 1942 pela PVDE, a temida polícia política de Salazar, e levado para uma das cadeias de Lisboa. Um episódio de que, estranhamente, não há registo nos vários arquivos da ditadura e que agora foi revelado a partir da documentação da Fundação Calouste Gulbenkian.
Com a ocupação do norte de França pela Alemanha de Hitler e a formação de um regime colaboracionista presidido pelo marechal Pétain, o Governo gaulês mudou-se para Vichy, uma cidade ao sul de Paris, na chamada Zona Livre. Para Vichy transferiu-se toda a comunidade diplomática que reconheceu o regime de Pétain, entre os quais se contavam países como Portugal e o Irão. De ascendência arménia,
nascido em Istambul, cidadão britânico e residente em França, Calouste Sarkis Gulbenkian possuía o estatuto de conselheiro económico da embaixada do Irão em Paris. Chegado a Vichy a 15 de Julho de 1942, hospedou-se, juntamente com a mulher, Nevarte Essayan, no Hotel du
Parc et Majestic. No mesmo hotel instalara-se o secretário da
embaixada de Portugal Manuel Nunes da Silva, que, segundo o seu colega José Calvet de Magalhães (no livro de memórias “Diplomacia Doce e Amarga”, Editorial Bizâncio, 2002), “criou uma certa intimidade com o famoso milionário”. Entretanto, a guerra estendera-se ao Irão, invadido por uma força anglo-soviética. Formado um novo regime favorável aos Aliados, liderado pelo xá Mohammad Reza, o Irão rompeu
as relações diplomáticas com a França de Pétain. Nada mais tendo a fazer em Vichy, Gulbenkian decidiu abandonar a França em guerra e, após várias hesitações, refugiou-se em Portugal. Segundo o biógrafo Jonathan Conlin, o seu desejo era, a partir de Lisboa, demandar Nova Iorque, para o que obtivera autorização das autoridades britânicas.
Gulbenkian partiu de Vichy a 30 de Março. A viagem até Lisboa demorou duas semanas. Provavelmente porque ainda teve de acomodar em França a mulher, Nevarte, para curar uma pneumonia que entretanto contraíra.
Segundo Calvet de Magalhães, Gulbenkian fez a viagem no seu automóvel, na companhia do colega português Nunes da Silva, que “conseguiu convencê-lo a vir, simplesmente de passeio, até Lisboa, para conhecer o nosso país”.
Em Lisboa, instalou-se no Hotel Aviz, implantado no terreno agora ocupado pelo conjunto formado pelo Edifício Aviz e o Hotel Sheraton, na Avenida Fontes Pereira de Melo. Considerado o hotel mais luxuoso da capital, era um antigo palacete desenhado pelo arquicteto Ventura Terra e que pertencera a Silva Graça, proprietário do matutino “O Século”, um dos maiores jornais do país, e avô da pintora Maria Helena Vieira da Silva. Após a morte de Silva Graça, exilado em Paris, o palacete foi transformado no Aviz Hotel, inaugurado em 1933. Por lá passaram nomes da aristocracia, da finança, da política e do jet set mundial. O blogue “Restos de Colecção” menciona, a título de exemplo, os actores
Marcello Mastroianni e Ava Gardner, os cantores Frank Sinatra e Maria Callas, a política argentina Eva Perón e os ex-monarcas da Roménia, Espanha e Itália.
Mal chegou, Gulbenkian reservou à sua conta cinco dos 33 quartos do hotel, onde ficou a viver em permanência, acompanhado de dois criados e da secretária e companheira, a francesa Isabelle Theis. A mulher, Nevarte, chegou de França no final de Maio, mas cedo se mudou para o Hotel Palácio, no Estoril, fazendo uma vida inteiramente independente do marido. Como descreve o biógrafo, em 1942, com a Europa mergulhada nos horrores, na escassez e na escalada bélica da Segunda Guerra Mundial, Portugal era uma “terra de sol, paz e abundância (pelo menos
para os ricos)” e “parecia um verdadeiro paraíso”. Completamente desconhecido dos lisboetas, ninguém incomodava Gulbenkian, que passava como um qualquer cidadão estrangeiro anónimo.
Para o mês de Dezembro de 1942 foi agendada uma visita oficial a Lisboa do novo ministro espanhol dos Assuntos Exteriores, o general Francisco Gómez-Jordana, mais conhecido por conde de Jordana.
Empossado há três meses, substituíra no cargo o germanófilo Serrano Suñer. Apostado numa aproximação às potências aliadas e num estreitamento de relações com Portugal, o ministro espanhol far-se-ia acompanhar de uma vasta comitiva, estando prevista a sua chegada para 18 de Dezembro. O conde de Jordana ficaria instalado no Palácio
Burnay, na Rua da Junqueira, demasiado pequeno para acolher toda a comitiva, o que provocou sérias dores de cabeça ao serviço de protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros português. Lisboa, com efeito, estava muito mal fornecida de hotéis de qualidade. E os que havia eram pequenos e estavam ocupados pela verdadeira maré de
refugiados que tinham fugido dos pavores da guerra que submergira quase toda a Europa.
Como era habitual em visitas do género, o chefe interino do protocolo, o embaixador João de Mendonça, tentou acomodar no Aviz parte da comitiva do ministro espanhol. Só que o hotel estava cheio — parte dele à conta de Gulbenkian.
O relato que se segue é do próprio Gulbenkian, que, a 21 de Dezembro de 1942, escreveu, a partir do Hotel Aviz, uma carta ao capitão Agostinho Lourenço, o director da polícia política, que então se chamava Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Redigida em francês, é uma carta de carácter “personnelle” (pessoal), como fez questão de sublinhar, e a letra grande, no canto superior esquerdo.
São três páginas com uma informação “tão concisa quanto possível”, mas ainda assim detalhadíssima, de um incidente ocorrido dias antes, que classificou de “muito lamentável”.
Conta Gulbenkian que, na tarde de 14 de Dezembro, o chefe da recepção do hotel, de apelido Serpa, procurou-o para lhe comunicar que, “a fim de satisfazer uma ordem de requisição” do Governo, era necessário que cedesse um dos apartamentos que estavam por sua conta. O “rei do
petróleo”, como era conhecido, recusou. O apartamento em causa, argumentou, há muito que estava reservado para Charles Whishaw, um dos seus advogados britânicos, que convocara para vir a Lisboa para o assessorar numa série de negócios, estando a sua chegada iminente.
Acresce que o pedido fora feito de “forma pouco cortês”, na sequência, aliás, de “outros incómodos” provocados pelo mesmo recepcionista.
Vindo de Londres, Charles Whishaw chegou a Lisboa a 16 de Dezembro,
mas em vez do apartamento com casa de banho, reservado e pago por Gulbenkian há uma dezena de dias, foi-lhe destinado “um quarto de criado”, sem que o multimilionário tivesse sido avisado previamente. O apartamento destinado ao advogado britânico havia sido requisitado pelo Governo português, para lá instalar uma personalidade da comitiva
do ministro espanhol dos Assuntos Exteriores. Ainda que “muito contrariado”, Gulbenkian não teve outro remédio senão inclinar-se, como ele próprio escreveu. Na tarde do dia seguinte, voltou a ser incomodado “no meio de uma importante reunião de negócios”. O chefe da recepção exigiu-lhe que abandonasse mais um dos seus apartamentos.
