quarta-feira, 20 de julho de 2016

É mesmo a isto que chamamos democracia?

JOSÉ VÍTOR MALHEIROS  19/07/2016

O golpe foi “uma oferenda de Deus” diz Erdogan. Haverá agora mais poderes presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema judicial.


Um golpe de estado militar na Turquia. Um golpe falhado e esmagado, graças à oposição popular e a um iPhone com FaceTime. Mas, durante umas horas, a expectativa em todo o mundo, com prudentes declarações dos poderes políticos mundiais, que exprimem a sua “preocupação” e a absoluta necessidade de manter a “estabilidade” política na Turquia e que se abstêm de declarações de apoio a qualquer dos lados.



Durante umas horas, o medo de que este golpe se possa transformar no início da explosão daquele barril de pólvora que faz de rolha entre a Europa e a Ásia, que tem a cabeça na Europa mas que tem fronteiras com a Síria, o Iraque e o Irão, ali ao pé do território ocupado pelo Daesh, que tem uma guerra civil e uma guerra extra-fronteiras em curso e que tem um dos maiores exércitos do mundo, que quer entrar na União Europeia e está na NATO mas cujo estado teoricamente laico está em vias de islamização. 

A Turkish soldier who took part in the attempted coup is kicked and beaten. Photograph: Selcuk Samiloglu/AP


Durante umas horas, a expectativa e a dúvida perante este golpe levado a cabo por militares, um sector tradicionalmente autoritário e habituado durante séculos a exercer o seu poder, por vezes em ditadura absoluta, mas que há um século é uma força opositora do islamismo. Durante umas horas, a ténue esperança de que este golpe de estado (cujos autores anunciam que querem “restaurar a ordem constitucional, os direitos humanos, as liberdades e o primado da lei”) possa restabelecer a abalada democracia e o estado de direito laico, de forma semelhante ao que aconteceu no 25 de Abril em Portugal.


Mas estas dúvidas duram apenas umas horas, porque o regime depressa abafa a rebelião, captura os revoltosos e passa à ofensiva, prendendo 6.000 militares e 1500 civis, suspendendo ou detendo 2750 juízes e procuradores. O golpe foi “uma oferenda de Deus” diz o próprio presidente Recep Tayyip Erdogan, que aponta as alterações que quer pôr em prática na sua “nova Turquia”: mais poderes presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema judicial.


Após o desfecho, os poderes instalados congratulam-se pelo “regresso à normalidade constitucional e democrática” e recordam que a Turquia é uma democracia constitucional e que nem a UE nem os EUA nem ninguém pode, em nome da estabilidade, do direito e da democracia, aceitar uma mudança de regime pela força. O argumento tem força.


Mas será isto uma democracia? Este país que expulsa os jornalistas estrangeiros independentes e lança na cadeia os turcos que se atrevem a escrever sobre a corrupção do governo? Que pede anos de cadeia por “insulto ao presidente” para os que criticam a sua política? Que reprime pela força protestos e prende peticionários? Que quer restaurar a pena de morte para condenar os autores deste golpe? Este país que é o número 151 (entre 180) doranking da liberdade de imprensa?



Será que a existência de partidos e de eleições (por limitada que seja a liberdade de acção de certos partidos e grupos sociais e por duvidoso que seja o funcionamento das eleições) chegam para classificar um país como uma democracia e para tornar todas as suas acções aceitáveis?


As perguntas não têm sentido apenas para os países muçulmanos ou para os povos de tez morena.

Vivemos numa democracia quando toda a nossa vida pública é condicionada por tratados europeus que não aprovámos em eleições e cujo teor e consequências não discutimos? Vivemos sob o primado da lei quando pertencemos a uma organização onde as regras (e as sanções) não são iguais para todos?

Vivemos numa democracia e num estado de direito quando podemos ser envolvidos numa guerra de consequência devastadoras através de mentiras e manipulações, como agora se prova (pela enésima vez) no relatório Chilcot? Podemos dizer que vivemos numa democracia quando um governo, eleito sem mandato para tal e sem que nada o justifique a não ser a ganância de determinados interesses particulares, nos envolve numa guerra? Podemos dizer que vivemos numa democracia quando, mesmo depois de apurados os factos, é impossível responsabilizar os políticos que usurparam direitos que não tinham, invocando factos que não existiam, causando milhões de vítimas entre mortos, feridos e refugiados?

