MANUEL LOFF
14/11/2013
Álvaro Cunhal nasceu há cem anos. O partido que deu sentido à sua vida, e ao qual ele dedicou quase toda a sua existência, decidiu comemorar o centenário. Não só: muitas instituições públicas, associações, as mais variadas entidades, sem nada a ver com o PCP, o fizeram também.
Há quem tenha visto nestas comemorações “culto da personalidade” e uma espécie de “beatificação laica”, pretendendo sublinhar uma contradição entre essa atitude e os princípios ideológicos comunistas de valorização do coletivo perante o contributo individual, lembrando que Cunhal recusara sempre esse “culto”. Honestamente, não vi nada disso. Era razoável esperar que o PCP não comemorasse, no Portugal de 2013, uma personagem cujo legado político, e até humano, é uma antítese do Homo neoliberalus?
Nenhuma História de natureza científica pode desprezar a dimensão social e, portanto, enquadrar coletivamente a ação dos indivíduos. Mas isso não impede que se possa sublinhar o papel de indivíduos excecionais, pelo seu percurso, pela sua persistência, pela sua capacidade. Não sou especialmente sensível à História biográfica, mas é óbvio que Cunhal foi um homem incomum. E não o foi, evidentemente, por alguma predestinação ou superioridade intrínseca; foi-o porque a sua história pessoal e a história do país, do mundo, em que viveu o tornou excecional. Não simplesmente (como se isso fosse simples...) pela dificílima opção de vida que fez, e quando a fez, com as duríssimas consequências que lhe trouxe; não porque, podendo dispor da vida regalada que à sua classe social era facilmente acessível numa sociedade desigual como a portuguesa, especialmente sob a ditadura, tenha optado por uma luta que o despojou de todos os privilégios sociais e que o obrigou a munir-se de toda a resiliência de que era capaz para conseguir viver uma vida clandestina feita de secretismo, fuga, suspeita e prisão, mas também de solidariedade e altruísmo recíprocos, de um empenho muito para lá do que é razoável pedir a qualquer ser humano. Cunhal tornou-se comunista num momento em que se consolidava a ditadura contra a qual decidiu lutar, quando esta, além de revelar ser capaz de esmagar toda a oposição à sua volta, escolhera os comunistas como seu inimigo principal. Foi preso aos 23 anos, de novo aos 27 e aos 35. Só uma fuga audaz o conseguiu tirar da cadeia, tinha ele 46. Só pôde caminhar livremente em Portugal aos 60 anos. Se lhe perguntavam pela dureza da clandestinidade e da prisão, recordava sempre que outros tinham passado por condições piores, que tinham até morrido “sem nunca desistir da luta pela liberdade em Portugal” (declaração ao XIV Congresso do PCP, 1992). Por outras palavras, não foi o único, mas foi um deles.
Cunhal foi dos primeiros dirigentes políticos em Portugal que procurou associar, de forma coerente, uma análise social da realidade com a intervenção nela, que se abalançou a um estudo político, económico, social, cultural, histórico, da sociedade portuguesa. Fê-lo condicionado pela clandestinidade, pela prisão ou pelo exílio, mas produziu alguns dos textos políticos (o Rumo à Vitória, 1964, antes de mais) que se tornaram referência para a História do séc. XX português. Se comparássemos, por absurdo, com o deliberado empirismo (para lhe não chamar outra coisa) da reforma do Estado de Portas, anos-luz separariam a qualidade metodológica de uma coisa e outra! O empenho de Cunhal na discussão sobre o papel social da Arte, da criação cultural, é reflexo desta necessidade de conhecimento objetivo da realidade para poder atuar sobre ela.
É também por isso que ajudou a construir um Partido Comunista Português, cujas opções políticas centrais resultaram, mais do que em muitos outros casos, de uma avaliação própria, autónoma, dos problemas. O Cunhal aclamado pelo movimento comunista internacional nos anos 60 e 70, com a aura de quem protagonizara a fuga de Peniche depois de 11 anos de cadeia e tortura, em defesa de cuja libertação se haviam mobilizado tantos, como Jorge Amado ou Pablo Neruda, que viveu na URSS, na Roménia, em França, nunca se terá deixado, como reconhece o seu biógrafo Pacheco Pereira, fechar na redoma do exílio. O PCP preocupara-se sempre em manter a sua direção no interior do país. Forçado a sair para o exílio um ano depois da sua fuga, Cunhal mostrou bem, ao contrário do que os seus adversários sempre dele disseram, ser dirigente de um partido com cabeça própria relativamente a Moscovo, quer quando rejeitou essa espécie de “transição pacífica” que se deduzira para o caso português da política soviética de “coexistência pacífica” à escala internacional, quer na atuação do PCP na Revolução portuguesa. Confundir a radicalidade política do PCP com “ortodoxia pró-soviética”, como sempre por aí se papagueou, é não querer perceber a diferença de fundo entre as políticas seguidas pela direção soviética e a opção de Cunhal, em 1965, pela “revolução democrática e nacional” como “via para o derrubamento da ditadura fascista”. Só um partido comunista com uma identidade própria podia ter sobrevivido, como sobreviveu, à implosão do modelo soviético.
Comemorou-se Cunhal este ano, como vamos ver o PS, e não só, comemorar Soares em 2024. Pode a direita ter o problema de não ter mais ninguém senão Salazar para comemorar – o que (ainda!) não é fácil. Mas era inevitável comemorar Cunhal num momento desgraçado como aquele que vivemos.
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