segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A mana de Tito



ANTÓNIO CORREIA DE CAMPOS   10/08/2015

Laboriosamente, tentei explicar a Tito que o comportamento do Governo perante o FMI infundia tudo menos confiança...

Vou aí sexta-feira, esperar minha irmã que vem de Londres. Estás livre para almoçar? Pergunta-me Tito, a meio das suas férias algarvias. Encontrámo-nos no restaurante de um mercado de bairro, um dos poucos ainda bem vivos, de peixe fresco e barato como convém a reformados da classe média, onde reina alguma familiaridade entre clientes, patrões e empregados. Comida deliciosa, caseira e sobretudo barata.

Sabes, diz-me Tito guloso, disto não há nos States. Pois olha que a restauração levou forte abalo com a subida do IVA para 23%, praticamente todo suportado pelo pequeno restaurador, impossibilitado de aumentar preços a uma clientela que definhava. O resultado foi o encerramento de muitos, com perda de três postos de trabalho, marido, mulher e empregado e correspondentes contribuições sociais, a cessação da renda e a perda do direito de trespasse pulverizado na crise. Do lado do contribuinte, o aumento da despesa pública com o subsídio de desemprego. Os nossos inteligentes fiscalistas minimizaram o micro, afogando a estratégia na táctica.

Fugindo à minha pregação, Tito declarou-se satisfeito com o clima e o Algarve, cheio de nacionais da classe média alta, atraídos pela baixa dos preços na hotelaria. Sabes que, pelo menos naquele microcosmos, são evidentes os sinais de que a classe média se sente desafrontada e consome de novo como nos bons tempos. Vi na imprensa que, no primeiro semestre deste ano, se venderam mais 31% de automóveis que no mês homólogo anterior. Pois é, mas também deves ter visto que em Julho esse valor regrediu para 11%, respondi, já a começar a ficar irritado com mais uma vítima da propaganda do Governo. E que o aumento do investimento em bens de equipamento se deve basicamente a viaturas, onde os carros de turismo têm uma importância dominante. Basta dizer-te que, nos dados de Julho, por cada comercial que entra, importas 7 ligeiros e por cada pesado, 49 ligeiros. Não te iludas com o fogo-de-vista! Sim, mas não podes negar que as pessoas parecem mais aliviadas, responde Tito. Pudera, no Algarve, em férias, não vês falência, funeral, pobreza, nem doença de veraneante. E todavia o crédito em incumprimento agravou-se, a balança comercial desequilibra-se à espera do bónus turístico, o calor vai de certeza matar mais idosos e o acolhimento nas urgências dos hospitais permanece problemático. Assim nunca chegaremos aos famosos dez primeiros da competitividade. (Estou a tornar-me agressivo, tenho que me controlar, pensei para comigo, as eleições estão a dar cabo de mim).

Estes tipos nem as pensam, concorda Tito, felizmente; de quem foi a luminosa ideia de nos colocar nesse estrelato competitivo, sabendo como são frágeis os alicerces da nossa economia e como estão a ser sapados com o desemprego de jovens, a saída de uma ou duas gerações, os cortes nas bolsas e na ciência, a dívida pública na estrato-esfera! Só pode ser aquele twitter doTea Party, que acha que vivemos no melhor dos mundos e que foi “feito ao bife” pelo antigo conselheiro de Barroso! Ah, aquele que gregos diziam ser mais alemão que os alemães e que por acaso é secretário de estado de uma pasta perdida entre voos, na Europa? Pergunta Tito. Esse mesmo. Coitados de nós, que mal fizemos para merecer tamanha prenda!

Não te fiques a rir, meu caro, no teu partido algumas coisas são surreais: Aquele cartaz da ressurreição, onde ao voltar da página se encontram os amanhãs que cantam! A tentativa de resposta retro, com dramas de 2013 para ganhar o poder em 2015! Desperdiçando Costa e as propostas económicas, o melhor capital do PS nesta altura! Ou a tentação de responder olho por olho, dente por dente, a uma máquina de comunicação rica, poderosa, bem oleada e sem escrúpulos, que ganha sempre nesse terreno! Tens que dizer aos teus amigos, lá no Rato, que a campanha tem que dar a volta por cima e não responder acuada.

A propósito do Rato, retorqui, procurando mudar de assunto, estive lá, dei a volta ao jardim e não encontrei o famoso portão de ferro por onde entrará Portas em Setembro, quando vier da capela do Rato ao Rato conversar com Costa, como previsto na crónica de verão de um ilustre matutino. Impagável, essa crónica, concorda Tito. Os retratos de Portas e Passos estão impecáveis. O de Costa mais impreciso. Não te vou dizer que não gostei, responde Tito, acho até bem apanhados os caracteres e a trama. Vamos a ver se o cronista chega ao fim sem desiludir. Para já, o matutino está a esgotar mais cedo. Voltando aos números do desemprego, o que mais me surpreendeu na barulheira foi a UGT se ter travestido de entidade patronal, dando uma ajudinha ao governo. Teriam sido objecto de management buy out, mudando agora de ramo de negócio e mais tarde de logotipo, quem sabe? “Nova UGT” ironiza Tito! Calma, amigo, não te precipites, trata-se apenas de uma vingançazinha no contexto da silly season.

Laboriosamente, tentei explicar a Tito que o comportamento do Governo perante o FMI infundia tudo menos confiança. Começaram por exultar com a intervenção externa e com a vinda do FMI. Quiseram sempre mostrar como eram bons alunos, sempre mais além da Troika, convencidos de que a dureza do sacrifício rejuvenescia a economia. Aconteceu o contrário. Depois, com o bónus da decisão Draghi que aliviou pressões sobre dívidas soberanas, a baixa do petróleo e do Euro, de súbito passaram a “arrotar postas de pescada” como diz o povo. O FMI, de indispensável passou a usurário nos juros. E quando os relatórios regulares surgiam, normalmente de qualidade superior aos da União, e os dados não eram tão optimistas, começaram a construir o patíbulo onde enforcar o Fundo. À medida que os números se tornavam menos credíveis, subia o tom de desprezo pela ortodoxia dos monetaristas. Ao ponto de, quando Subir Lall, do FMI, em Novembro de 2014, ter manifestado dúvidas sobre a velocidade de baixa do desemprego, o terem tratado como o leproso da semana. O que agora se repete. É certo que há vários FMI, o bom polícia e o mau polícia, mas o que há de comum a ambos é a qualidade técnica da análise. A desconstrução pelo FMI da narrativa optimista do Governo, e o alerta da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), duvidando do crescimento, do desemprego e do défice, deixam a actual maioria enfurecida. E os conselhos de moderação de gasto, de resto prodigalizados por igual à coligação e ao PS, destroem-lhes o argumentário.