Perante a “surpresa” manifestada pelo hóspede arménio, o funcionário insistiu, com argumentação reforçada por dois agentes da PVDE que entretanto se lhe haviam juntado. Mais uma vez sem margem de manobra, Gulbenkian consentiu que o genro, Kevork Essayan, deixasse o hotel, ficando o apartamento que lhe estava adstrito à disposição do Governo.
A avaliar pela carta ao director da PVDE, a que o Expresso teve acesso, a discussão deve ter sido acesa e brava, ainda que “a total ignorância da língua portuguesa” por parte de Gulbenkian não tenha permitido apreciá-la no “seu justo valor”.
O incidente, porém, não ficou por aqui. Com efeito, às 19h50, o recepcionista comunicou a Gulbenkian que a PVDE o convocara para comparecer de imediato na sua sede. Acompanhado do genro, foi conduzido num carro celular até ao quartel-general da PVDE, na Rua António Maria Cardoso. Depois de lhe ter sido confiscado o passaporte
diplomático e separado do genro, foi conduzido para uma pequena sala. “Como eu me esforçasse, melhor ou pior, em obter explicações, fizeram-me compreender que eu era um prisioneiro e, em resposta ao meu insistente pedido de comparecer diante de um funcionário que falasse francês, responderam-me num tom bastante rude para me sentar e
esperar.” A espera prolongou-se por uma hora, a que se seguiu um interrogatório sumário e a ordem para assinar uns papéis. “Recusei, uma vez que não tenho o hábito de assinar documentos cujo conteúdo me escapa.” Sentindo-se, no entanto, fortemente ameaçado, “assinei sem saber do que se tratava”. Mais: “todos os meus esforços” para poder
telefonar foram inúteis. Telefonar, explicitou, ao próprio director da PVDE, ao genro (que saíra em liberdade) e outros familiares, a embaixadas e representações diplomáticas com quem se relacionava. “Não me sentindo bem, quis igualmente prevenir o meu médico”, o catedrático Fernando Fonseca, “mas esta autorização foi-me igualmente recusada”.
Por volta das 22h, escoltado por vários agentes, Gulbenkian saiu da sede da PVDE e foi transportado num furgão celular para o que designou de “Prison Centrale” de Lisboa — provavelmente a Penitenciária ou então os calabouços do Governo Civil. Antes, porém, “insurgi-me contra o facto de não ter sido levado em nenhuma conta nem o meu passaporte diplomático, nem a minha idade, nem a minha posição social, e que, finalmente, não me tenha sido feita nenhuma acusação”.
Na prisão, começou por ser “submetido às formalidades rituais, geralmente reservadas a vulgares malfeitores” — o que parece ser uma alusão às habituais fotografias. Depois, aguardou até à 1h, para que fosse colocada à sua disposição “uma cela de ‘primeira classe’”.
Não havendo em Portugal uma legação diplomática do Irão, o genro, Kevork Essayan, uma vez libertado, entrou imediatamente em contacto com o representante do Egpito, Mahmoud Fakhry Pacha. Velho amigo de Gulbenkian, Fakhry Pacha, de 58 anos, era um diplomata com larga experiência, tendo sido inclusivamente ministro dos Negócios
Estrangeiros do Egipto. Informado do que se passava, decidiu alertar o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde se deslocou para expressar o seu protesto e forçar a libertação do colega e amigo. Com sucesso.
De acordo com a versão de Gulbenkian, por volta das 2h da manhã, o diplomata egípcio chegou à prisão onde estava detido com instruções que lhe permitiram libertá-lo.
No seu livro de memórias, o embaixador José Calvet de Magalhães — numa das raras referências a este episódio na historiografia portuguesa — conta que, através da gerência do Aviz, o seu colega João de Mendonça tentou “convencer Gulbenkian a autorizar que a sua secretária se instalasse provisoriamente, por três ou quatro dias, num quarto
simples que o hotel tinha disponível, cedendo o seu apartamento para uso do protocolo do Estado”. Perante o protesto e a recusa inicial de Gulbenkian, o chefe do protocolo queixou-se a Agostinho Lourenço, que
lhe disse “que deixasse o assunto por sua conta”. Foi assim que Gulbenkian foi levado à sede da PVDE e, depois, para uma das prisões de Lisboa.
Nessa noite, o próprio Calvet de Magalhães — um jovem adido de embaixada, de 27 anos, que entrara para o Palácio das Necessidades há pouco mais de um ano — estava de serviço na secção da cifra. Por volta das 22h, surgiu um contínuo a avisar que tinha chegado ao ministério um diplomata do Egipto “que tinha a maior urgência em falar a um funcionário”. Calvet tratou de o receber. “Encontrei o diplomata muito nervoso, que logo que me viu disse, com um ar trágico: "Prenderam o senhor Gulbenkian!"” Depois de explicar a Calvet quem era Gulbenkian, Fakhry Pacha enfatizou que, “como representante de um país vizinho e
irmão” e como seu “amigo pessoal”, vinha “solicitar ao Governo português as medidas necessárias para o libertar, pois não tinha infringido nenhuma lei portuguesa, além de se tratar de uma pessoa de grande reputação internacional”. Alarmado, de volta ao gabinete da cifra, Calvet procurou informar o secretário-geral do MNE, o embaixador Teixeira de Sampaio — o homem mais poderoso das Necessidades, com acesso directo ao presidente do Conselho, Oliveira
Salazar, que nessa época acumulava as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois de várias tentativas, Calvet lá conseguiu falar ao telefone com Teixeira de Sampaio, a quem relatou o sucedido. “Disse-me, sem comentários, que iria tentar contactar o capitão
Lourenço.” Gulbenkian seria libertado horas depois.
Além da carta ao director da PVDE, o arquivo da Fundação Gulbenkian guarda um documento muito similar, com o título “Memorando respeitante ao encarceramento na prisão central de Lisboa do senhor Gulbenkian, conselheiro económico da Legação Imperial do Irão em França”. Escrito
em francês, mas sem data nem assinatura, o memorando é atribuído pelo biógrafo de Gulbenkian ao seu genro, Kevork Essayan. O memorando sublinha o facto de ele não falar nem compreender o português e de, na sede da PVDE, ter sido coagido a assinar documentos, o que fez “sem saber do que se tratava”. Refere ainda que foi impedido, por duas vezes, de telefonar ao médico pessoal: primeiro, na sede da polícia
política; depois, na prisão. Na PVDE aduziram apenas que, “se estava sofredor, o médico da prisão viria vê-lo na manhã seguinte”.
As relações entre Gulbenkian e a PVDE até eram boas. Fixado em Lisboa há cerca de oito meses, o “rei do petróleo” já fizera duas doações a Agostinho Lourenço, ambas no valor de 10 mil escudos. A primeira, logo em Junho, destinada a obras de beneficência “da polícia e da cidade”; a segunda, em Novembro, para obras de caridade. Este incidente, no
entanto, toldou, pelo menos por uns tempos, o anterior relacionamento.