A democracia é a capacidade de eleger parlamentos, governos e presidentes e a capacidade de os demitir e substituir, mas é algo ainda mais importante: a capacidade de escolher as políticas, de escolher não aqueles a quem vamos obedecer, mas a forma como vamos viver. Não apenas os governantes, mas a vida pública. É por isso que elegemos partidos na base de programas eleitorais. Uma democracia que elege ditadores não é uma democracia. As formalidades são essenciais à democracia mas precisamos de respeitar todas as formalidades: os direitos humanos, o primado da lei, as regras institucionais, os compromissos assumidos, a transparência.

Quando chamamos “democracia” a algo como o regime que vigora na Turquia, na Rússia, na Venezuela ou em Angola - ou na UE - estamos a aviltar o conceito de democracia e a justificar todos os ataques que os inimigos da democracia lhe queiram lançar.

Presidente da Turquia pode ter forjado golpe militar, afirmam especialistas

Erdogan teria "oportunidade para ele se livrar de focos de descontentamento" com seu governo


Presidente defendeu a pena de morte contra os golpistas, afirmando ser a “opinião do povo"Reuters

A tentativa de golpe na Turquia na noite de sexta-feira (15) pegou muitos analistas internacionais de surpresa e provocou o caos nas ruas do país. Após horas de instabilidade — nas quais seCtores do exército turco fecharam importantes vias da capital, Ancara, e de Istambul — o governo do presidente eleito Recep Tayyip Erdogan afirmou ter retomado o controle da nação.

Depois do incidente, o governo turco acusou o clérigo Fethullah Gulen — que atualmente está exilado nos Estados Unidos — de ter planejado o golpe. No entanto, Gulen afirma que o responsável pelo levante teria sido o próprio presidente Erdogan — uma hipótese que vem ganhando força nas redes sociais.



Turkey coup: National security takes a blow - BBC News

Turkey's armed forces have been dealt a significant psychological blow by the attempted coup, with their pre . . .

http://www.bbc.com/news/world-europe-36833733



”Evidentemente, houve uma tentativa de golpe”, analisa o coordenador do NEOM (Núcleo de Estudos do Oriente Médio) da UFF (Universidade Federal Fluminense), Paulo Hilu. No entanto, segundo o especialista, não é possível afirmar categoricamente se o levante foi forjado ou não.

Recep Tayyip Erdogan: quem é o presidente de pulso firme que divide a Turquia

— É uma troca de acusações. O Erdogan desde o início acusou o Gulen. A questão é que, obviamente, o fracasso do golpe beneficia o Erdogan, porque dá a oportunidade para ele se livrar de focos de descontentamento com seu governo, tanto dentro do exército quanto do judiciário.


Erdogan é acusado de impor uma “islamização forçada” ao país Reprodução/Facebook

Desde a tentativa fracassada de golpe, 30 governadores e 7.899 policiais foram detidos na Turquia, segundo o Ministério do Interior do país. Na segunda-feira (18), o presidente Tayyip Erdogan defendeu a pena de morte contra os golpistas, afirmando que “o povo tem a opinião de que esses terroristas deveriam ser mortos”. Ele também pediu a extradição do clérigo Fethullah Gulen dos Estados Unidos e anunciou que vai “limpar” o exército turco.

Todas essas medidas, somadas à denúncia de um membro da União Europeia de que os nomes de quase 3.000 juízes e oficiais militares presos após o golpe fracassado já constavam de uma lista preparada pelo governo antes do levante, reforçam a teoria de que as autoridades do país poderiam ter conhecimento prévio da trama.


Também na segunda-feira, os Estados Unidos alertaram o governo turco para não “ir longe demais” ao levar à justiça os responsáveis pela tentativa de golpe.

Tradição

Fundado em 1922 por Mustafa Kemal Ataturk, o estado moderno da Turquia tem como modelo o secularismo (é um estado laico) e o nacionalismo turco. Ao longo dos anos, os seguidores dessa corrente passaram a ser denominados kemalistas — cujos maiores defensores se concentraram no exército turco.