Bem sei responde Tito, ouvindo com paciência a minha arenga. O problema está na estreiteza do caminho, o fio de uma navalha, se te desvias do espeto, podes cair na caçoula. Já sabia, Tito amigo, que irias trazer de novo a gastronomia à colação. Antes de partires, tenho que te levar à minha terra, a provares um cabrito assado e respectivas batatas. Bem dizem que os beirões são batateiros e azeiteiros, mas para mim não há cabrito nem peixe assado sem divinas e tostadas batatinhas. A refeição terminava, Tito chamou um táxi para o aeroporto, para acolher a mana de Londres.

Professor catedrático reformado

domingo, 9 de agosto de 2015

O Panteão Nacional




Como é evidente, falar hoje do Panteão Nacional é falar de Eusébio, como, há alguns anos, teria sido falar de Amália.

A Assembleia da República assim quis que as duas grandes figuras do futebol e do fado fossem panteonizadas.

Por pouco, voltaríamos aos três FFF — Futebol, Fado e Fátima — que foram considerados comosímbolos do Estado Novo e que, afinal, talvez não fossem tanto, como um dia tentei explicar num artigo do jornal Le Monde Diplomatique. De resto, hoje, mais do que nunca, vivemos esta trilogia: com a febre do Futebol (que há muito, na sua versão profissional, deixou de ser um desporto para ser um espectáculo dos estádios, mas, sobretudo, um espectáculo televisivo, que move milhões); com a homenagem ao Fado que se tornou “Património da Humanidade”, tendo excelentes executantes que seguiram o exemplo de Amália (e de Carlos do Carmo) de transformar o fado marialva e fatídico (fatum significa, como se sabe, “fado” ou “destino”) numa canção com outro tipo de valores, sem perder a toada fadista; e com a importância nacional e ecuménica atribuída a Fátima, dado que o “milagre” é particularmente sensível em tempos de doença, de austeridade e de fome (assim sucedeu em 1917 e anos seguintes e acontece agora), e em que a fé impera sobre a razão. Ou seja, são três fenómenos sociais que nenhum argumento lógico ou ético parece poder abater. Por isso, os deputados votaram — da direita à esquerda — na trasladação de Amália e de Eusébio para o Panteão (no maisrecente caso, apesar das despesas que daí advinham em momento de crise financeira) e quase nenhuma voz lançou a tão simples questão de discutir se era correcta a transformação destes ilustres mortais em “imortais”. Que eu visse (não sou consultor de blogues, nem participo em redes sociais), fê-lo o meu colega João Medina no seu blogue e escreveu António Valdemar neste jornalsobre os “vizinhos da sala 3” (onde Eusébio passou a estar no Panteão) que, por certo, teriam estranhado a presença de mais um companheiro de viagem e de culto cívico.

Mas não vou romper com o estranho silêncio da crítica, pondo em causa a recente panteonização, aliás, pouco inesperada de Eusébio (estamos ou não numa “civilização do espectáculo”?), pelo qual tenho a admiração de quem o viu jogar e a simpatia humana que naturalmente infundia. O que quero aqui discutir é sim, neste ano de 2015, a existência do Panteão como organismo vivo que recebeafinal algumas personalidades consideradas “imortais”: o lugar destinado “a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa de valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”, como reza (afinal de forma genérica e ambígua) a Lei n.º28/2000, de 29 de Novembro.
É difícil, com efeito, definir esses eleitos. É verdade que, de forma idêntica, é difícil saber quem merece entrar numa academia — o nome de “imortais” surgiu na Académie Française e nela entraram também, por certo, figuras duvidosas, em função dos valores de cada circunstância — ou quem merece ser condecorado pelo Presidente da República com as ordens honoríficas ou merece um prémio, mesmo o Prémio quem Nobel, que todos os anos se discute se foi justo, ou não, ser atribuído a alguém, nas suas diversas modalidades. Veja-se a lista dos indevidamente chamados “prémios Nobel da Economia” e talvez se fique um pouco espantado com a sua atribuição a certas personalidades. O mesmo, de resto, se passava no tempo de outras oligarquias — “outras”, porque vivemos (não tenhamos ilusões) numa oligarquia, à sombra do Poder do Capital, muito mais do que numa democracia, que supõe valores que foram relegados para segundo plano. Recorde-se o que se passava na Monarquia Constitucional com a atribuição de títulos, que tornou popular o ditado: “Foge cão que te fazem barão! Mas para onde se me fazem visconde?” Pois é, mas o Panteão ou, como prefiro, o Pantheon, dado que a palavra assim escrita está mais próxima da sua origem grega — Pan-Theon, “todos os deuses” — é o lugar de eleição da Pátria, o lugar da Memória das memórias, dos Memoráveis mais memoráveis.
Como surgiu afinal o Panteão ou o Pantheon? Podemos obviamente recordar o santuário de todos os deuses, na Grécia ou na Roma antigas. Mas os túmulos da memória, os memoriais ou os cenotáfios (placas que recordam os que morreram com “fama de heróis”) aparecem desde a Antiguidade e são retomados ao longo da história. Foi, porém, a Revolução Francesa que criou o Panteão como lugar oficial de culto nacional dos “notáveis”. Mirabeau e Voltaire terão sido os primeiros a ocupar a Igreja de Sainte Geneviève, laicizada com a Revolução e transformada em Panthéon National. E continuaram a entrar nela fi guras ilustres, até porque o movimento republicano foi ali — como veio a ser em Portugal — animado pelo Positivismo de Comte, que criou uma “religião da Humanidade”, na qual se apresentavam como exemplos os mortos ilustres, quer no Panteão, quer no Calendário positivista, quer nos Centenários, quer mesmo em templos construídos para o efeito. Mas panteões, oficiais ou não, existem de uma forma ou de outra em muitos países e em diversos lugares, com personalidades que se crê terem feito parte fundamental das suas histórias nacionais, sejam reis, governantes (mesmo que viessem a ser considerados ditadores), cientistas, artistas ou escritores. A Basilica di Santa Croce, em Florença, é disso um peculiar exemplo.Portugal não deixou de seguir o mesmo rumo. É claro que se quis panteonizar os mosteiros da Batalha (onde estão alguns dos reis da dinastia de Avis, mas também os dois túmulos dos “soldados desconhecidos” da Grande Guerra, numa forma de a República eternizar o povo combatente e sacrificado, anónimo, que se repetiu em todas as vilas e cidades em múltiplos monumentos, por vezes com a identificação dos “heróis”) e dos Jerónimos (onde foram sepultados membros da Casa Real — que teve o seu Panteão da dinastia de Bragança em S. Vicente de Fora — mas onde também se celebram Camões, Vasco da Gama e Alexandre Herculano). E é verdade que em Coimbra houve a prática, já mais recente, de conceder à Igreja de Santa Cruz o sentido de “Panteão Nacional”, pois ali estão sepultados, em ricos túmulos do
século XVI, os dois primeiros reis de Portugal (D. Afonso Henriques e D. Sancho I). Todavia, o liberalismo quis criar, como na França, o seu próprio “Panteão Nacional”, que surgiu por decreto de Passos Manuel de 1836 sem lugar definido, assim como a I República em 1916 (em tempo de governo de guerra da “Aliança Sagrada”, de António José de Almeida e de Afonso Costa) deliberou, por lei, instituir o Panteão Nacional na Igreja sempre inacabada de Santa Engrácia, obras eternas, iniciadas no século XVIII e cuja imagem foi sintetizada no provérbio popular de “obras de Santa Engrácia”.
Mas o certo é que, na prática, o Panteão Nacional é uma obra do Estado Novo, pois só em 1 de Dezembro — dia da Restauração — do ano de 1966 foi inaugurado, com a presença do cardeal Cerejeira, do Presidente da República, Américo Tomás, e do presidente do Conselho, Oliveira Salazar. Recordemos que estávamos então em plena “Guerra do Ultramar”, em que “heróis” eram celebrados todos os anos pelo 10 de Junho e em que Eusébio representava então o “ultramarino” negro — tão português como outros — que deslumbrava o mundo na “equipa das quinas”. Para ali foram então trasladados os corpos dos escritores Almeida Garrett, Guerra Junqueiro e João de Deus, liberais e republicanos, que, devido ao seu sentir nacionalista e popular, não deixaram de sensibilizar o salazarismo. E vieram também Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona. Ou seja, o Estado Novo manteve-se respeitoso em relação ao regime republicano, sepultando ali Teófilo, o primeiro Presidente da República, que o foi na qualidade de presidente do Governo Provisório de 1910- 1911; o presidente Sidónio, que, de alguma forma, e sem dúvida de modo indevido, era em certos meios considerado o precursor do Estado Novo e até do fascismo; e o seu próprio presidente mais carismático, Carmona, que o fora desde 1926 (ainda na Ditadura Militar, considerada “Nacional”) até 1951, ano da sua morte. Afinal era o naipe dos políticos “imortais” que se poderia esperar.
Depois de 1974, verificou-se um novo rumo, com algumas contradições, como têm sido ambíguos e contraditórios os caminhos depois de Abril, onde um ideal socialista ou, pelo menos, social se mistura, altera ou é negado pela força avassaladora do neoliberalismo, que se vai afirmando e consolidando nesta “Europa” dominada por uma nova onda capitalista. Assim, afirma-se também um verniz nacional

