terça-feira, 19 de junho de 2018

Aquele golo

O livre de Cristiano Ronaldo foi um jogo à parte. Foi um livre como música. Tocada por Miles Davis. Ou um gatafunho de Picasso a completar a única pomba do mundo.

MIGUEL ESTEVES CARDOSO 16 de Junho de 2018


Foi estranho o que aconteceu ao tempo durante o livre de Cristiano Ronaldo. Parou. Mas abriu só o suficiente para entrar a bola na baliza.

Foi como observar um pensamento ou um sonho de um rapaz pequeno. Estava lá a eternidade. Estava lá a ilha da Madeira. O guarda-redes ficou preso à trajectória. Todo o mundo parou. Só a bola foi autorizada a mexer-se.

Visto em directo, o golo de Cristiano Ronaldo parecia já uma repetição, em câmara lenta, de um livre muito antigo que se estuda nas universidades muito lá para o futuro, quando já estivermos todos mortos.

A bola seguiu o caminho desejado em todos os nossos inconscientes, curvando como a linha feita por um dedo a escrever o nome num vidro embaciado.

O golo interrompeu o jogo que era um vaivém de esforços e sortes e vinganças. Disse que estava farto de pressas e de incertezas e de medos. Fez com que um empate soubesse a derrota, fez com que um empate soubesse a vitória.

O livre de Cristiano Ronaldo foi um jogo à parte. Foi jogado contra a ideia que contra a Espanha ele não marcava golos. Foi jogado contra a ideia que ele já não era quem tinha sido. Foi jogado contra a noção que à Espanha ninguém marca três golos.

Foi um livre como música. Tocada por Miles Davis. Ou um gatafunho de Picasso a completar a única pomba do mundo. Foi um golo para espantar toda a gente menos o próprio marcador. Por uma vez a coisa correu como ele quis: a vontade e a realidade desistiram de andar à pancada uma com a outra. Assim se abriu uma brecha no tempo.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Flechas & arqueiros

Manuel Falcão
08 de Junho de 2018

Sente-se no ar um ligeiro odor de fim de festa. António Costa, agora escudado na possibilidade de tomar o pequeno-almoço com Rui Rio com maior frequência, começou a dar negas aos seus parceiros da geringonça. O primeiro-ministro guia o Governo como se estivesse numa pista de ensaios de automóveis a testar os travões. Imagino-o a sorrir quando recebeu a notícia de que Rui Rio tinha retirado as setas do logótipo do PSD, pensando, com os seus botões, que já passou o perigo de uma batalha com arco e flecha lançada pelo líder da oposição. Como se viu nesta semana, com o porta-voz do PCP para o ensino a clamar por auxílio de outros sectores profissionais na luta dos professores contra o Governo, a discussão sobre o próximo Orçamento do Estado para 2019 promete episódios picantes. Há uma clara marca partidária no sector escolhido para radicalizar a luta contra o Governo. O PCP decidiu voltar a posicionar-se, farto de estar nas trincheiras atrás do Bloco de Esquerda. O problema é que a pessoa que escolheu para dar cabo da vida aos alunos neste fim de ano escolar é alguém que há muito tempo não dá aulas. Chamar-lhe professor é um problema de expressão. Face à ocorrência, até agora, o Governo tem mostrado vontade de se distanciar do senhor Nogueira. Estamos politicamente na fase da dança e contradança. Com o ministro da Educação a nadar em seco.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Devolver os "fantasmas" às cidades

Paulo Lourenço

07 06 às 11:45

vila Ana e Vila Ventura, dois palacetes abandonados na Estrada de Benfica.

Edifícios e terrenos abandonados passam muitas vezes desapercebidos aos transeuntes, mas podem revelar histórias e pessoas que marcaram a vida nas cidades. Um grupo de investigadores está a estudar esta realidade

As cidades estão cheias de locais abandonados, desde velhos edifícios a grandes lotes de terreno. