Passas – uvas grandes secas, sem grainha –, sultanas – passas com grainha – e corintos – passas sem grainha – são expressão de um mesmo saber, que é conservar a doçura, sabor e energia que só a uva permite.
Nos últimos 12 segundos do ano, deglutimos maquinalmente 12 passas de uva, uma por segundo. Nesses 12 derradeiros momentos, dizemos adeus ao ano que passou e secretamente fazemos os desejos para o que começa. Esta sequência simples na aparência tem contudo mais que se lhe diga.Ensaio de Fernando Melo*
Os filmes épicos sobre o império romano mostram todos eles nalgum momento as copiosas festas a que se entregavam os poderosos depois de sofisticadas refeições. Nunc est bibendum – agora vamos beber – era a ordem que troava e separava as duas etapas. Acontece porém que o bom vinho, aquele que os senhores bebiam, não era tinto. Era branco ou quando muito tinha leves matizes libertados pelas películas das uvas pisadas, cuja polpa era branca, como acontece com a maioria das uvas; a matéria corante está sobretudo na película dos bagos. O vinho tinto, tal como o conhecemos hoje, ficava para os criados, era considerado demasiado forte para os senhores. Sempre que um qualquer filme ou resenha histórica nos mostra vinho tinto nas grandes festas, está a cometer um erro de palmatória, obviamente por imperativos de eficácia da mensagem, ninguém acreditaria que era vinho se não fosse tinto. Depois de libertar o sumo, as uvas esmagadas eram levadas a um longo e paciente processo de secagem, transmitido pelos fenícios e egípcios, e que aplicavam a figos, tâmaras e uvas.
OS ROMANOS SÃO OS GRANDES RESPONSÁVEIS POR QUASE TUDO O QUE SE SISTEMATIZOU NA COZINHA, VINHO E ALIMENTAÇÃO, COM EFEITOS QUE CHEGAM AOS DIAS DE HOJE.
Passas – uvas grandes secas, sem grainha -, sultanas – passas com grainha – e corintos – passas sem grainha – são expressão de um mesmo saber, que é conservar a doçura, sabor e energia que só a uva permite. Os romanos são os grandes responsáveis por quase tudo o que se sistematizou na cozinha, vinho e alimentação, com efeitos que chegam aos dias de hoje.
Na Roma antiga, antes do nascimento de Jesus Cristo, os romanos tinham já um evento importante no solstício de inverno – que no hemisfério norte acontece entre 21 e 25 de dezembro -, o Natalis Solis Invicti. Tratava-se de um rito de passagem que celebrava o Sol como invencível, fazendo-se novo no solstício. Além disso, terminadas que estavam as vindimas, o momento era o ideal para produzir as passas e guardá-las nas despensas, também esta invenção romana, para consumo posterior. Há que ter em conta que naquele tempo já havia mel mas não havia açúcar, pelo que as passas de uva serviam para adoçar a boca e era a partir delas que se produzia alguma doçaria e padaria, mas não muita; o mel era bem mais importante nesse aspeto.
A premência das 12 passas na passagem do ano transformou-se em tradição, primeiro pelo bem que fazia, depois pela adoção popular e finalmente por se tratar de uma forma alegre dar as boas-vindas ao novo ano. A fixação da data canónica do nascimento de Cristo acontece séculos depois de ele realmente se dar e vem ocupar o território simbólico que antigamente era estritamente pagão. O vinho foi ele próprio transformado em sangue de Cristo por efeito da eucaristia entretanto instituída. O Vin Santo, que os italianos continuam a produzir para consumo laico, é feito a partir de passas de uva e eflui claramente dos tempos idos, em que os romanos celebravam Baco e os gregos Dioniso, curiosamente nascidos de uma virgem. É atualmente elemento sacrificial no rito eucarístico da Igreja Católica, mas apenas os sacerdotes o bebem, quando muito dão a hóstia a molhar em vinho – branco – antes de o dar a cada fiel na comunhão. O vinho é raro, caro e simbólico e na transfiguração transforma-se para os crentes no próprio sangue de Cristo. A mulher hoje está prestes a ter acesso ao sacerdócio, mas ainda não.