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

No céu de Julho


António Correia de Campos

Público, 2015.08.03

O Governo tem-se entretido com benesses pontuais na Saúde: 30 ambulâncias entregues a corporações de bombeiros, em luzida parada no inclemente céu de Julho, pagamentos a médicos que, tendo de há muito concluído concursos, se encontram ainda sem provimento, 22 milhões para 16 mil cirurgias, abertura de candidaturas a centros de excelência e outras bondades avulsas, tão merecidas que só espanta terem esperado quatro anos para serem reconhecidas.

E agora, um programa recheado de piedosas promessas: médico de família para todos, devolução de hospitais a Misericórdias, livre escolha no SNS, ADSE aberta a trabalhadores do Estado a recibo verde, enfermeiro de família, mais genéricos. Sem que a palavra maldita “privatização” venha perturbar os espíritos. Do programa e das suas admiráveis promessas falaremos noutra ocasião.

Agora enfrentemos a dura realidade para a qual o Governo fez resvalar o SNS: a penúria financeira dos serviços públicos, nenhuma reforma que trouxesse ganhos de eficiência e a irrefutável substituição por encargos das famílias, das dotações financeiras que o Governo nega ao SNS. Nada melhor que a Conta-Satélite da Saúde, publicada pelo INE em 23 de Julho, que analisa dez anos de gastos em saúde, entre 2002 e 2012 e segue por 2013 e 2014, para observar a tendência registada em quase quatro anos de Governo da coligação.

A conta-satélite agora publicada desmente os fantasmas de insustentabilidade do SNS que tanto agradam aos nossos mercadibilistas e documenta o lento mas visível deslizar do financiamento por mais sangria às famílias e maior fatia oferecida aos privados, na prestação. Portugal era acusado pela direita de estar entre os países da União que maior percentagem do PIB gastavam em saúde, um luxo inadmissível num pequeno e atrasado país. Desde os 9,4% do PIB de 2005 (um meio ano de Sócrates, onde se pagaram 1,8 mil milhões em dívida, de Santana Lopes), aos 9,9% de Sócrates em 2009, ano de eleições e também de comportas abertas por ordens de Bruxelas, baixámos para os 9,3% em 2012 e 9,1% em 2014, neste final de consulado de Passos. Os antigos profetas da desgraça que vaticinavam o fim do SNS pela explosão financeira até já se reconverteram em seus defensores, quando viram que em 2014 a despesa corrente em saúde cresceu (1,3%), abaixo do PIB (2,2%). De vilão, o SNS passou a herói da contenção.