No final do ano, Gulbenkian pediu a Lourenço a renovação dos documentos de identidade da sua secretária, bem como de dois criados, solicitando que prolongasse a necessária autorização de estadia de três meses para seis, tal como já fizera anteriormente. A resposta da PVDE, dada pelo major Porfírio Hipólito da Fonseca, foi esclarecedora: nem seis nem sequer três, mas apenas um mês, decisão que, como
Gulbenkian fez notar numa nota dirigida ao diplomata do Egipto, “deve ser considerada como uma sanção”.
Curiosamente, entre a mulher de Gulbenkian, Nevarte, e Agostinho Lourenço viria a estabelecer-se uma relação de amizade. Conheceram-se seis meses depois da prisão de Gulbenkian, em Junho de 1943, “quando ela se sentou ao lado dele num dos muitos almoços diplomáticos
festivos” que se realizavam no Estoril. O relato é do historiador norte-americano Jonathan Conlin, baseado numa carta da própria Nevarte para o filho Nubar. Referindo-se a Agostinho Lourenço como “o grande e mais importante homem de Portugal”, a mulher de Gulbenkian conta que
“nos entendemos com a rapidez de uma casa em chamas”. Nevarte tinha então 68 anos e só formalmente continuava a ser mulher de Gulbenkian; Agostinho Lourenço, por sua vez, tinha 57 anos e enviuvara. Numa entrevista ao “Público, Conlin, que teve acesso ao arquivo da família, admite que Nevarte e Lourenço “talvez tenham flirtado um pouco. Ela era muito alegre e teve tempos felizes no final da vida”.
As relações de Gulbenkian com a polícia política viriam a melhorar consideravelmente. Com a ajuda do tempo e também, no dizer de Conlin, do “excelente serviço” prestado por aquela polícia a Gulbenkian, especialmente por manter os jornalistas, portugueses e sobretudo estrangeiros, afastados do Hotel Aviz. Como forma de agradecimento, em 1951, Gulbenkian incluiu os serviços sociais da polícia política (que
em 1945 mudou de nome para PIDE) no extenso rol de instituições portuguesas que passou a apoiar de forma regular. Este apoio foi mantido pela Fundação Gulbenkian até ao 25 de Abril de 1974. Extinta a PIDE/DGS e instaurada a democracia, “aquele subsídio passou a ser
concedido anualmente à Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros”, contou ao Expresso o ex-presidente da Fundação, Emílio Rui Vilar. “Nunca percebi porquê. Quando cheguei à Fundação, nos anos noventa, tudo isso foi revisto. Só então acabámos com essa prestação, creio que em 1996; seriam cerca de 500 mil escudos.”
O relacionamento do Estado português com Gulbenkian mudou radicalmente nos anos seguintes. Sobretudo quando começou a constar que o milionário estaria a preparar um novo testamento. Calvet de Magalhães recorda uma audiência que teve, por volta de 1952, com o ministro dos
Estrangeiros, Paulo Cunha. O governante chegou atrasado e pediu-lhe desculpa, explicando que, “tendo sabido que Gulbenkian estava adoentado, terminado o almoço, passou pelo Hotel Aviz para o visitar.
Nessa altura já toda a gente sabia quem era o ilustre hóspede daquele hotel. Disse-me o ministro que o encontrara muito irritado, mostrando-lhe uma carta assinada pela rainha Isabel de Inglaterra na qual ela dizia que soubera que se encontrava adoentado, desejando-lhe as melhoras e terminando dizendo que esperava que ‘não nos esquecesse’”.
Salazar, porém, nunca o recebeu — ao contrário de muitos outros estadistas por esse mundo fora. No Diário de Salazar, cuja transcrição está a ser ultimada pela arquivista Madalena Garcia, a primeira referência nominal a Gulbenkian é a 30 de Agosto de 1951 — mais de nove anos após se ter instalado em Lisboa, cidade onde viveu os seus últimos 13 anos. Ao fim da tarde desse dia, Salazar recebeu José de Azeredo Perdigão, o seu advogado português, com quem tratou de vários
assuntos, como “o testamento do Gulbenkian (do petróleo do Iraque)”, as suas “colecções de arte”, a “fundação para cuidar delas” e a possibilidade da respectiva sede ser em Portugal. Em Outubro seguinte, de novo com Azeredo Perdigão, falaram sobre um “certificado de residência permanente” para o arménio, sobre o testamento e de uma “fundação com fins artísticos e de assistência”. Até à morte de Gulbenkian, encontram-se no Diário de Salazar apenas mais quatro
referências nominais, a propósito dos quadros do coleccionador transferidos de Paris ou oferecidos a Portugal, assim como de um donativo (de 700 mil escudos) que fizera. No Diário, aliás, parece transparecer algum desdém ou menosprezo de Salazar relativamente a Gulbenkian. Com efeito, apesar de ser sempre cerimonioso e formal no trato pessoal, o ditador refere-se-lhe sempre como “o” Gulbenkian.
Em 1953, Gulbenkian fez num cartório de Lisboa o seu quarto e último testamento, para o que contou com o decisivo aconselhamento de Azeredo Perdigão. Morreu em Lisboa, no Hotel Aviz, a 20 de Julho de 1955, com 86 anos. O testamento instituiu uma fundação com o seu nome, perpétua e destinada a prosseguir objectivos “de caridade, artísticos,
educativos e científicos”. Com sede em Lisboa, a Fundação foi
encarregada de gerir a sua fabulosa fortuna. Segundo Jonathan Conlin, Gulbenkian era, à época, “o homem mais rico do mundo”, que é precisamente o título da edição portuguesa da biografia (da editora Objectiva; a versão original, em inglês, da Profile Books, chama-se “Mr. Five Per Cent”). Na sua biografia de Salazar, Franco Nogueira conta que, ao tomar conhecimento da fortuna e da colecção de arte com que a Fundação fora dotada, o presidente do Conselho comentou para Azeredo Perdigão: “É a coisa mais importante que sucedeu em Portugal nos últimos 50 anos.”
“Uma experiência profundamente humilhante para Calouste”, é como o biógrafo classifica a sua prisão pela PVDE. É certo que não fora a sua primeira experiência do género. Em 1916 também fora detido pelas
autoridades britânicas, quando atravessava o Canal da Mancha. Mas ser preso aos 73 anos, com o estatuto de diplomata, sendo o homem mais rico do mundo, e naquelas circunstâncias, não pode deixar de ter sido sentido como um sério insulto e uma profunda afronta. Não a podendo apagar nem esquecer, Gulbenkian decidiu pelo menos mantê-la em
segredo. Foi assim que, observa o biógrafo, “este incidente nunca foi referido por ninguém” da família e da sua entourage, “nem mesmo em correspondência privada”.
Apesar disso, oito anos depois, Gulbenkian não conseguiu evitar uma incontrolada fuga de informação na revista norte-americana “Life”, de 27 de Novembro de 1950. Num trabalho de Robert Coughlan sobre Gulbenkian (“Misterioso Multimilionário”), que se espraia ao longo de 27 páginas, é mencionado o episódio da prisão. Sem identificar
qualquer fonte, o repórter relata que Azeredo Perdigão “exigiu que lhe fossem mostradas as provas que haviam originado” a detenção do seu cliente. Resposta do chefe da PVDE: “Legais, nenhumas. Mas eu entendo que ele devia pagar qualquer espécie de reparação pela descortesia que
teve para com Portugal, onde encontrou hospitalidade. De resto, ele foi indelicado para com um dos meus subordinados, e eu quero ensinar-lhe que nem tudo se vende neste mundo.” O repórter da “Life” afiança que, uma vez libertado, durante a estada do ministro espanhol em Lisboa, Gulbenkian “teve de se contentar com os quartos substitutos”.
Os ecos desta reportagem em Portugal foram muito diminutos ou mesmo nulos. Um jornal chamado “Diário de Notícias” — não o de Lisboa, mas de New Bedford, nos EUA — fez um desenvolvido resumo da reportagem, a que deu o título de primeira página “Foi preso em Lisboa o homem mais rico do mundo”. Em Portugal, porém, a Censura tratou de impedir qualquer notícia. Não se sabe mesmo se aquele número da “Life” circulou em Portugal, dado que a Censura, a polícia, a Legião e os próprios Correios se encarregavam de limitar a livre comercialização de publicações estrangeiras com conteúdos críticos ou menos agradáveis para o regime. Quer na Biblioteca Nacional quer na Hemeroteca Municipal de Lisboa não se encontra nenhum exemplar daquele número da “Life”, em colecções que estão, de resto, demasiado desfalcadas para se poder tirar qualquer conclusão.
Aliás, tudo indica que o regime se envergonhou deste excesso de zelo e abuso de autoridade sobre um homem que viria a ser tão generoso para com o país que o acolheu. A verdade é que nos principais arquivos do Estado nada se encontrou sobre a prisão de Gulbenkian. Nem no Arquivo Oliveira Salazar, nem no Arquivo da PIDE/DGS, nem no Arquivo da Legião Portuguesa, nem no Arquivo Histórico-Diplomático (do MNE). Também na mDirecção-Geral dos Serviços Prisionais, o nome de Gulbenkian não consta dos livros de registo de entradas nas várias cadeias de Lisboa. Dá ideia de que tudo quanto houvesse foi apagado ou destruído.
Particularmente revelador do silêncio que a partir de certa altura caiu sobre este episódio é o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo. Apesar dos esforços dos seus serviços, não foi detectado qualquer dossier, boletim ou simples ficha em nome de Calouste Sarkis Gulbenkian, dos seus familiares directos (como a mulher, Nevarte, e os
dois filhos, Nubar e Rita), dos colaboradores mais estreitos (casos da secretária, Isabelle Theis, e do criado particular, Iwan Karmazine), do advogado britânico Lord Radcliffe, do diplomata egípcio Fakhry Pasha ou do repórter da “Life” Robert Coughlan. Com uma única excepção: a de Kevork Loris Essayan, o genro de Gulbenkian. Talvez por não
possuir o nome de Gulbenkian, a polícia abriu-lhe um dossier, que só agora foi detectado pelos serviços da Torre do Tombo a pedido do Expresso. Só que esse dossier data de 1953, 11 anos depois dos acontecimentos em causa, não surpreendendo que nunca sejam referidos — apesar de o próprio Kevork Essayan tudo ter testemunhado.
Este dossier indicia uma polícia menos competente, na medida em que começa por identificar o futuro administrador da Fundação como... uma mulher, de nome Kevorke (com e no fim), chegando a PVDE a referir-se-lhe várias vezes como “Miss Essayan”. Completamente à
margem deste assunto é um documento de três folhas, em papel bíblia de cor amarela, dactilografado, sem assinatura, nem timbre, nem data. Da autoria de um informador, com o título “Informação ‘M3’ de 18 de Abril de 1953”, especula sobre eventuais ligações de “Miss Essayan” aos serviços secretos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial. A fonte são os serviços de contra-espionagem do major Cramer, o subchefe dos Serviços de Informação da Legação Alemã em Lisboa, que, em Maio de 1945, “assinalaram, como fortemente suspeita”, Kevorke Loris Essayan, ou seja, a “Miss Essayan”, identificada como “uma filha de Caluste [sic] Gulbenkian”. “O major Cramer estava convencido de que ela era uma agente russa.” Por outro lado, Iwan Karmazine, um dos criados de Gulbenkian, “confidenciou que Miss Essayan está de facto em contacto com personalidades russas em Londres e Paris, individualidades das relações de seu pai, que pela sua avançada idade dificilmente pode sair de Lisboa. Miss Essayan já esteve em Portugal várias vezes, de
visita”. Iwan W. Karmazine é descrito como “criado particular e homem de confiança do milionário arménio”, afastado do lugar em Janeiro de 1953. Entrou em Portugal “com passaporte búlgaro que lhe foi conseguido pelos alemães, de quem foi agente qualificado, tendo trabalhado para os Suíços [sic] de Informação da Legação Alemã em Lisboa (espionagem militar). Estava em contacto pessoal com o subchefedaqueles serviços em Lisboa, major Cramer, que em fins de 1944 se convenceu que o Karmazine era um agente duplo, isto é, que trabalhava, secretamente, para os sovietes, como bom russo que é. Mais tarde, em
Março de 1945, quando da derrota dos alemães, o Karmazine aconselhou vivamente o seu chefe, major Cramer, a aproximar-se imediatamente dos russos, garantindo-lhe que seria bem acolhido e generosamente tratado.
Além disso, ofereceu-se como intermediário, afirmando dispor de boas ligações”. Kramer, contudo, “repudiou tais propostas”. A polícia política portuguesa não terá levado a sério estas e outras informações sobre o genro de Gulbenkian, Kevork Essayan, sobre o qual a PIDE escreveu, em 1967: “nada consta em desabono”.
Completamente diferente é o caso do advogado José de Azeredo Perdigão, que tem uma porção de dossiers no Arquivo da PIDE/DGS. Não admira, uma vez que sempre esteve conotado com a oposição — “politicamente, é
republicano democrata”, foi como a PIDE o classificou num boletim de 1958. Mas também na vasta documentação policial sobre Perdigão e a própria Fundação Gulbenkian não há qualquer pista sobre a prisão.
Aliás, em termos cronológicos, o primeiro processo sobre Azeredo Perdigão existente no Arquivo da PIDE/DGS foi aberto em 1944, isto é, já depois da prisão do seu principal cliente. Neste dossier há mesmo elementos que indiciam que anteriores processos relativos ao futuro presidente da Fundação tenham sido eliminados. Com efeito, em 1942,
quando Gulbenkian foi preso, Perdigão já tinha 46 anos e um vasto currículo de advogado e cidadão ligado aos círculos da oposição. Fora designadamente um dos fundadores da revista “Seara Nova”, juntamente com Raul Proença, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, bem como um activo colaborador da Universidade Popular Portuguesa.
Felizmente que a Fundação Gulbenkian preservou vária documentação coligida pelo seu fundador sobre este “muito lamentável” episódio — revelador do total arbítrio da polícia política e da ditadura.
Ignorado pela historiografia sobre o Estado Novo e sobre a própria Fundação, foi agora revelado, em toda a sua extensão, no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Calouste Sarkis Gulbenkian.
Instalado há oito meses em Portugal, Calouste Gulbenkian foi detido pela polícia política de Salazar em Dezembro de 1942. Um episódio que o próprio manteve em segredo e que a ditadura apagou de todos os seus arquivos.
Por José Pedro Castanheira
Calouste Gulbenkian foi um dos muitos milhares de refugiados que se acolheram em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial. Chegado em Abril de 1942, com o estatuto de diplomata do Irão, era já então um dos homens mais ricos do mundo. Hospedado no Hotel Aviz, o melhor de Lisboa, onde tinha à sua conta cinco quartos, foi preso ao fim da
tarde de 17 de Dezembro de 1942 pela PVDE, a temida polícia política de Salazar, e levado para uma das cadeias de Lisboa. Um episódio de que, estranhamente, não há registo nos vários arquivos da ditadura e que agora foi revelado a partir da documentação da Fundação Calouste Gulbenkian.
Com a ocupação do norte de França pela Alemanha de Hitler e a formação de um regime colaboracionista presidido pelo marechal Pétain, o Governo gaulês mudou-se para Vichy, uma cidade ao sul de Paris, na chamada Zona Livre. Para Vichy transferiu-se toda a comunidade diplomática que reconheceu o regime de Pétain, entre os quais se contavam países como Portugal e o Irão. De ascendência arménia,
nascido em Istambul, cidadão britânico e residente em França, Calouste Sarkis Gulbenkian possuía o estatuto de conselheiro económico da embaixada do Irão em Paris. Chegado a Vichy a 15 de Julho de 1942, hospedou-se, juntamente com a mulher, Nevarte Essayan, no Hotel du
Parc et Majestic. No mesmo hotel instalara-se o secretário da
embaixada de Portugal Manuel Nunes da Silva, que, segundo o seu colega José Calvet de Magalhães (no livro de memórias “Diplomacia Doce e Amarga”, Editorial Bizâncio, 2002), “criou uma certa intimidade com o famoso milionário”. Entretanto, a guerra estendera-se ao Irão, invadido por uma força anglo-soviética. Formado um novo regime favorável aos Aliados, liderado pelo xá Mohammad Reza, o Irão rompeu
as relações diplomáticas com a França de Pétain. Nada mais tendo a fazer em Vichy, Gulbenkian decidiu abandonar a França em guerra e, após várias hesitações, refugiou-se em Portugal. Segundo o biógrafo Jonathan Conlin, o seu desejo era, a partir de Lisboa, demandar Nova Iorque, para o que obtivera autorização das autoridades britânicas.
Gulbenkian partiu de Vichy a 30 de Março. A viagem até Lisboa demorou duas semanas. Provavelmente porque ainda teve de acomodar em França a mulher, Nevarte, para curar uma pneumonia que entretanto contraíra.
Segundo Calvet de Magalhães, Gulbenkian fez a viagem no seu automóvel, na companhia do colega português Nunes da Silva, que “conseguiu convencê-lo a vir, simplesmente de passeio, até Lisboa, para conhecer o nosso país”.
Em Lisboa, instalou-se no Hotel Aviz, implantado no terreno agora ocupado pelo conjunto formado pelo Edifício Aviz e o Hotel Sheraton, na Avenida Fontes Pereira de Melo. Considerado o hotel mais luxuoso da capital, era um antigo palacete desenhado pelo arquicteto Ventura Terra e que pertencera a Silva Graça, proprietário do matutino “O Século”, um dos maiores jornais do país, e avô da pintora Maria Helena Vieira da Silva. Após a morte de Silva Graça, exilado em Paris, o palacete foi transformado no Aviz Hotel, inaugurado em 1933. Por lá passaram nomes da aristocracia, da finança, da política e do jet set mundial. O blogue “Restos de Colecção” menciona, a título de exemplo, os actores
Marcello Mastroianni e Ava Gardner, os cantores Frank Sinatra e Maria Callas, a política argentina Eva Perón e os ex-monarcas da Roménia, Espanha e Itália.
Mal chegou, Gulbenkian reservou à sua conta cinco dos 33 quartos do hotel, onde ficou a viver em permanência, acompanhado de dois criados e da secretária e companheira, a francesa Isabelle Theis. A mulher, Nevarte, chegou de França no final de Maio, mas cedo se mudou para o Hotel Palácio, no Estoril, fazendo uma vida inteiramente independente do marido. Como descreve o biógrafo, em 1942, com a Europa mergulhada nos horrores, na escassez e na escalada bélica da Segunda Guerra Mundial, Portugal era uma “terra de sol, paz e abundância (pelo menos
para os ricos)” e “parecia um verdadeiro paraíso”. Completamente desconhecido dos lisboetas, ninguém incomodava Gulbenkian, que passava como um qualquer cidadão estrangeiro anónimo.
Para o mês de Dezembro de 1942 foi agendada uma visita oficial a Lisboa do novo ministro espanhol dos Assuntos Exteriores, o general Francisco Gómez-Jordana, mais conhecido por conde de Jordana.
Empossado há três meses, substituíra no cargo o germanófilo Serrano Suñer. Apostado numa aproximação às potências aliadas e num estreitamento de relações com Portugal, o ministro espanhol far-se-ia acompanhar de uma vasta comitiva, estando prevista a sua chegada para 18 de Dezembro. O conde de Jordana ficaria instalado no Palácio
Burnay, na Rua da Junqueira, demasiado pequeno para acolher toda a comitiva, o que provocou sérias dores de cabeça ao serviço de protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros português. Lisboa, com efeito, estava muito mal fornecida de hotéis de qualidade. E os que havia eram pequenos e estavam ocupados pela verdadeira maré de
refugiados que tinham fugido dos pavores da guerra que submergira quase toda a Europa.
Como era habitual em visitas do género, o chefe interino do protocolo, o embaixador João de Mendonça, tentou acomodar no Aviz parte da comitiva do ministro espanhol. Só que o hotel estava cheio — parte dele à conta de Gulbenkian.
O relato que se segue é do próprio Gulbenkian, que, a 21 de Dezembro de 1942, escreveu, a partir do Hotel Aviz, uma carta ao capitão Agostinho Lourenço, o director da polícia política, que então se chamava Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Redigida em francês, é uma carta de carácter “personnelle” (pessoal), como fez questão de sublinhar, e a letra grande, no canto superior esquerdo.
São três páginas com uma informação “tão concisa quanto possível”, mas ainda assim detalhadíssima, de um incidente ocorrido dias antes, que classificou de “muito lamentável”.
Conta Gulbenkian que, na tarde de 14 de Dezembro, o chefe da recepção do hotel, de apelido Serpa, procurou-o para lhe comunicar que, “a fim de satisfazer uma ordem de requisição” do Governo, era necessário que cedesse um dos apartamentos que estavam por sua conta. O “rei do
petróleo”, como era conhecido, recusou. O apartamento em causa, argumentou, há muito que estava reservado para Charles Whishaw, um dos seus advogados britânicos, que convocara para vir a Lisboa para o assessorar numa série de negócios, estando a sua chegada iminente.
Acresce que o pedido fora feito de “forma pouco cortês”, na sequência, aliás, de “outros incómodos” provocados pelo mesmo recepcionista.
Vindo de Londres, Charles Whishaw chegou a Lisboa a 16 de Dezembro,
mas em vez do apartamento com casa de banho, reservado e pago por Gulbenkian há uma dezena de dias, foi-lhe destinado “um quarto de criado”, sem que o multimilionário tivesse sido avisado previamente. O apartamento destinado ao advogado britânico havia sido requisitado pelo Governo português, para lá instalar uma personalidade da comitiva
do ministro espanhol dos Assuntos Exteriores. Ainda que “muito contrariado”, Gulbenkian não teve outro remédio senão inclinar-se, como ele próprio escreveu. Na tarde do dia seguinte, voltou a ser incomodado “no meio de uma importante reunião de negócios”. O chefe da recepção exigiu-lhe que abandonasse mais um dos seus apartamentos.
Perante a “surpresa” manifestada pelo hóspede arménio, o funcionário insistiu, com argumentação reforçada por dois agentes da PVDE que entretanto se lhe haviam juntado. Mais uma vez sem margem de manobra, Gulbenkian consentiu que o genro, Kevork Essayan, deixasse o hotel, ficando o apartamento que lhe estava adstrito à disposição do Governo.
A avaliar pela carta ao director da PVDE, a que o Expresso teve acesso, a discussão deve ter sido acesa e brava, ainda que “a total ignorância da língua portuguesa” por parte de Gulbenkian não tenha permitido apreciá-la no “seu justo valor”.
O incidente, porém, não ficou por aqui. Com efeito, às 19h50, o recepcionista comunicou a Gulbenkian que a PVDE o convocara para comparecer de imediato na sua sede. Acompanhado do genro, foi conduzido num carro celular até ao quartel-general da PVDE, na Rua António Maria Cardoso. Depois de lhe ter sido confiscado o passaporte
diplomático e separado do genro, foi conduzido para uma pequena sala. “Como eu me esforçasse, melhor ou pior, em obter explicações, fizeram-me compreender que eu era um prisioneiro e, em resposta ao meu insistente pedido de comparecer diante de um funcionário que falasse francês, responderam-me num tom bastante rude para me sentar e
esperar.” A espera prolongou-se por uma hora, a que se seguiu um interrogatório sumário e a ordem para assinar uns papéis. “Recusei, uma vez que não tenho o hábito de assinar documentos cujo conteúdo me escapa.” Sentindo-se, no entanto, fortemente ameaçado, “assinei sem saber do que se tratava”. Mais: “todos os meus esforços” para poder
telefonar foram inúteis. Telefonar, explicitou, ao próprio director da PVDE, ao genro (que saíra em liberdade) e outros familiares, a embaixadas e representações diplomáticas com quem se relacionava. “Não me sentindo bem, quis igualmente prevenir o meu médico”, o catedrático Fernando Fonseca, “mas esta autorização foi-me igualmente recusada”.
Por volta das 22h, escoltado por vários agentes, Gulbenkian saiu da sede da PVDE e foi transportado num furgão celular para o que designou de “Prison Centrale” de Lisboa — provavelmente a Penitenciária ou então os calabouços do Governo Civil. Antes, porém, “insurgi-me contra o facto de não ter sido levado em nenhuma conta nem o meu passaporte diplomático, nem a minha idade, nem a minha posição social, e que, finalmente, não me tenha sido feita nenhuma acusação”.
Na prisão, começou por ser “submetido às formalidades rituais, geralmente reservadas a vulgares malfeitores” — o que parece ser uma alusão às habituais fotografias. Depois, aguardou até à 1h, para que fosse colocada à sua disposição “uma cela de ‘primeira classe’”.
Não havendo em Portugal uma legação diplomática do Irão, o genro, Kevork Essayan, uma vez libertado, entrou imediatamente em contacto com o representante do Egpito, Mahmoud Fakhry Pacha. Velho amigo de Gulbenkian, Fakhry Pacha, de 58 anos, era um diplomata com larga experiência, tendo sido inclusivamente ministro dos Negócios
Estrangeiros do Egipto. Informado do que se passava, decidiu alertar o Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde se deslocou para expressar o seu protesto e forçar a libertação do colega e amigo. Com sucesso.
De acordo com a versão de Gulbenkian, por volta das 2h da manhã, o diplomata egípcio chegou à prisão onde estava detido com instruções que lhe permitiram libertá-lo.
No seu livro de memórias, o embaixador José Calvet de Magalhães — numa das raras referências a este episódio na historiografia portuguesa — conta que, através da gerência do Aviz, o seu colega João de Mendonça tentou “convencer Gulbenkian a autorizar que a sua secretária se instalasse provisoriamente, por três ou quatro dias, num quarto
simples que o hotel tinha disponível, cedendo o seu apartamento para uso do protocolo do Estado”. Perante o protesto e a recusa inicial de Gulbenkian, o chefe do protocolo queixou-se a Agostinho Lourenço, que
lhe disse “que deixasse o assunto por sua conta”. Foi assim que Gulbenkian foi levado à sede da PVDE e, depois, para uma das prisões de Lisboa.
Nessa noite, o próprio Calvet de Magalhães — um jovem adido de embaixada, de 27 anos, que entrara para o Palácio das Necessidades há pouco mais de um ano — estava de serviço na secção da cifra. Por volta das 22h, surgiu um contínuo a avisar que tinha chegado ao ministério um diplomata do Egipto “que tinha a maior urgência em falar a um funcionário”. Calvet tratou de o receber. “Encontrei o diplomata muito nervoso, que logo que me viu disse, com um ar trágico: "Prenderam o senhor Gulbenkian!"” Depois de explicar a Calvet quem era Gulbenkian, Fakhry Pacha enfatizou que, “como representante de um país vizinho e
irmão” e como seu “amigo pessoal”, vinha “solicitar ao Governo português as medidas necessárias para o libertar, pois não tinha infringido nenhuma lei portuguesa, além de se tratar de uma pessoa de grande reputação internacional”. Alarmado, de volta ao gabinete da cifra, Calvet procurou informar o secretário-geral do MNE, o embaixador Teixeira de Sampaio — o homem mais poderoso das Necessidades, com acesso directo ao presidente do Conselho, Oliveira
Salazar, que nessa época acumulava as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois de várias tentativas, Calvet lá conseguiu falar ao telefone com Teixeira de Sampaio, a quem relatou o sucedido. “Disse-me, sem comentários, que iria tentar contactar o capitão
Lourenço.” Gulbenkian seria libertado horas depois.
Além da carta ao director da PVDE, o arquivo da Fundação Gulbenkian guarda um documento muito similar, com o título “Memorando respeitante ao encarceramento na prisão central de Lisboa do senhor Gulbenkian, conselheiro económico da Legação Imperial do Irão em França”. Escrito
em francês, mas sem data nem assinatura, o memorando é atribuído pelo biógrafo de Gulbenkian ao seu genro, Kevork Essayan. O memorando sublinha o facto de ele não falar nem compreender o português e de, na sede da PVDE, ter sido coagido a assinar documentos, o que fez “sem saber do que se tratava”. Refere ainda que foi impedido, por duas vezes, de telefonar ao médico pessoal: primeiro, na sede da polícia
política; depois, na prisão. Na PVDE aduziram apenas que, “se estava sofredor, o médico da prisão viria vê-lo na manhã seguinte”.
As relações entre Gulbenkian e a PVDE até eram boas. Fixado em Lisboa há cerca de oito meses, o “rei do petróleo” já fizera duas doações a Agostinho Lourenço, ambas no valor de 10 mil escudos. A primeira, logo em Junho, destinada a obras de beneficência “da polícia e da cidade”; a segunda, em Novembro, para obras de caridade. Este incidente, no
entanto, toldou, pelo menos por uns tempos, o anterior relacionamento.