Turkish forces are facing a series of unprecedented threats

Nas últimas décadas, o exército foi responsável por quatro golpes de estado na Turquia — em 1960, 1971, 1980 e 1997 —, justificados pela suposta defesa dos valores kemalistas. Essa motivação teria sido a mesma que levou os setores militares a se levantarem contra Erdogan e tentar conquistar o poder à força na noite de sexta-feira.

No poder desde 2003 — inicialmente como primeiro-ministro e, a partir de 2014, como presidente —, Erdogan é membro do partido AKP, e vem, ao longo dos anos, sendo acusado por seus inimigos políticos de impor uma “islamização forçada” ao país, o que contraria a tradição secular do estado moderno da Turquia.

The purges will cripple the effectiveness of the armed forces for some time to come

Seu compromisso com a democracia também é colocado em dúvida, tendo seu governo perseguido e prendido jornalistas arbitrariamente e impondo a censura aos órgãos de comunicação do país e até mesmo às redes sociais. Ele também já comparou a democracia com “um ônibus que você pega até seu destino, e depois desce.

Cientista político e professor de Relações Internacionais da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Bruno Lima Rocha também desconfia da informação oficial divulgada pelo governo turco a respeito do golpe militar.

Primeiro-ministro da Turquia anuncia sua renúncia

Ele lembra que Erdogan já foi acusado de ter forjado atentados contra o próprio povo, e vem usando a retórica da segurança nacional para perseguir as minorias do país, como os curdos no sul. Além disso, seu governo foi acusado pela Rússia de favorecer o grupo extremista Estado Islâmico na Síria — país que faz fronteira com a Turquia.


— A conspiração dos militares para tomar o poder pode ter existido, mas com requintes de manipulação. Aposto que se houve autogolpe, poucos oficiais sabiam que se tratava de uma farsa. Eu entendo que existe tal possibilidade, assim como algo semelhante pode ter ocorrido com o atentado ao aeroporto de Istambul.

De acordo com Rocha, com a fracassada tentativa de golpe no país, o presidente Erdogan deverá endurecer ainda mais seu governo e, ao mesmo tempo, avançar “de forma paulatina” para a islamização da Turquia.

*Por Luis Jourdain

Professores, juízes, militares: quem são os mais de 50 mil alvos de expurgos pós-golpe na Turquia

Prisões e exonerações atingem pessoas supostamente ligadas a rival de Erdogan


Expurgo de militares e funcionários públicos envolve mais de 58 milBBC Brasil

Após a tentativa fracassada de golpe na Turquia, o número de pessoas presas ou exoneradas na Turquia chama atenção.

De juízes a professores, servidores a soldados, a lista é enorme.

Há temores sobre o que acontecerá em seguida.

Quem está sendo atingido e por quê?

Assim que ficou claro que o golpe havia fracassado, a repressão começou - primeiro nas forças de segurança, depois por toda a estrutura civil da Turquia. Nas palavras de um colunista turco, foi um "contra-golpe" - uma limpeza do sistema, em estilo de golpe, com prisões, exonerações e demissões de dezenas de milhares de pessoas.

O objetivo expresso do presidente é "limpar todas as instituições do Estado". E o alvo é o que ele chama de um "Estado paralelo", um movimento encabeçado pelo clérigo Fethullah Gulen, arquirrival de Erdogan exilado nos EUA acusado de tramar o golpe.




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Presidente da Turquia diz que foi salvo por "milagre" na noite do golpe

Ninguém sabe realmente o tamanho deste movimento, mas seguidores de Gulen são suspeitos de se infiltrarem em postos próximos ao presidente, como o auxiliar chefe das Forças Armadas Ali Yazici e conselheiro militar Erkan Kivrak.

Um "grupo gulenista" nas Forças Armadas estava por trás do golpe, dizem autoridades turcas. E eles chegaram tão perto, diz o presidente, que estavam a 10 ou 15 minutos de sequestrá-lo ou assassiná-lo.

Quem está sendo exonerado?
A exoneração é tão extensa que poucos acreditam que não estivesse planejada com antecedência. E é improvável que todos na lista sejam gulenistas.