A questão seguinte consiste em conhecer o destino da despesa corrente, se prestadores públicos, se privados. Se o encaminhamento para os primeiros aumentar, tal significa que o Governo atribui mais elevada prioridade financeira à saúde do que em exercícios anteriores; se ele baixar, significa que o Governo decidiu três coisas em simultâneo: gastar menos em saúde comprimindo a dotação do SNS, sacar mais das famílias e promover a gradual privatização do sistema. Ora a parte da despesa corrente total que foi para prestadores públicos que havia atingido, em 2002, 73,3%, (um exercício de quatro meses do PS e de oito meses da coligação de direita), estabilizou em 71,8% em 2004 e 2005, para se reduzir por maior eficiência e controlo da despesa, a 69% em 2008, voltando a subir para 70,4% em 2009, caindo após 2011, de forma abrupta, para 66,2%, em 2014. Com tardias correcções de erros anteriores (subida da hora/médico, mais pessoal nas urgências, vacina contra hepatite C, ambulâncias novas, mais cirurgias e endoscopias, bem como dívidas de 1,5 mil milhões de medicamentos e dispositivos médicos, entre outras benesses ainda por conhecer) não será abusivo pensar que a despesa pública vá de novo disparar, apenas pelo calendário eleitoral.

O ponto seguinte consiste em saber quem paga estes encargos: as administrações públicas, as famílias, os financiamentos voluntários (seguros)? É inegável que com este Governo atingimos em 2014 o mais elevado gasto das famílias com a saúde em relação ao PIB, um dos maiores da União e até da OCDE, um terço do financiamento total. Os gastos directos das famílias atingiram 27,7% e se adicionarmos os 5,4% de seguros voluntários chegamos a 33,1%, a que há que somar ainda a redução dos benefícios fiscais. Alguma redução dos encargos das famílias, ocorrida em 2013, tem uma dupla e excepcional explicação: em 2013, as famílias gastaram menos em medicamentos que no ano anterior, fruto das medidas forçadas de contenção de preços. Certamente também por ser o ano de “enorme” carga fiscal que reduziu ao osso o rendimento disponível. Não faltará quem louve o Governo por esta política, mas receio que se trate de emagrecimento sob pressão. Aliviada esta, abandonada a terapêutica hormonal, aí vai o gasto em medicamentos disparar de novo. E já cá não estará este Governo.

Em resumo e em termos nominais, entre 2011 e 2014, a despesa corrente total em saúde reduziu-se em 1,318 milhares de milhões de euros (MM). A parte maior da redução coube ao Estado (SNS), 1,145 MM, essencialmente sob a forma de cortes orçamentais em vencimentos, horas extras, em não substituição de efectivos e menor gasto com farmácias. As famílias também reduziram os seus gastos correntes em saúde em 0,173 MM, mas aumentaram a sua parte no financiamento, naquele período de redução geral de rendimentos.

Onde usaram o seu dinheiro as famílias? Em 2013, 40% em consultórios médicos, 25% na farmácia, 15% em clínicas e hospitais privados e 10% em dispositivos e outros bens médicos. Comparado com o ano anterior, as famílias gastaram mais 0,9 p.p. em dispositivos, mais 0,6 p.p. em clínicas privadas e menos 1,8 p.p. na farmácia, bem como menos 0,8 p.p. em consultórios. De entre as famílias, a classe média e alta está a frequentar cada vez mais o privado, não só por este ter melhorado a sua oferta, mas sobretudo pela penúria imposta ao SNS, que o impede de responder como deveria.

O novo cheque-formação


Fausto Leite – Advogado especialista em Direito do Trabalho

Público, 2015.08.03

A formação profissional é essencial para promover o emprego dos trabalhadores e melhorar a competitividade das empresas num tempo de permanente mudança. Só com formação contínua é possível garantir a adaptação tecnológica e a inovação indispensáveis para competir no mercado global, como se prova com o êxito da indústria do calçado e do seu Centro Tecnológico.

Como preceitua o Código do Trabalho (CT), o empregador deve “contribuir para a elevação da produtividade e empregabilidade do trabalhador, nomeadamente proporcionando-lhe formação profissional adequada a desenvolver a sua qualificação”.

Por sua vez, no âmbito da formação contínua, além do dever de proporcionar a valorização profissional do trabalhador, o empregador tem a obrigação de lhe assegurar o direito individual à formação. Assim, o trabalhador efectivo tem direito, anualmente, a um número mínimo de 35 horas de formação contínua e o empregador deve garanti-la, pelo menos, a 10% dos seus trabalhadores em cada ano, enquanto o contratado a termo por período superior a três meses tem direito ao número de horas proporcional à duração do contrato.

Se o empregador não respeitar este direito, o trabalhador ficará com o crédito equivalente, com direito a retribuição ou à frequência de acções de formação, mediante o aviso prévio de dez dias. Porém, o crédito de horas para formação prescreve se não for utilizado no prazo de três anos, razão por que, muitas vezes, só após a cessação do contrato o trabalhador reclama o pagamento das 105 horas de formação.

Estes direitos têm sido violados impunemente, sobretudo nas micro, pequenas e médias empresas, sem a adequada acção inspectiva da Autoridade para as Condições do Trabalho, não obstante estarem em causa contraordenações graves. Ao invés de obrigar as empresas a cumprir as suas obrigações, o Governo pretende, agora, apoiá-las financeiramente pelo IEFP através da medida cheque-formação. Segundo o Projecto de Portaria já discutido no Conselho da Concertação Social, esta medida abrange, além dos desempregados, os trabalhadores no activo até 50 horas no período de dois anos, com o valor hora de 3,50€, no montante máximo de 175€, sendo o financiamento de 90% do valor total da acção de formação.

Contudo, este projecto permite que as candidaturas dos trabalhadores no activo sejam apresentadas pelas empresas, mesmo que tenham sido condenadas em processos contra-ordenacionais não relacionados com discriminação ou iniciado o processo especial de revitalização (PER) ou o processo do sistema de recuperação de empresas por via extrajudicial (SIREVE).

Acresce que a formação em causa pode ser ministrada fora do período normal de trabalho, ao arrepio da norma do CT, que considera o crédito de horas de formação como tempo de serviço efectivo com direito a retribuição, como se previa na versão inicial do projecto. Obviamente, não se questiona o reforço do apoio às centenas de milhares de desempregados, a maioria dos quais sem qualquer subsídio. Neste caso, os desempregados que frequentem percursos de formação até 150 horas em dois anos têm direito a uma bolsa de formação de 500 euros, além do subsídio de refeição e despesas de transporte não garantidos pela entidade formadora. Ademais, as Medidas Estímulo Emprego e Reactivar têm-se revelado ineficazes no combate ao desemprego, sobretudo, de longa duração, que afecta mais de metade dos desempregados inscritos no IEFP. Igualmente, o Programa de Estágios Profissionais tem favorecido a precariedade com reduzida taxa de integração na vida activa. Segundo o Tribunal de Contas, em 2014, só 33% dos estagiários foram integrados no mercado de trabalho.