No final do ano, Gulbenkian pediu a Lourenço a renovação dos documentos de identidade da sua secretária, bem como de dois criados, solicitando que prolongasse a necessária autorização de estadia de três meses para seis, tal como já fizera anteriormente. A resposta da PVDE, dada pelo major Porfírio Hipólito da Fonseca, foi esclarecedora: nem seis nem sequer três, mas apenas um mês, decisão que, como
Gulbenkian fez notar numa nota dirigida ao diplomata do Egipto, “deve ser considerada como uma sanção”.
Curiosamente, entre a mulher de Gulbenkian, Nevarte, e Agostinho Lourenço viria a estabelecer-se uma relação de amizade. Conheceram-se seis meses depois da prisão de Gulbenkian, em Junho de 1943, “quando ela se sentou ao lado dele num dos muitos almoços diplomáticos
festivos” que se realizavam no Estoril. O relato é do historiador norte-americano Jonathan Conlin, baseado numa carta da própria Nevarte para o filho Nubar. Referindo-se a Agostinho Lourenço como “o grande e mais importante homem de Portugal”, a mulher de Gulbenkian conta que
“nos entendemos com a rapidez de uma casa em chamas”. Nevarte tinha então 68 anos e só formalmente continuava a ser mulher de Gulbenkian; Agostinho Lourenço, por sua vez, tinha 57 anos e enviuvara. Numa entrevista ao “Público, Conlin, que teve acesso ao arquivo da família, admite que Nevarte e Lourenço “talvez tenham flirtado um pouco. Ela era muito alegre e teve tempos felizes no final da vida”.
As relações de Gulbenkian com a polícia política viriam a melhorar consideravelmente. Com a ajuda do tempo e também, no dizer de Conlin, do “excelente serviço” prestado por aquela polícia a Gulbenkian, especialmente por manter os jornalistas, portugueses e sobretudo estrangeiros, afastados do Hotel Aviz. Como forma de agradecimento, em 1951, Gulbenkian incluiu os serviços sociais da polícia política (que
em 1945 mudou de nome para PIDE) no extenso rol de instituições portuguesas que passou a apoiar de forma regular. Este apoio foi mantido pela Fundação Gulbenkian até ao 25 de Abril de 1974. Extinta a PIDE/DGS e instaurada a democracia, “aquele subsídio passou a ser
concedido anualmente à Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros”, contou ao Expresso o ex-presidente da Fundação, Emílio Rui Vilar. “Nunca percebi porquê. Quando cheguei à Fundação, nos anos noventa, tudo isso foi revisto. Só então acabámos com essa prestação, creio que em 1996; seriam cerca de 500 mil escudos.”
O relacionamento do Estado português com Gulbenkian mudou radicalmente nos anos seguintes. Sobretudo quando começou a constar que o milionário estaria a preparar um novo testamento. Calvet de Magalhães recorda uma audiência que teve, por volta de 1952, com o ministro dos
Estrangeiros, Paulo Cunha. O governante chegou atrasado e pediu-lhe desculpa, explicando que, “tendo sabido que Gulbenkian estava adoentado, terminado o almoço, passou pelo Hotel Aviz para o visitar.
Nessa altura já toda a gente sabia quem era o ilustre hóspede daquele hotel. Disse-me o ministro que o encontrara muito irritado, mostrando-lhe uma carta assinada pela rainha Isabel de Inglaterra na qual ela dizia que soubera que se encontrava adoentado, desejando-lhe as melhoras e terminando dizendo que esperava que ‘não nos esquecesse’”.
Salazar, porém, nunca o recebeu — ao contrário de muitos outros estadistas por esse mundo fora. No Diário de Salazar, cuja transcrição está a ser ultimada pela arquivista Madalena Garcia, a primeira referência nominal a Gulbenkian é a 30 de Agosto de 1951 — mais de nove anos após se ter instalado em Lisboa, cidade onde viveu os seus últimos 13 anos. Ao fim da tarde desse dia, Salazar recebeu José de Azeredo Perdigão, o seu advogado português, com quem tratou de vários
assuntos, como “o testamento do Gulbenkian (do petróleo do Iraque)”, as suas “colecções de arte”, a “fundação para cuidar delas” e a possibilidade da respectiva sede ser em Portugal. Em Outubro seguinte, de novo com Azeredo Perdigão, falaram sobre um “certificado de residência permanente” para o arménio, sobre o testamento e de uma “fundação com fins artísticos e de assistência”. Até à morte de Gulbenkian, encontram-se no Diário de Salazar apenas mais quatro
referências nominais, a propósito dos quadros do coleccionador transferidos de Paris ou oferecidos a Portugal, assim como de um donativo (de 700 mil escudos) que fizera. No Diário, aliás, parece transparecer algum desdém ou menosprezo de Salazar relativamente a Gulbenkian. Com efeito, apesar de ser sempre cerimonioso e formal no trato pessoal, o ditador refere-se-lhe sempre como “o” Gulbenkian.
Em 1953, Gulbenkian fez num cartório de Lisboa o seu quarto e último testamento, para o que contou com o decisivo aconselhamento de Azeredo Perdigão. Morreu em Lisboa, no Hotel Aviz, a 20 de Julho de 1955, com 86 anos. O testamento instituiu uma fundação com o seu nome, perpétua e destinada a prosseguir objectivos “de caridade, artísticos,
educativos e científicos”. Com sede em Lisboa, a Fundação foi
encarregada de gerir a sua fabulosa fortuna. Segundo Jonathan Conlin, Gulbenkian era, à época, “o homem mais rico do mundo”, que é precisamente o título da edição portuguesa da biografia (da editora Objectiva; a versão original, em inglês, da Profile Books, chama-se “Mr. Five Per Cent”). Na sua biografia de Salazar, Franco Nogueira conta que, ao tomar conhecimento da fortuna e da colecção de arte com que a Fundação fora dotada, o presidente do Conselho comentou para Azeredo Perdigão: “É a coisa mais importante que sucedeu em Portugal nos últimos 50 anos.”
“Uma experiência profundamente humilhante para Calouste”, é como o biógrafo classifica a sua prisão pela PVDE. É certo que não fora a sua primeira experiência do género. Em 1916 também fora detido pelas
autoridades britânicas, quando atravessava o Canal da Mancha. Mas ser preso aos 73 anos, com o estatuto de diplomata, sendo o homem mais rico do mundo, e naquelas circunstâncias, não pode deixar de ter sido sentido como um sério insulto e uma profunda afronta. Não a podendo apagar nem esquecer, Gulbenkian decidiu pelo menos mantê-la em
segredo. Foi assim que, observa o biógrafo, “este incidente nunca foi referido por ninguém” da família e da sua entourage, “nem mesmo em correspondência privada”.
