quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da Silva


Inês Duarte de Freitas (texto) e Nelson Garrido (fotografia)31 de Agosto de 2023

Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da Silva
história da pasta Couto quase se confunde com a de Alberto Gomes da Silva. Tinha apenas 20 anos quando começou a trabalhar na linha de produção da icónica pasta dentífrica e assumiu as rédeas do negócio fundado pelo tio em 1974. Assim foi até à sua morte, em Maio deste ano, quando a mulher Alexandra passou a conduzir os destinos da marca. Como viverá a empresa sem o homem que lhe dedicou a vida? “É um legado para continuar. Já temos o futuro em linha”, responde a nova administradora ao PÚBLICO.
 
O espaço fica escondido num complexo de várias empresas e só damos por ele quando se lê Couto na porta. Contudo, no interior, as fotografias nas paredes e os produtos nas vitrinas denunciam que este é o sítio certo, onde há décadas se produz a pasta dentífrica que, até 2016, se manteve como o único produto da marca. Agora, há sabonetes, cremes hidratantes, produtos de barbear e até um perfume, baptizado de Mimi, como se chamava a mulher do fundador.
 
Em destaque, uma máquina que era utilizada para fazer a laminagem da pasta, dando-lhe uma textura mais homogénea. Visualmente, quase se assemelha a um aparelho para esticar massa. Os instrumentos antigos em ferro deram lugar a grandes tambores que misturam a fórmula quase centenária, e agora os tubos já não são cheios à mão, mas mecanicamente a grande velocidade. Encher a pasta, fechar o tubo e selar a embalagem: repete-se constantemente na linha de produção.

 
Mais do que se destacar pela inovadora fórmula, foram o design e as campanhas publicitárias que tornaram a Couto parte do imaginário português, quase um souvenir a levar de Portugal. Contudo, nem a nostalgia conseguiu impedir que a empresa entrasse em crise. Em 2012, Alberto Gomes da Silva falava dos planos de vender a marca, no máximo até 2017, mas o amor impediu que assim fosse, conta a mulher, Alexandra.
 
Os dois conheceram-se em 2004, quando a gestora foi à Couto para negociar a instalação de um sistema de ar condicionado e "roubou o coração" do empresário. “Desde que entrei aqui, sempre achei que havia muito mais para dar”, recorda. Ao lado do marido, começou uma revolução em 2016, ano em que se casaram, e que havia de salvar o negócio.

Alexandra Gomes da Silva
 
Assente na nostalgia, utilizaram o mesmo design vintage para lançar novos produtos desenvolvidos pela directora técnica. “O meu marido tinha uma visão muito à frente. Custou a primeira vez, mas depois já era ele a escolher a cor dos produtos, e foi sempre com a autorização dele que saía tudo para o mercado”, assegura. O sucesso foi tal que, em 2018, quando a Couto comemorou um século, inauguraram uma loja na Cedofeita, onde tudo tinha começado.

Aos poucos, por motivos de saúde, Alberto Gomes da Silva começou a afastar-se, apesar de se manter a par do que se passava na empresa. “O seu legado continuou. Era uma paixão dele e é uma paixão minha”, garante a administradora, que diz já ter sucessora para o seu cargo, a sua sobrinha. E também para liderar a Fundação Couto, uma instituição de solidariedade social que apoia 600 crianças da região.
 
Continuar depois da morte do empresário, que morreu a 7 de Maio, aos 85 anos, é “complicado”, apesar de ser o único caminho possível. “Tenho 12 pessoas que dependem de mim, mas, dentro de casa, continuo a chorar a perda do meu marido”, lamenta.

 
Alberto Gomes da Silva e Alexandra, em 2018, quando se celebrou o centenário NELSON GARRIDO/ARQUIVO

Internacionalização como futuro

Com o futuro em vista, a Couto continua a crescer. Em média, tem facturado um milhão de euros por ano, sendo que 85% da facturação provém da pasta dentífrica tradicional. “Produzimos 600 a 700 mil bisnagas por ano”, detalha a directora técnica. Contudo, apenas 5% têm por destino a exportação.
 
Isto porque a Couto se debate com a falta de espaço que impossibilita o aumento do volume de produção e, consequentemente, o crescimento das vendas para o estrangeiro. Estava planeada a abertura de uma nova fábrica em 2022, mas a pandemia e as burocracias municipais trocaram-lhes as voltas. “As máquinas novas conseguem trabalhar 24 horas por dia. Podemos alargar a produção, mas não temos onde guardar isso tudo”, queixa-se Alexandra Gomes da Silva.
 
Como tal, essa é a prioridade para os 105 anos da Couto. “Precisamos de um espaço que faça jus ao nome da Couto, com um museu e uma loja dentro da fábrica. É essencial”, declara, sublinhando que a marca não pertence a uma zona industrial, onde será de difícil acesso, mas a uma localização central, facilmente visitável pelos clientes.

Cláudia de Sousa França, directora técnica NELSON GARRIDO
 
Só assim terão resposta para a crescente procura internacional. “Quero crescer. Os coreanos andam atrás de nós”, conta. Para já, as vendas para o estrangeiro são feitas a turistas na loja no Porto, onde estes levam “em quantidade”, garante. “Vemos isso lá fora na Hermès, pessoas a saírem da loja carregadas com sacos. É um dos meus sonhos e a Couto há-de chegar lá. Ou não fosse o nosso saco inspirado nisso”, diz, com humor, apontando para a embalagem da marca, de um laranja vibrante, tal como o da casa 
francesa.
 
Já acompanharam várias gerações de portugueses e, agora, talvez o futuro esteja mesmo na capacidade de levar esse imaginário mais além, a outras paragens. Seja como for, há mais de 90 anos, já dizia o anúncio, que a “Couto evita e trata as doenças da boca” e assim vai continuar, "nas bocas de toda a gente", acredita.


 ÍmpaE 31 de Agosto de Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da SilvA centenária emp 31 de Agosto de 2023

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo

 

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo Os contos populares resistiram ao passar dos séculos.

Há contadores profissionais que não os deixam morrer. São histórias “de liberdade, de revolução, de insubmissão”. Mais “urgentes” do que nunca.

Andreia Friaças (Texto), Maria Abranches (Fotografia) e Carolina Pescada (Vídeo)
18 de Agosto de 2023

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo
“Gostava de começar por contar uma história do princípio do mundo, do princípio antes de haver princípio”, convida Ana Sofia, sentada junto a um piano, numa das salas da Associação Renovar a Mouraria, em Lisboa. Temos casa cheia: as pessoas sentam-se nas cadeiras, ajeitam-se no chão. Os olhos arregalados, à escuta. Todas as atenções estão viradas para Ana. Ouvimos a História de Maria Bailarina, a mulher que trazia consigo o romper da Primavera e lhe nascia uma gana que não se sabe de onde vinha. Só queria dançar; a toda a hora, em todos os lugares. E já se sabe que, quando uma mulher quer muito uma coisa, o mundo estremece de medo.

Traz-nos este conto popular Ana Sofia Paiva, contadora profissional de histórias com tradição oral. Há mais de dez anos que conta romances, contos, cantigas populares pelo país fora e um pouco por todo o mundo. E esta história que ouvimos é mais antiga do que pode parecer — é daquelas que resistem ao tempo, até hoje, na boca de quem as conta.
Os contos populares e histórias tradicionais são um universo profundo: considerados património cultural imaterial, são objecto de investigação há décadas. Em Portugal, circulam mais de 2000 versões de contos, mas estas histórias, que conhecemos em português, saltam fronteiras e adaptam-se a todas as paisagens. Em vários países da Europa, ou mesmo em países como o Nepal ou Irão, estão catalogados milhares de histórias populares que também são contadas em praticamente todas as vilas de Portugal.


Por cá, as histórias tradicionais têm saltado de geração em geração. Foram sendo contadas e cantadas noite fora, nas tabernas ou nos largos, em casa junto à lareira, ou mesmo nos intervalos do trabalho do campo. Os seus contadores são, desde sempre, “gente do povo”, explica Ana Sofia Paiva, de 42 anos de idade. Muitos não sabiam ler nem escrever, mas decoravam as histórias à força de as ouvir — ouviam vez atrás de vez até lhes saberem as palavras, os ritmos, as pausas. E, como o provérbio nos habituou a pensar, quem conta um conto acrescenta um ponto. Ao longo dos anos, estes contos foram sendo moldados a quem os conta e a quem os ouve. Hoje em dia, cada história tem múltiplas versões, dependendo do espaço e do tempo em que é contada.





Cristina Tarquelim entra nas sessões de contos sem papéis, nem textos decorados. A primeira coisa a fazer é “ler o público” e “sentir as orelhas” MARIA ABRANCHES

Longe de Lisboa, também se ouvem contos tradicionais na Biblioteca Municipal de Cuba, no Baixo Alentejo. Desta vez, são os jovens que ocupam os lugares do anfiteatro, enquanto ouvem a história d’A Raposa e o Lobo, animais que mostram que a esperteza e a força nem sempre se conjugam bem.

“Contar histórias não é um trabalho de entreter”, começa por dizer Cristina Tarquelim, contadora profissional de histórias há 30 anos. “É um trabalho de pensar em conjunto. É uma actividade cúmplice. No fundo, estamos a trabalhar a compreensão do mundo”, acrescenta. E quem vê Cristina em cima do palco desta biblioteca não adivinha que ela, neste mundo dos contos, é apenas a ponta de um novelo. “Sou a ponte entre a memória, o antes e o agora, o antes e o amanhã”.


“Eu não sei fazer o meu nome”

Muitas das histórias que Cristina e Ana contam pelo país fora foram ouvidas, pela primeira vez, nesta cozinha. Em Salvada, uma pequena freguesia do concelho de Beja, com pouco mais de mil habitantes, não é difícil encontrar a casa de Mariana Bicho.

Com 85 anos, Mariana nunca soube escrever o seu nome, mas guarda na memória inúmeras orações, canções e contos. É uma antiga contadora de histórias. “Eu não sei ‘fazer’ o meu nome. Mas sempre fui a dona do conto”, graceja Mariana. A sua cozinha típica do Alentejo é conhecida por vários académicos, linguistas e artistas. “Ela tem um orgulho de ser analfabeta e ver os doutores saírem das universidades para virem escutá-la na cozinha dela”, conta Cristina, sentada junto de Mariana.

Contar histórias não para mudar o mundo, mas para que o mundo não nos mude a nós, a nossa natureza. Para que o mundo não mude a nossa humanidade

Estes “doutores”, como apelida Cristina, pertencem ao projecto Lu.gar.Contado, do qual Cristina e Ana fazem parte, mas também outros contadores de histórias, como António Fontinha, precursor do movimento de narração oral do país. O projecto — que pertence ao e-museu MemoriaMedia e conta com a ajuda do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade de Lisboa — fez a recolha, nos últimos dez anos, de histórias e saberes populares junto de antigos contadores de histórias, como Mariana Bicho. No site do projecto, podemos conhecer Maria do Desterro, da Póvoa de Varzim, filha de pescadores, que ouviu muitas histórias em alto-mar; José Manuel Pinto, de Mora, no Alentejo, um pastor apaixonado pela cultura tradicional alentejana que trocava décimas nas esquinas com os amigos; Maria Bernardina Galvão Coelho, também de Mora, que passou a infância a trabalhar na seara do arroz e foi entre afazeres que aprendeu as histórias populares; e Maria Clara, de Idanha-a-Nova, que guardava na sua memória infinitos romance, cantando-os toda a sua vida no campo.

Depois de recolhidas, as histórias são transcritas, contextualizadas e publicadas pela equipa do projecto e, finalmente, servem de chão para contadores de histórias mais novos, como Ana Sofia Paiva, formada em Teatro, e Cristina Tarquelim, em Psicologia. Estes contadores de histórias pegam neste material de forma profissional: ressignificam as narrativas, cruzam-nas com as artes performativas, e levam estas histórias populares a todo o país. “A nós, pega-se-nos tudo. Somos os grandes ladrões que absorvem tudo dos antigos narradores de histórias”, sorri Ana.

Antes de nos confiar algumas destas histórias que atraem tantos ouvidos, Mariana gosta de rebobinar as suas memórias de infância. Criada junto ao Guadiana, nunca pôde ir à escola. Cresceu com histórias, ouvidas nos serões, enquanto fazia malha à luz da candeia. Aos dez anos, começou a trabalhar na monda — e foi nos intervalos da labuta que aprendeu mais orações e histórias, junto das mulheres mais velhas. “As aprendizes não podiam falar, só ouvíamos. Nem sequer tínhamos relógio, quem mandava era o relógio do manajeiro”, recorda Mariana. “Eu estava caladinha, mas ouvia tudo. As que sabiam escrever depois apontavam o que tinham ouvido. Eu não apontava em lado nenhum porque não sabia apontar. Mas aprendi na mesma.”
Prova disso é que Mariana tem cantado “uma vida inteira”, como costuma dizer. E quem se senta ao seu lado sabe como é verdade: em cada reflexão que faz, em cada episódio que recorda, canta sempre, com uma memória imensa, alguma canção ou oração. “É a minha biblioteca”, descreve Cristina Tarquelim, de 60 anos. “Mas tão depressa está a cantar orações como a seguir pica nas [histórias] velhacas”, graceja.

De facto, o tempo congela quando se ouve Mariana: ora nos conta a história de Deolinda, a empregada doméstica que fazia frente ao seu patrão, ora de um pobre que se vinga do rico no dia em que ambos morrem e até a história da filha de um rei que se divertia sozinha. É também nesta cozinha que nos conta o conto O Domingo Ovelha — o mesmo que foi usado por Gil Vicente como mote para a peça Farsa de Inês Pereira e que hoje encontra 39 versões diferentes, espalhando-se por 14 distritos, com especial incidência em Faro, Vila Real e Porto (e ainda tem cerca de 13 versões na Galiza).

Ao longo dos anos, Cristina e Mariana tornaram-se cúmplices. Foram juntas a inúmeras sessões de contos pelo Alentejo e falaram ao telefone praticamente todos os dias durante a pandemia. Em 2014, foi com emoção que Cristina assistiu a Mariana receber a Medalha de Mérito Artístico e Cultural da Câmara de Beja. “Isto dá dignidade a este saber. A entrada destas pessoas no lugar da literatura ajudou muito na valorização destas práticas. Eles também são o nosso património”, defende. Ainda assim, Mariana guarda um sonho longe dos contos, se tivesse aprendido a escrever. “Acho que dava uma boa professora de Matemática”, sorri, não fosse ela a melhor a contar os quilos de azeitona que se apanhava num dia de trabalho.

Quantos peixes há no mar


Os contos populares existem desde o “alvorecer da humanidade”, começa por dizer José Barbieri, director da Memória Imaterial, organização não-governamental acreditada pela UNESCO. Há descrições do acto de contar histórias oralmente em “papiros egípcios, em tratados gregos e em textos bíblicos”, completa Luís Correia Carmelo, investigador no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade de Lisboa.

Mas perguntar quantos contos populares existem é como perguntar “quantos peixes há no mar”, graceja Barbieri. O Catálogo de Contos Tradicionais Portugueses, publicado em 2015, de Isabel Cardigos e Paulo Jorge Correia, enumera 2399 versões de contos em Portugal e países lusófonos — e, desde então, já foram escritas novas, não sendo possível acompanhar em tempo real este mundo de histórias em ebulição.

Segundo a classificação tipológica internacional, os contos dividem-se por várias secções — entre as quais os contos realistas, formulísticos ou jocosos — e dentro destas gavetas cabem todas as histórias, das mais corriqueiras às mais profundas, sempre carregadas de ensinamentos. “Em Portugal, não há histórias de fadas, dragões nem ogres”, alerta Luís Correia Carmelo. “São histórias que ensinam que o diabo está sempre à espreita, que o mais pequeno pode sair vitorioso, que a morte chega para todos e que o engenho é capaz de superar todos os obstáculos”, exemplifica.

Os contos populares percorreram o mundo — através de correntes de migração e de trocas culturais que aconteceram ao longo dos séculos — e as histórias que conhecemos em português também são contadas em línguas como castelhano, farsi, turco ou maconde. O resultado? Cada história conta com infinitas versões e desfechos, dependendo do lugar e do tempo em que é contada. Por exemplo, a história da Raposa e o Lobo tem recenseadas 123 versões só em Portugal —mas também está presente na tradição oral da Europa e África, onde existem pelo menos 43 versões. Já o conto Velha da cabaça, bastante conhecido em Portugal, não tem expressão no resto da Europa, mas existem várias versões no Irão, Paquistão e no Nepal.


Clara Alves lê Os músicos de Zebral na colectânea Contos para os Nossos Filhos (1882), de Maria Amália Vaz de Carvalho MARIA ABRANCHES

Não são apenas contos. Muitas histórias pertencem ao romanceiro, um género narrativo com origens em Castela, na Idade Média. Este género literário, com mais de 600 anos, é composto por versos longos e quase sempre cantados. Um dos romances mais conhecidos é A Morte de D. Juan, que conta a morte do príncipe herdeiro de Castela, em 1497. “Pensamos que passou de boca em boca durante muito tempo, dado que só temos versões transcritas em Portugal cerca de 1850 por Almeida Garrett e em Espanha apenas em 1900 por Ramón Menéndez Pidal e María Goyri”, explica José Barbieri.

E ainda existem as histórias de cordel — que vinham escritas em pequenas folhas, atadas com um cordel, e eram vendidas nas feiras e mercados. Partilhavam notícias, replicavam e adaptavam romances e peças de teatro quase sempre em verso. “Quem as comprava nem sempre sabia ler, mas levava-as consigo e pedia a alguém que as lesse até estarem decoradas”, diz Barbieri. Depois, contavam estas histórias por onde passavam, fazendo com que muitas ainda hoje se oiçam pelas vilas do país.

Sentir as orelhas e congelar o tempo

Além de Mariana Bicho, há inúmeros contadores de histórias país fora. Ana Sofia recorda com carinho Maria dos Anjos, a contadora de histórias da aldeia de Campo Benfeito, na serra de Montemuro. Durante um ano, visitou-a todos os dias para ouvir histórias. “Foi um namoro. Primeiro, foi contando a história da sua vida vezes sem conta, para alargar a minha capacidade de ouvir. Era um pouco a ideia de ‘eu sei que histórias queres ouvir, mas não te vou já dar; primeiro, tenho de saber que tu és capaz de ouvir’”, recorda Ana. A relação com o tempo e a intimidade são importantes para recolher histórias tradicionais. “Quando nos contam estas histórias, é como se nos dissessem: ‘Isto é um tesouro para mim e é aquilo que te posso deixar’.”
Também não esquece Mariana Macedo, de Alijó, que criava as suas próprias versões dos contos. Na história de Maria Bailarina, esta mulher morre castigada pelo desejo de dançar. Mas Mariana Macedo salva a personagem, juntando a esta história um outro romance, a Gaitinha Milagrosa — eternizada na canção O homem da gaita de Zeca Afonso. Assim, no local onde a mulher é enterrada, nasceu um canavial — que deu origem às gaitinhas milagrosas que fazem o mundo dançar. “Desta forma, esta mulher não só não morre nesta história como não morre nunca, enquanto houver quem saiba ver o poder de uma flauta que faça a terra tremer e tudo dançar", reforça Ana, que continua a contar este conto, seguindo a versão de Mariana Macedo.

Ana admira estas contadoras. “Apesar de todas as condições vividas por maridos, pela vida dura… são mulheres com uma capacidade de se libertarem através destas histórias e daquilo que nos ensinam com elas”, vinca Ana. Aqui há histórias sobre os calores que sobem, os sangues que descem, sobre a liberdade e a resistência. “Elas fabricavam estes espaços de subversão que eram as histórias e que se espalhavam como ervas daninhas. Quando nos contam estes romances é como se estivessem a falar para nós no futuro. Estão-nos a dizer: ‘Façam-te aquilo que te fizerem, aconteça o que acontecer, nunca percas isto de vista’”, acrescenta.

Apesar da relação com estes antigos contadores de histórias, os contos chegaram a Ana e a Cristina dentro das suas próprias casas. Na infância, os avós de Cristina contavam histórias à mesa e os de Ana enquanto descascavam favas ou mesmo quando tentavam explicar por que é que as coisas são como são. “Tudo isto fica em nós, é o que nos nutre e transforma. Eu tenho uma grande riqueza de histórias na minha infância, que depois sai na minha forma de contar e no meu imaginário”, diz Ana.

Com as histórias no imaginário, seguiram caminhos diferentes. Ana Sofia, que estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, faz teatro desde os 12 anos e Cristina, licenciada em Psicologia, trabalhou durante 30 anos na Biblioteca Municipal de Beja, junto dos livros e da comunidade. Só despertaram para o mundo dos contos quando perceberam que as histórias que os avós lhes contavam afinal pertenciam a um vasto património de tradição oral.

Agora, o seu ganha-pão são as histórias. Mas, para encarar o público praticamente todos os dias, é preciso preparação. Todos os dias lêem histórias e preparam-nas. “O trabalho que faço é de estudar histórias, de me interessar pelas histórias e de as manter vivas dentro de mim”, diz Ana, que teve uma bolsa, durante três anos, do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição para mergulhar neste mundo.

Ana e Cristina entram nas sessões de contos sem papéis, nem textos decorados. A primeira coisa a fazer é “ler o público” e “sentir as orelhas”, diz Cristina. Só no momento decidem que histórias contar e, tendo presente as várias variações de cada história, por que caminhos a conduzem. Finalmente, escolhido o reportório, a viagem pelo imaginário começa. “E é aí que o tempo congela”, sorri Ana, que muitas vezes conta e canta histórias com ajuda de um instrumento musical indiano, a caixa sruti.

Mas quantas histórias cabem na memória? É uma pergunta difícil, admitem. Ana e Cristina apontam entre as 40 e as 50. Mas o reportório está em permanente dança; umas histórias saem, outras entram. “Nunca é certo”, sorriem.



Mariana guarda um sonho longe dos contos, se tivesse aprendido a escrever. “Acho que dava uma boa professora de Matemática” MARIA ABRANCHES

Contar histórias para ser amado

Desde 2021 que o projecto Lu.gar.Contado percorre o país com uma exposição sobre os antigos contadores de histórias, acompanhada por sessões de contos abertos ao público. Já a Contaria, a sessão de contos da Associação Renovar a Mouraria, que existe desde 2016, está praticamente parada desde a pandemia, apenas realizando sessões esporádicas. Mas a vontade é de voltar a ter uma programação mensal em breve.

Por todo o país, também existem sessões de contos em bibliotecas, espaços culturais, escolas e até vários festivais, como o Passa a Palavra, em Oeiras, Escutadores, em Lisboa, Encontro do Conto, no Porto, a Ouvidoria, em Braga, Maratona da Leitura, na Sertã, Caminhos de Leitura, em Pombal, Contanário, em Évora, ou Palavras Andarilhas, em Beja.