Diferentemente, no tocante aos trabalhadores no activo, não se compreende que o Governo, em vez de punir as entidades infractoras com as coimas aplicáveis às violações das normas sobre formação profissional, pretenda beneficiá-las com cheques-formação à custa do Estado!

Há mais euro depois da Grécia?


José Castro Caldas – Economista, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra

Público, 2015.08.03

A ameaça de expulsão da zona euro, brandida pelo ministro das Finanças de um país que ocupa uma posição hegemónica na União Europeia ao representante de um governo “rebelde”, representa um ponto de inflexão de trajetória na integração europeia, cujas consequências são imprevisíveis. As instituições da União Europeia quiseram transmitir uma mensagem clara: na zona euro nenhuma dissidência é tolerada. No euro, para as “periferias”, só há duas alternativas – ou austeridade, ou rua. Mas na realidade, a mensagem que transmitiram não é só essa. Aos especuladores nos mercados da dívida soberana disseram: “O euro não é irreversível”; e aos povos da Europa sinalizaram – no euro não há lugar para escolhas políticas significativas, isto é, a democracia é limitada.

A Europa construiu para si uma moeda única sem as instituições características de uma União Política democrática. Essa moeda transformou-se numa prisão onde a única política que tem condições para prevalecer é a que garante a liberdade dos capitais e das mercadorias em detrimento das pessoas. A única coisa que essa União Monetária tende a ter de comum é precisamente a moeda. Tudo o resto é divergência, poder hierárquico do centro sobre a “periferia”.

Esta União Monetária pode mudar?

Em tese pode. Uma União dotada, não só de uma moeda, mas também de um orçamento e de uma dívida comuns, capacidade de cobrança de impostos progressivos num sistema fiscal uniforme, sem lugar para paraísos, e sobretudo de um parlamento diretamente eleito e de um executivo que dele emane seria uma outra União.

Mas será que a partir das tensões que existem é possível construir a verdadeira União Política que poderia transformar o euro noutra coisa? Entre as poucas coisas que parecem claras, esta é uma delas: uma tal transformação depende de um consenso, de uma quase unanimidade que não pode existir precisamente porque as tensões que o euro alimenta inviabilizam os consensos que seriam necessários para resolver as tensões do próprio euro. A cada acrescento que é feito ao edifício, alargam-se as rachas nas paredes.

Compreendemos também facilmente que o edifício não é transformável por uma acumulação de mudanças políticas país a país quando cada mudança enfrenta a parede e se transforma em derrota que prejudica a emergência de alternativas noutros países.

A única mudança possível, a que de facto está na forja, é a apropriação do pouco que resta de soberania dos estados membros. Na linha do que vai acontecendo com a União Bancária, toda a política orçamental e toda a política social passariam para a esfera de competência da União.

Chamar-lhe-ão “reforço da governação económica” e procurarão fazer passar esta transformação musculada como um passo, um avanço, para a União Política.

Este euro é insustentável, ou temporariamente sustentável, mas num quadro disciplinar incompatível com a democracia. Que fazer então? Há evidentemente soluções racionais. A mais racional de todas, com menos danos colaterais, seria, como defendeu Ashoka Mody, um ex-diretor do FMI num artigo na Bloomberg, a saída do euro da própria Alemanha. Neste caso, o euro subsistiria, mas sem a economia que acumula excedentes sistemáticos que o sobrevalorizam impedindo que meia Europa possa competir nos mercados mundiais. Mas à falta de soluções racionais, a verdade é que, do passado fim de semana em diante, qualquer governo determinado na realização de um programa “dissidente” terá de enfrentar na zona euro uma negociação extremamente difícil. Mesmo não tendo como objetivo a saída da zona euro, tal governo poderá ter de responder ao ultimato “ou mais austeridade ou rua”. E para não ter de escolher entre austeridade em dose reforçada, ou expulsão nas condições impostas pelos credores, terá de estar política, moral e tecnicamente preparado para defender o seu país. Isto é, terá de ter acautelado a necessidade de uma saída da zona euro que em último caso poderá ter de encarar, mesmo não a tendo desejado.

A lição de Delors


João Ferreira da Cruz, economista

Público, 2015.08.03

Os cinco sábios – o Conselho de Assessores Economistas do Governo alemão – regressam com o estudo Lições da Crise Grega e a Estabilidade da Zona Euro. Reconhecem falhas na génese da moeda única. Propõem a saída do euro, como solução extrema para a insolvência de um Estado-membro. Objectivo: evitar que a unidade monetária seja posta em causa, o derrube por efeito dominó. Constatam que eleitores credores não estão dispostos a financiar, em permanência, os devedores.

A “união por transferências” dos mais ricos para os mais débeis privaos da motivação para reformas e torna-os incumpridores da consolidação orçamental. O famoso risco moral. Mercados financeiros, vulgo “instância reguladora anónima”, disciplinariam orçamentos.

Temor germânico que sempre cristalizou a integração europeia. Relembre-se que, apesar do Bundesbank, nasceu o sistema monetário europeu, a Alemanha se unificou e o euro existe. Passaram mais de sete anos sobre o início da crise e o euro foi salvo por medidas consideradas impossíveis: revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento, Pacto Orçamental, Mecanismo Europeu de Estabilidade, União Bancária e sobretudo a acção do BCE, adquirindo obrigações emitidas pelos governos da zona euro e que ascendem a 60 mil milhões de euros mensais, pelo menos, até Setembro de 2016.

Falta ainda muita coisa: governação económica reforçada pelo pilar comunitário com capacidade orçamental, mecanismos de assistência renovados, dimensão social com amarração fiscal, institucional e democrática. Mais política. Será que compreenderam que a força e os equilíbrios europeus assentam na “concorrência que estimula, na cooperação que reforça e na solidariedade que une”, como propunha Delors?

As responsabilidades da Europa


Público, 2015.08.03

Em vez de políticas cegas, os líderes europeus devem parar para pensar

A crise dos migrantes em Calais não tem fim à vista. Por muito que os políticos de cada um dos dois lados da fronteira façam proclamações ou ameaças, o desespero falará sempre mais alto nas decisões de vida das pessoas que se sentem sem futuro. Numa declaração conjunta, os ministros do Interior da França e do Reino Unido lançam agora um aviso aos milhares de imigrantes que, numa espera interminável, espreitam a melhor oportunidade para entrar num camião que os leve para Inglaterra através do Eurotúnel: “As ruas da Europa não são pavimentadas a ouro.” Não estão a brincar. David Cameron, o primeiro-ministro britânico, já prometeu enviar cães e dinheiro para erguer mais barreiras, e os franceses puseram mais polícias no terreno, mas não chega para resolver um problema cuja solução se situa lá longe, nos países de origem destes imigrantes em fuga da guerra e da miséria.

Em vez da repressão e do desprezo por regras elementares dos direitos humanos, os governos europeus deviam parar para pensar. Se a intervenção em países do Médio Oriente como a Síria ou o Iraque, ou a benevolência face a governos corruptos e ditatoriais em África é justificada por interesses políticos, económicos e estratégicos da Europa e de outros países ocidentais, então as consequências dessas acções devem ser assumidas. É injusto e desumano que todo o ónus recaia justamente sobre quem já sofre directamente na pele os efeitos da guerra e da cupidez dos seus líderes. Quem procura entrar na Europa são sobretudo populações vítimas de conflitos graves ou de políticas de pura pilhagem dos recursos dos respectivos países. Muitos deles tinham casa, emprego, bens, não andavam a pedir nas ruas de Trípoli ou nas planícies da Eritreia.

É óbvio que a pressão migrante sobre a Europa não começou agora, mas a multiplicação de conflitos, a deterioração da situação internacional e a mediocridade das lideranças europeias conferem uma dimensão quase incontrolável a esta vaga migratória. Ao ponto de ameaçar, ainda mais, as tensões entre parceiros, já de si muito abaladas pelos efeitos da crise da dívida. Veja-se a declaração subscrita pelos dois ministros atrás citados, que acusa directamente “a Grécia e a Itália” por não impedirem os imigrantes de atravessar o seu território antes de chegarem a Calais.

Outro sinal ameaçador é o recente inquérito promovido pela Comissão Europeia, segundo o qual a imigração é a maior preocupação dos europeus, à frente do terrorismo. Junte-se a isto as hordas de desempregados, o empobrecimento geral, a xenofobia e os extremismos e temos o caldo de cultura capaz de gerar conflitos incontroláveis.

Muitos destes migrantes também estão ligados ao Velho Continente por séculos de passado colonial e até por isso a Europa tem responsabilidades para com eles. Não pode lavar as mãos como Pilatos. Mas a quem não consiga ver além dos seus próprios interesses, talvez seja útil pensar nas consequências de tanta cegueira. Os muros acabam por ser derrubados. Mais cedo ou mais tarde.

O braço armado do Estado


Fernando Sobral

Jornal de Negócios, 2015.08.03

Durante muitas décadas, a Caixa Geral de Depósitos foi o amigo número um do Estado. O seu braço armado, em tempos de tempestade, e o refúgio perfeito para os que tinham deixado de ter lugar no Governo ou no Parlamento. Quando o rei D. Luís a criou em 1876, para “incitar o espírito da economia”, talvez se imaginasse já que viria a transformar-se no banco do Estado. Salazar transformou-a num instrumento da sua política económica. Mas, sobretudo, pela sua pujança e peso na sociedade portuguesa, a CGD foi sempre o palco perfeito para se observar o teatro político e as motivações «pe mudam consoante o rumo do vento. Nos últimos anos a CGD serviu, para lá do seu fulcral papel na economia, para, sob diferentes administrações, influir em decisões políticas tomadas por sucessivos governos. Basta lembrar o seu papel a financiar accionistas do BCP no tempo em que este era palco de uma luta de poder sem quartel ou na sua retirada de cena quando se decidiram alienações de algumas das mais emblemáticas empresas portuguesas. Só que tudo isto não invalida uma coisa: a CGD simboliza o Estado português e a força que ainda julga ter. Se imagem mais poderosa não existisse, bastava olhar para a sua sede: a caixa-forte do Estado português, agora que a emissão de moeda é decidida lá fora. O actual Governo, que convive mal, por razões ideológicas, com empresas do Estado, já privatizou quase tudo. Como símbolo, só resta a CGD. O “fastio” com que Passos Coelho encarou o facto de a CGD ainda não ter reembolsado ao Estado a ajuda pública que recebeu, é um sinal eloquente de que velhos fantasmas regressam como convicções. A administração de José de Matos foi, com uma frase, colocada entre a espada e a parede. Sairá, pelo fim do mandato. Mas a questão é que Passos, sem mais nada para privatizar (excepto as águas), poderá estar a recuperar o seu velho sonho (transferir a CGD para o sector privado), como dizia há muitos anos. É uma opção. Mas então o Estado ficará sem o seu último Robocop.

Aproveitar o valor destruído


Nuno Carregueiro

Jornal de Negócios, 2015.08.03

O BES e a Portugal Telecom ficarão para a história empresarial portuguesa como dois dos casos mais evidentes de destruição de valor por actos de gestão ruinosos. Foi a queda do BES que precipitou o colapso da PT, mas o princípio do fim da empresa de telecomunicações começou muito antes da aplicação em títulos de dívida da Rioforte. Foi a entrada na Oi e posterior fusão com a companhia brasileira que matou a PT. Hoje existe a PT Portugal – uma filial de uma companhia francesa – e a Pharol – uma “holding” que gere uma carteira de dívida em incumprimento e é a maior accionista da companhia de telecomunicações brasileira com menor potencial.

Mas o valor destruído com as quedas do BES e da PT não foi para um buraco negro. Se é verdade que muito não será recuperado, também é certo que uma parte relevante já foi apropriado.

Precisamente um ano depois da resolução que consumou o fim do BES, ainda é cedo para dizer quem vai ganhar com o fim do então segundo maior banco português. Só depois do processo de venda do Novo Banco, que está na recta final, haverá uma maior visibilidade sobre quem pode tirar proveitos da queda do BES e quem ainda vai pagar a factura mais pesada.

Quem já perdeu tudo foram os accionistas do BES. A queda das acções foi abrupta e quem ainda as tem em carteira sabe que nada valem. No caso da PT foi diferente. As acções da empresa, que agora se chama Pharol, têm agonizado em bolsa e são o “patinho feio” do PSI-20. Nos últimos 12 meses já desvalorizaram 79% e a empresa tem uma capitalização bolsista de pouco mais de 300 milhões de euros, menos de um décimo do valor de mercado da PT a 2 de Outubro de 2013, quando foi anunciada a fusão entre a empresa e a Oi.