No séc. III a.C, mesmo no quadro das liberdades emancipadoras e vanguardistas do império romano, o vinum – vinho tal como o conhecemos hoje – estava vedado às mulheres e, se fossem apanhadas a prevaricar, era imediato o divórcio. O que podiam beber? O dulcia, ou passum, que era vinho feito a partir de passas, mais rico em açúcares mas mais parco em álcool.
Arquéstrato (séc. IV a.C.) primeiro, Apício (séc. II d.C.) desenvolveram receituário notável com frutos em passa, incluindo passas de uva em pudins, bolos e compotas que chegou quase intacto aos nossos dias. O tempo e a sageza vieram acrescentar as especiarias ao cardápio mas as passas permanecem no topo das frugalidades saudáveis e sápidas, nem que seja num arroz simples, que nós gostamos de levar à mesa nos dias de festa.
Nós, portugueses, passamos de vez em quando as passas do Algarve, sem pensarmos sequer que no lamento estamos a recordar a brutal seca de 1875, em que nas terras mais a sul do território luso a fome e a míngua se instalaram como nunca, forçando ao consumo de pequenas fontes de energia para sobreviver. Isso é que é sofrer, quando não há como alimentar filhos e velhos e não há nada para caçar nem colher. Felizmente, hoje é uma memória histórica apenas. E, felizmente, houve sempre passas.
Que nada nos faça deter, por isso, de colocar 12 passas na mão e com alegria, ao pé-coxinho, em cima de uma cadeira ou seguindo qualquer outro costume, nos derradeiros segundos do ano aspirar ao melhor e desejar o melhor aos que amamos. Bom ano!
* É crítico de vinhos e de comida na revista Evasões. Engenheiro físico pelo IST, dedica-se há 30 anos ao estudo das raízes e dos patrimónios gastronómicos do país, percorrendo ao pormenor o território, nas suas mesas, vinhas e adegas. Dá formação em Enogastronomia nas escolas de hotelaria nacionais.
Nos últimos 12 segundos do ano, deglutimos maquinalmente 12 passas de uva, uma por segundo. Nesses 12 derradeiros momentos, dizemos adeus ao ano que passou e secretamente fazemos os desejos para o que começa. Esta sequência simples na aparência tem contudo mais que se lhe diga.Ensaio de Fernando Melo*
Os filmes épicos sobre o império romano mostram todos eles nalgum momento as copiosas festas a que se entregavam os poderosos depois de sofisticadas refeições. Nunc est bibendum – agora vamos beber – era a ordem que troava e separava as duas etapas. Acontece porém que o bom vinho, aquele que os senhores bebiam, não era tinto. Era branco ou quando muito tinha leves matizes libertados pelas películas das uvas pisadas, cuja polpa era branca, como acontece com a maioria das uvas; a matéria corante está sobretudo na película dos bagos. O vinho tinto, tal como o conhecemos hoje, ficava para os criados, era considerado demasiado forte para os senhores. Sempre que um qualquer filme ou resenha histórica nos mostra vinho tinto nas grandes festas, está a cometer um erro de palmatória, obviamente por imperativos de eficácia da mensagem, ninguém acreditaria que era vinho se não fosse tinto. Depois de libertar o sumo, as uvas esmagadas eram levadas a um longo e paciente processo de secagem, transmitido pelos fenícios e egípcios, e que aplicavam a figos, tâmaras e uvas.
OS ROMANOS SÃO OS GRANDES RESPONSÁVEIS POR QUASE TUDO O QUE SE SISTEMATIZOU NA COZINHA, VINHO E ALIMENTAÇÃO, COM EFEITOS QUE CHEGAM AOS DIAS DE HOJE.
Passas – uvas grandes secas, sem grainha -, sultanas – passas com grainha – e corintos – passas sem grainha – são expressão de um mesmo saber, que é conservar a doçura, sabor e energia que só a uva permite. Os romanos são os grandes responsáveis por quase tudo o que se sistematizou na cozinha, vinho e alimentação, com efeitos que chegam aos dias de hoje.
Na Roma antiga, antes do nascimento de Jesus Cristo, os romanos tinham já um evento importante no solstício de inverno – que no hemisfério norte acontece entre 21 e 25 de dezembro -, o Natalis Solis Invicti. Tratava-se de um rito de passagem que celebrava o Sol como invencível, fazendo-se novo no solstício. Além disso, terminadas que estavam as vindimas, o momento era o ideal para produzir as passas e guardá-las nas despensas, também esta invenção romana, para consumo posterior. Há que ter em conta que naquele tempo já havia mel mas não havia açúcar, pelo que as passas de uva serviam para adoçar a boca e era a partir delas que se produzia alguma doçaria e padaria, mas não muita; o mel era bem mais importante nesse aspeto.
A premência das 12 passas na passagem do ano transformou-se em tradição, primeiro pelo bem que fazia, depois pela adoção popular e finalmente por se tratar de uma forma alegre dar as boas-vindas ao novo ano. A fixação da data canónica do nascimento de Cristo acontece séculos depois de ele realmente se dar e vem ocupar o território simbólico que antigamente era estritamente pagão. O vinho foi ele próprio transformado em sangue de Cristo por efeito da eucaristia entretanto instituída. O Vin Santo, que os italianos continuam a produzir para consumo laico, é feito a partir de passas de uva e eflui claramente dos tempos idos, em que os romanos celebravam Baco e os gregos Dioniso, curiosamente nascidos de uma virgem. É atualmente elemento sacrificial no rito eucarístico da Igreja Católica, mas apenas os sacerdotes o bebem, quando muito dão a hóstia a molhar em vinho – branco – antes de o dar a cada fiel na comunhão. O vinho é raro, caro e simbólico e na transfiguração transforma-se para os crentes no próprio sangue de Cristo. A mulher hoje está prestes a ter acesso ao sacerdócio, mas ainda não.
No séc. III a.C, mesmo no quadro das liberdades emancipadoras e vanguardistas do império romano, o vinum – vinho tal como o conhecemos hoje – estava vedado às mulheres e, se fossem apanhadas a prevaricar, era imediato o divórcio. O que podiam beber? O dulcia, ou passum, que era vinho feito a partir de passas, mais rico em açúcares mas mais parco em álcool.
Arquéstrato (séc. IV a.C.) primeiro, Apício (séc. II d.C.) desenvolveram receituário notável com frutos em passa, incluindo passas de uva em pudins, bolos e compotas que chegou quase intacto aos nossos dias. O tempo e a sageza vieram acrescentar as especiarias ao cardápio mas as passas permanecem no topo das frugalidades saudáveis e sápidas, nem que seja num arroz simples, que nós gostamos de levar à mesa nos dias de festa.
Nós, portugueses, passamos de vez em quando as passas do Algarve, sem pensarmos sequer que no lamento estamos a recordar a brutal seca de 1875, em que nas terras mais a sul do território luso a fome e a míngua se instalaram como nunca, forçando ao consumo de pequenas fontes de energia para sobreviver. Isso é que é sofrer, quando não há como alimentar filhos e velhos e não há nada para caçar nem colher. Felizmente, hoje é uma memória histórica apenas. E, felizmente, houve sempre passas.
Que nada nos faça deter, por isso, de colocar 12 passas na mão e com alegria, ao pé-coxinho, em cima de uma cadeira ou seguindo qualquer outro costume, nos derradeiros segundos do ano aspirar ao melhor e desejar o melhor aos que amamos. Bom ano!
* É crítico de vinhos e de comida na revista Evasões. Engenheiro físico pelo IST, dedica-se há 30 anos ao estudo das raízes e dos patrimónios gastronómicos do país, percorrendo ao pormenor o território, nas suas mesas, vinhas e adegas. Dá formação em Enogastronomia nas escolas de hotelaria nacionais.
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