Cerca de 9.000 pessoas estão detidas e muitas outras perderam o emprego. Embora seja difícil conseguir detalhes precisos, esta é a lista atual:

7.500 soldados foram detidos, incluindo 85 generais e almirantes

8.000 policiais foram retirados de seus postos e 1.000 presos

3.000 integrantes do Judiciário, incluindo 1.481 juízes, foram suspensos

15.200 autoridades do Ministério da Educação perderam seus empregos

21.000 professores tiveram sua licença para trabalhar revogada

1.577 reitores de universidades tiveram que renunciar ao cargo

1.500 funcionários do Ministério das Finanças foram demitidos

492 clérigos, religiosos e professores de religião foram demitidos

393 funcionários do ministério de políticas sociais foram dispensados

257 integrantes da equipe do primeiro ministro foram demitidos

100 agentes de inteligência foram suspensos

Esta lista pode estar incompleta, porque a situação está mudando constantemente. Mas está claro que o expurgo afetou mais de 58 mil pessoas.




Por que a educação?
O presidente Erdogan vê o crescimento da educação islâmica nas escolas e universidades turcas como uma missão pessoal.

Desde que seu partido com base islâmica chegou ao poder, em 2002, o número de crianças em escolas religiosas conhecidas como "Imam-Hatip" aumentou 90%. Ele disse repetidamente que quer criar uma "geração devota" e reformou a educação do Estado neste sentido.

Erdogan tenta reverter o fechamento de muitas escolas religiosas ocorrido após o último golpe na Turquia, em 1997, que ele comparou ao corte de uma artéria.

Ele também agiu para fechar escolas controladas por gulenistas fora da Turquia. Relatos da Romênia dizem que autoridades da Turquia ordenaram o fechamento de 11 delas, mas as escolas argumentam que estão sob jurisdição romena, e não turca.


Não está tão claro é por que reitores de universidades estão sendo atingidos. Há pouca probabilidade de que os oficiais que tiveram que deixar seus postos sejam gulenistas. Alguns fatos sugerem que uma renovação completa das 300 universidades turcas estaria sendo planejada.

Nesta quarta-feira (20), acadêmicos foram proibidos de viajar para o exterior. Os que estão no exterior receberam ordem para retornar.


E por que tantos funcionários públicos?
Isso pode remontar ao escândalo envolvendo concursos públicos em 2010. Houve suspeita de fraude quando mais de 3,2 pessoas foram aprovados com nota máxima, e de que elas terim sido organizadas por gulenistas.

O expurgo pós-golpe pode ser uma tentativa de se livrar dos supostos fraudadores.

Turkish soldiers

Outra possibilidade é que o governo esteja se livrando também de opositores da comunidade alevita turca, que tem cerca de 15 milhões de integrantes.

O partido governista da Turquia, o AKP, é predominantemente uma sigla muçulmano sunita apoiada por uma base islâmica. A seita alevita combina elementos xiitas com costumes folclóricos pré-islâmicos.

O que Erdogan fará em seguida?
Há suspeitas e temores disseminados sobre os planos do presidente. Ele deve fazer um grande anúncio nesta quarta-feira.

Alguns compararam o expurgo ao efeito do golpe militar de 12 de setembro de 1980. Mas, naquela ocasião, houve execuções e 600 mil detenções. Os fatos atuais são menos drásticos.

E por trás disto...


Há poucas chances de a lei marcial ser declarada, já que a imagem do Exército foi profundamente afetada pelo golpe fracassado.

Mas medidas de emergência podem ser consideradas. Detenções sem acusações formais podem ser estendidas e a demissão em massa de funcionários públicos não precisaria de aprovação do Parlamento.

A imposição de um toque de recolher parece improvável, já que é favorável para o governo ter seus simpatizantes com liberdade de movimento nas ruas à noite.

Outra possibilidade é a volta da pena de morte, após 12 anos.

Quem é este arquirrival de Erdogan?
O objetivo declarado do presidente Recep Tayyip Erdogan é se livrar dos seguidores de seu antigo aliado, o clérigo islâmico Fethullah Gulen, que virou seu arquirrival e se autoexilou nos EUA em 1999.

Fethullah Gülen


Gulen fez muitos inimigos mas também tem um grande número de seguidores, e eles são acusados de tramar o golpe. Acredita-se que os gulenistas, que adotam uma forma tolerante de islamismo, doem até 20% de sua renda para o movimento.

Eles tinham posições em todos os setores da sociedade turca e relatos locais dizem que alguns confessaram envolvimento na tentativa de golpe.

A ordem para o golpe, segundo um seguidor, teria vindo de um professor civil conhecido como "Big Brother".






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