Os accionistas da Pharol, os mesmos que assistiram impávidos e serenos a esta perda de valor na PT, aprovaram agora a iniciativa de processar os antigos gestores da PT. No caso que vão interpor em tribunal, os novos gestores da Pharol deverão usar a queda de 90% das acções da empresa desde 2013 para culpar os ex-gestores. Mas há outro gráfico bem interessante para mostrar, o da outrora rival Nos. A companhia liderada por Miguel Almeida valoriza 73% nos últimos 12 meses e negoceia em máximos desde 2008, uma prestação que só causa espanto a quem não olhou atentamente para os resultados da empresa no primeiro semestre.

Com uma trajectória totalmente oposta está a PT Portugal, a empresa que os brasileiros da Oi se apressaram a vender para resolver o problema crónico de alto endividamento e que agora tem os seus indicadores de resultados todos em queda. A Nos está a aproveitar a destruição de valor na PT. A Oi também o fez, mas ao contrário da empresa portuguesa, o futuro que tem pela frente é tão sombrio quanto o da Pharol.

Verdade ou consequência?



Sérgio Figueiredo

Diário de Notícias, 2015.08.03

1 O homem que dança, o homem que namora, o homem que canta, o homem que sabe rir de si próprio, o homem que somos todos nós, é o homem que se revela no exato momento em que o seu tempo se esgota. Afinal o homem também presidenta. Afinal é Fénix. Afinal é um presidente extraordinário! É a equipa de sonho, o dream team que primeiro entusiasma, depois desilude, o jogo começa e não concretiza, muito prometia e nada realiza. Empata e perde, perde e empata. Nunca ganha. Não ganhava. Até os golos aparecerem.

Cuba é histórica. Irão era impossível. Até na Grécia, influência discreta. Obama Care existe. Obama importa-se: o casamento gay, a energia verde, o combate às alterações climáticas. Meses vertiginosos. Cabem seis anos e meio nos 18 meses que faltam? Haverá tempo para resgatar o sonho que os americanos elegeram? Haverá espaço possível para nova reconciliação entre o povo e a política?

O povo incrédulo e descrente, que um dia acreditou na regeneração do sistema por dentro. Por isso votou e elegeu-o. Elegeu um deles, um senador federal que, simultaneamente, podia ser qualquer um de nós. Yes, we can!

O capitalismo mutilava-se, mas também dava provas de vida, dizia-nos que se conseguia emendar. A ética tinha perdido o seu mediador no diálogo com o mercado. O Lehman Brothers fizera dobrar os sinos. Mas, com o toque a despertar, nascera Obama para que ninguém deixasse de acreditar. Por isso Barack Obama era a verdade e a esperança.

Continuou a ser a verdade, mas tornou-se a oportunidade perdida Da verdade inspiradora à verdade frustrante. Nós contra o poder. A verdade retórica, sempre a verdade – mas a verdade vencida. A mudança esmagada pelo sistema. Obama traído, Obama ingénuo, Obama foi-se traindo, Obama foi desistindo e envelhecendo. A verdade inconsequente pode ser mais nefasta do que a verdade inconveniente. Pior do que ser enganado é deixar de acreditar.

2 A normalização das relações com Cuba – que interrompe cinco décadas de um embargo que há muito se perdera na história. O acordo nuclear como Irão – que retoma laços com uma potência regional demasiado perigosa para ficar à solta no Médio Oriente. Em dois meses, dois acordos notáveis. Vitórias sem humilhação – não conheço forma mais bela de definir a grandeza humana. Dois outros avanços civilizacionais na civilização dominante: a reforma da saúde, que ganha lastro e consistência; o casamento entre homossexuais, que o Supremo Tribunal legalizou.

Na primeira metade deste ano de 2015, os Estados Unidos promoveram um conjunto de mudanças revolucionárias com impactos relevantes e duradouros, muito além das suas fronteiras. Nas relações internacionais, por definição. Nas políticas sociais, por convicção. Nas regras que definem o conceito da família, por uma questão de valores, consequência da liberdade. Verdade ou consequência?

Verdade e consequência As duas. As mesmas que o Papa Francisco persegue, um Obama no Vaticano, uma lgreja Católica governada por outro homem normal, superior mas normal, a fé na raça humana.

“Finalmente sei o que estou a fazer”, ironizou Obama sobre si mesmo numa recente entrevista a John Stewart no Daily Show. Agora que já não restavam dúvidas, quando ninguém esperava por nada, quando todos os analistas eram unânimes em condená-lo como “presidente das boas intenções”, e só isso, Obama faz prova de vida. O original afinal não capitulou.

3 Está claro que é demasiado cedo para o balanço do que Obama fez. Mas não é demasiado tarde para continuar a ouvir o que tem para dizer. O discurso desta semana na União Africana, em Addis Abeba, não foi só inédito para um presidente americano. Foi sobretudo corajoso. Contra o poder eterno: “ninguém devia sér presidente para a vida”; “não percebo porque é que as pessoas querem ficar tanto tempo, especialmente quando já têm muito dinheiro”. Contra a corrupção. Contra as “democracias” que atiram jornalistas “para trás das grades por fazerem o seu trabalho” e que ameaçam ativistas “numa repressão de governos contra a sociedade civil”.

Obama chegou igualmente tarde a África, porque na verdade não conseguiu exterminar as “áfricas” que persistem dentro do seu país. Desde logo Guantánamo – que, garante, ainda resolverá antes de sair da Casa Branca. Mas também a legislação sobre porte de armas – que provoca dezenas de milhares de vítimas por ano e, como confessou à BBC, sente “angústia” e “frustração” por não conseguir “resolver essa questão”.

Para surpresa de muitos, Obama também conseguiu o apoio do Senado para negociar a participação dos EUA no Acordo de Livre Comércio para o Pacífico. Criando um importante contrapeso à China na região Ásia-Pacífico, esta iniciativa tem um enorme potencial de transformar as relações económicas da parte mais dinâmica do mundo. A visita apressada a Teerão, nesta semana do ministro de Negócios Estrangeiros francês, mostra a relevância das consequências económicas e políticas que o acordo com o Irão traz para o mundo.

Tudo isto ocorre num contexto de recuperação económica da América, em que a indústria se reergue e os EUA recuperam o estatuto de principal potência energética mundial, ultrapassando a Arábia Saudita e a Rússia.