Apesar disso, oito anos depois, Gulbenkian não conseguiu evitar uma incontrolada fuga de informação na revista norte-americana “Life”, de 27 de Novembro de 1950. Num trabalho de Robert Coughlan sobre Gulbenkian (“Misterioso Multimilionário”), que se espraia ao longo de 27 páginas, é mencionado o episódio da prisão. Sem identificar
qualquer fonte, o repórter relata que Azeredo Perdigão “exigiu que lhe fossem mostradas as provas que haviam originado” a detenção do seu cliente. Resposta do chefe da PVDE: “Legais, nenhumas. Mas eu entendo que ele devia pagar qualquer espécie de reparação pela descortesia que
teve para com Portugal, onde encontrou hospitalidade. De resto, ele foi indelicado para com um dos meus subordinados, e eu quero ensinar-lhe que nem tudo se vende neste mundo.” O repórter da “Life” afiança que, uma vez libertado, durante a estada do ministro espanhol em Lisboa, Gulbenkian “teve de se contentar com os quartos substitutos”.
Os ecos desta reportagem em Portugal foram muito diminutos ou mesmo nulos. Um jornal chamado “Diário de Notícias” — não o de Lisboa, mas de New Bedford, nos EUA — fez um desenvolvido resumo da reportagem, a que deu o título de primeira página “Foi preso em Lisboa o homem mais rico do mundo”. Em Portugal, porém, a Censura tratou de impedir qualquer notícia. Não se sabe mesmo se aquele número da “Life” circulou em Portugal, dado que a Censura, a polícia, a Legião e os próprios Correios se encarregavam de limitar a livre comercialização de publicações estrangeiras com conteúdos críticos ou menos agradáveis para o regime. Quer na Biblioteca Nacional quer na Hemeroteca Municipal de Lisboa não se encontra nenhum exemplar daquele número da “Life”, em colecções que estão, de resto, demasiado desfalcadas para se poder tirar qualquer conclusão.
Aliás, tudo indica que o regime se envergonhou deste excesso de zelo e abuso de autoridade sobre um homem que viria a ser tão generoso para com o país que o acolheu. A verdade é que nos principais arquivos do Estado nada se encontrou sobre a prisão de Gulbenkian. Nem no Arquivo Oliveira Salazar, nem no Arquivo da PIDE/DGS, nem no Arquivo da Legião Portuguesa, nem no Arquivo Histórico-Diplomático (do MNE). Também na mDirecção-Geral dos Serviços Prisionais, o nome de Gulbenkian não consta dos livros de registo de entradas nas várias cadeias de Lisboa. Dá ideia de que tudo quanto houvesse foi apagado ou destruído.
Particularmente revelador do silêncio que a partir de certa altura caiu sobre este episódio é o Arquivo da PIDE/DGS, à guarda da Torre do Tombo. Apesar dos esforços dos seus serviços, não foi detectado qualquer dossier, boletim ou simples ficha em nome de Calouste Sarkis Gulbenkian, dos seus familiares directos (como a mulher, Nevarte, e os
dois filhos, Nubar e Rita), dos colaboradores mais estreitos (casos da secretária, Isabelle Theis, e do criado particular, Iwan Karmazine), do advogado britânico Lord Radcliffe, do diplomata egípcio Fakhry Pasha ou do repórter da “Life” Robert Coughlan. Com uma única excepção: a de Kevork Loris Essayan, o genro de Gulbenkian. Talvez por não
possuir o nome de Gulbenkian, a polícia abriu-lhe um dossier, que só agora foi detectado pelos serviços da Torre do Tombo a pedido do Expresso. Só que esse dossier data de 1953, 11 anos depois dos acontecimentos em causa, não surpreendendo que nunca sejam referidos — apesar de o próprio Kevork Essayan tudo ter testemunhado.
Este dossier indicia uma polícia menos competente, na medida em que começa por identificar o futuro administrador da Fundação como... uma mulher, de nome Kevorke (com e no fim), chegando a PVDE a referir-se-lhe várias vezes como “Miss Essayan”. Completamente à
margem deste assunto é um documento de três folhas, em papel bíblia de cor amarela, dactilografado, sem assinatura, nem timbre, nem data. Da autoria de um informador, com o título “Informação ‘M3’ de 18 de Abril de 1953”, especula sobre eventuais ligações de “Miss Essayan” aos serviços secretos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial. A fonte são os serviços de contra-espionagem do major Cramer, o subchefe dos Serviços de Informação da Legação Alemã em Lisboa, que, em Maio de 1945, “assinalaram, como fortemente suspeita”, Kevorke Loris Essayan, ou seja, a “Miss Essayan”, identificada como “uma filha de Caluste [sic] Gulbenkian”. “O major Cramer estava convencido de que ela era uma agente russa.” Por outro lado, Iwan Karmazine, um dos criados de Gulbenkian, “confidenciou que Miss Essayan está de facto em contacto com personalidades russas em Londres e Paris, individualidades das relações de seu pai, que pela sua avançada idade dificilmente pode sair de Lisboa. Miss Essayan já esteve em Portugal várias vezes, de
visita”. Iwan W. Karmazine é descrito como “criado particular e homem de confiança do milionário arménio”, afastado do lugar em Janeiro de 1953. Entrou em Portugal “com passaporte búlgaro que lhe foi conseguido pelos alemães, de quem foi agente qualificado, tendo trabalhado para os Suíços [sic] de Informação da Legação Alemã em Lisboa (espionagem militar). Estava em contacto pessoal com o subchefedaqueles serviços em Lisboa, major Cramer, que em fins de 1944 se convenceu que o Karmazine era um agente duplo, isto é, que trabalhava, secretamente, para os sovietes, como bom russo que é. Mais tarde, em
Março de 1945, quando da derrota dos alemães, o Karmazine aconselhou vivamente o seu chefe, major Cramer, a aproximar-se imediatamente dos russos, garantindo-lhe que seria bem acolhido e generosamente tratado.
Além disso, ofereceu-se como intermediário, afirmando dispor de boas ligações”. Kramer, contudo, “repudiou tais propostas”. A polícia política portuguesa não terá levado a sério estas e outras informações sobre o genro de Gulbenkian, Kevork Essayan, sobre o qual a PIDE escreveu, em 1967: “nada consta em desabono”.
Completamente diferente é o caso do advogado José de Azeredo Perdigão, que tem uma porção de dossiers no Arquivo da PIDE/DGS. Não admira, uma vez que sempre esteve conotado com a oposição — “politicamente, é
republicano democrata”, foi como a PIDE o classificou num boletim de 1958. Mas também na vasta documentação policial sobre Perdigão e a própria Fundação Gulbenkian não há qualquer pista sobre a prisão.
Aliás, em termos cronológicos, o primeiro processo sobre Azeredo Perdigão existente no Arquivo da PIDE/DGS foi aberto em 1944, isto é, já depois da prisão do seu principal cliente. Neste dossier há mesmo elementos que indiciam que anteriores processos relativos ao futuro presidente da Fundação tenham sido eliminados. Com efeito, em 1942,
quando Gulbenkian foi preso, Perdigão já tinha 46 anos e um vasto currículo de advogado e cidadão ligado aos círculos da oposição. Fora designadamente um dos fundadores da revista “Seara Nova”, juntamente com Raul Proença, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, bem como um activo colaborador da Universidade Popular Portuguesa.
Felizmente que a Fundação Gulbenkian preservou vária documentação coligida pelo seu fundador sobre este “muito lamentável” episódio — revelador do total arbítrio da polícia política e da ditadura.
Ignorado pela historiografia sobre o Estado Novo e sobre a própria Fundação, foi agora revelado, em toda a sua extensão, no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Calouste Sarkis Gulbenkian.
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