“O contador de histórias é um saltimbanco, de terra em terra, a contar histórias onde o chamam”, diz Ana, que também já contou histórias um pouco por toda a Europa, América do Sul e até Ásia. Em 2003, no Irão, recebeu o prémio de Melhor Narradora Internacional e foi a única mulher a conseguir cantar em palco — depois de muita resistência, uma vez que era proibido as mulheres cantarem neste festival. “O mais impactante foi perceber que lá se contavam as mesmas histórias do que cá.”

Os contos têm precisamente esta função: aproximar-nos. “Onde quer que seja, as histórias respondem às mesmas inquietações. Aproximam-nos do outro, seja quem for”, explica o investigador Luís Correia Carmelo. Já para Cristina, contar histórias é uma actividade capaz de reparar ausências. “Resolveram um problema de ausência que eu tinha na minha vida. Nós contamos para ser amados. A palavra dá esse poder, de ‘sermos gostados’ pelo outro”, partilha.

Da mesma forma, as histórias são capazes de reparar ausências na educação — e podem ser uma ferramenta para se ganhar voz. Cristina dá o exemplo de um homem que, depois de participar numa sessões de contos, começou a escrever os seus próprios poemas — e, à falta de folhas, começou a escrever em guardanapos. “Ele tinha um saquinho de pão cheio de guardanapos de papel dos textos que ele escrevia”, recorda Cristina. “Este homem foi electricista uma vida toda, nunca pendeu para a escrita. As histórias que nós contamos acordaram esta pessoa para uma consciência de que também tem voz.”

Liberdade, revolução, insubmissão

Estes contos e histórias servem aos adultos e às crianças. Podem fazer rir, educar ou pôr a nu as feridas mais profundas. Mas também “alargam o imaginário, abrem caminhos e ajudam a fazer perguntas”, acrescenta Ana. E para os contadores de histórias, há cada vez mais perguntas a ser feitas. “Como é que pegamos nos contos e os tornamos contemporâneos?”, questiona Cristina. “O movimento de narração oral não é revivalista. As histórias não são do passado. São para construir o futuro, e sobretudo para pensar o presente”, completa Ana. “As histórias sempre serviram para fintarmos a morte, fintarmos o tempo, aproveitarmos as dificuldades. Sempre foram um instrumento de liberdade, de revolução, de insubmissão.”

Para Ana, contar histórias é “mais urgente” do que nunca. “Precisamos de pensar com que histórias estamos munidos para abordar e combater os problemas de hoje, as atrocidades que estão a acontecer ao nosso lado”, reitera, referindo-se à luta pela dignidade humana, as questões ambientais, a igualdade, a liberdade. “As histórias não irão mudar o mundo. Mas são uma forma de resistir. Contar histórias não para mudar o mundo, mas para que o mundo não nos mude a nós, a nossa natureza. Para que o mundo não mude a nossa humanidade”, acrescenta Cristina, de olhos marejados.

Mesmo com a ajuda da bengala, Mariana Bicho já não consegue chegar a todos os largos do Alentejo para contar histórias — mas o desejo de ouvir e contar continua a nascer noutras geografias e entre os mais novos. Clara Alves, de 25 anos, cresceu entre serões de histórias na sua casa e desde então que estes contos a acompanham como mapas de sobrevivência ao mundo. Depois de muito ouvir, agora, pela primeira vez, está a estudar Contação de Histórias e Teatro.

A primeira história que está a trabalhar é o conto da Ti Miséria, a mulher que prende a morte no cimo de uma árvore e fica com o mundo na palma da mão. Clara já afinou esta história vez atrás de vez diante da família, dos colegas e amigos. Agora, é altura de abrir novos horizontes. “Vou começar a contar histórias na minha escola primária”, diz a jovem, com um sorriso. A pedra está lançada e não se sabe onde e como irá cair. Mas enquanto houver ouvidos que ouçam, as histórias continuam.