Barack Obama chegou ao poder impulsionado por uma invulgar onda de entusiasmo. O jovem senador hibernou seis anos e saiu da caverna de cabelos brancos. Homem simpático, reencontrou um país apático. Os tradicionais aliados europeus, prostrados pela crise e dominados por visões obtusas. Verdade ou consequência? Fim de mandato em ode ou o canto de um cisne?

Um ano depois da resolução quem preenche o vazio?


Diário Económico, 2015.08.03

Um ano depois podemos afirmar com algum grau de certeza que do ponto de vista do sistema bancário – que inclui depositantes, empresas, contribuintes e restantes bancos – a resolução do BES foi a solução menos onerosa. Não é possível dizer neste momento qual será o resultado da litigância ligada à resolução, nem o desfecho da venda do Novo Banco – mas é difícil teorizar, como explica nesta edição a eurodeputada Elisa Ferreira, que qualquer outra solução não tivesse custos maiores para toda a economia e para os cofres públicos. O problema de origem não foi a decisão política de optar pela resolução, mas antes a gestão da relação entre o Banco Espírito Santo e o mais amplo Grupo Espírito Santo – foi, afinal, o funcionamento desastroso do próprio conglomerado, tornado evidente após a crise mundial de 2008. Por essa razão, porque arriscava dinheiro público, e porque este Governo entrou com um desejo claro de “libertar” a economia de uma rede de poder e influência que ligava o BES a empresas e ao poder político, Passos Coelho deixou Ricardo Salgado e o seu banco nas mãos do Banco de Portugal. Mas os vazios de poder não duram muito tempo. Um ano depois da resolução não se reconstruiu uma rede como a do BES – tal seria impossível – nem emergiu um poder claro nacional. É capital estrangeiro que continua a ocupar os grandes espaços deixados em aberto, na Fidelidade, na PT, na esmagadora maioria das cotadas e, potencialmente, no Novo Banco. A pergunta está, pois, em saber se o poder regulatório e se o poder político português – na sua atitude laissez faire – estão atentos aos conglomerados (chineses, por exemplo) que tomam posição na economia e no sistema financeiro português. Se estão atentos ao seu impacto na economia portuguesa e no risco do sistema financeiro nacional. Um ano depois este é um dos principais desafios.

O perigoso legado do populismo



Francisco Proença de Carvalho – Advogado

Diário Económico, 2015.08.03

Em democracia todos presumimos que vivemos num Estado de direito sério, equilibrado, sem super poderes, transparente e com regras equilibradas. Faz sentido: são condições inalienáveis. Mas em algumas áreas, esta presunção é uma perigosa ilusão. A primeira preocupação dos governantes da democracia deve ser a de garantir que os cidadãos – ricos, pobres, mediáticos ou anónimos – não ficam sujeitos a exercícios arbitrários de poder pelo Estado ou a humilhações perpetradas pelos seus representantes.

Ora, no campo da justiça a abordagem dos sucessivos governos tem-se revelado, profundamente, cobarde e populista. Todos levantam a voz para dizer “à justiça o que é da justiça” e demitem-se de exercer a sua função de garante do normal funcionamento das instituições, que passa por identificar os seus excessos.

Optou-se pelo caminho perigoso mas tentador – porque populista deuma justiça musculada. Foi-se dando mais e mais poder ao sistema de justiça sem se exigir nada em troca, nomeadamente no que respeita ao estrito cumprimento das regras e à responsabilização dos infractores dentro do sistema. Sacrificou-se a transparência e a democratização.

A justiça e as suas regras passaram a ser inquestionáveis. Quem a ela se submete, entra como que num “jogo de casino” imprevisível. Pior ainda se for político, famoso ou “poderoso”. Aqui, o jogo passa a ser viciado porque já entra a perder, só salvo pela circunstância eventual de encontrar pelo caminho – ainda as há felizmente – pessoas corajosas, sensatas e livres, que não têm medo de enfrentar os sempre injustos “julgamentos de pelourinho” na opinião pública. Nada disto é novidade para a classe política, mas esta recusa o ónus de exercer a democracia num sistema que vive confortavelmente em autogestão.

Pior do que a cobardia é o populismo. E o legado dos últimos quatro anos de governação na justiça é do mais profundo e antidemocrático populismo, encabeçado pela senhora ministra da justiça, com a complacência dos demais. Descobrirão que é o pior caminho no dia em que também eles se virem envolvidos nesta vaga de populismo justiceiro.

Sob o ultra populista mote “acabou a impunidade”, a balança está cada vez mais desequilibrada em favor do poder do Estado. Isto potencia o abuso.

Permitiu-se que o “juiz das liberdades” – o juiz de instrução que é uma conquista da democracia e que serve para proteger os arguidos de eventuais abusos e entusiasmos dos investigadores – se tornasse também ele um investigador/acusador.

Aprovou-se a criação de uma lista de pedófilos que mais não é do que um carimbo que lembra os piores momentos da história da humanidade e aceita-se, pacificamente, que a humilhação dos arguidos “famosos” seja regra. Com tentativa de criminalização do chamado “enriquecimento injustificado” pretendeu-se colocar nos cidadãos um ónus que, em democracia, só pode caber ao Estado acusador, tornando o enriquecimento de “per si” uma actividade suspeita. Valha-nos uma Constituição democrática e um Tribunal Constitucional responsável, que travou a invenção deste crime por quem trata com leveza o Estado de direito e que deixaria os cidadãos ainda mais à mercê da “justiça de tablóide”.

Porque veste a pele do populismo, o legado do Governo PSD/CDS no campo da justiça não causa ondas de choque à maior parte das pessoas. Mas devia. O risco destes exercícios populistas é o de que tudo o que parece imediatamente bom provoca quase sempre profundos danos à democracia a prazo.

Oráculos distraídos



Eduardo Dâmaso

Correio da Manhã, 2015.08.03

Marques Mendes criticou a “morosidade da Justiça” no caso BES, face à rapidez do inquérito parlamentar.

Não deixa de espantar esta distração, típica de alguns oráculos televisivos. Num caso tão complexo, a Justiça investiga há menos de um ano, fez buscas várias vezes e às centenas, lançou o arresto cautelar de bens do clã Espírito Santo e avançou para a constituição de arguidos quando achou ter indícios consolidados contra aquelas pessoas. Não é comparável com um trabalho político – meritório, é certo quevisa apenas ‘censuras’ ou ‘recomendações’. Marques Mendes tem a obrigação de saber distinguir uma coisa da outra.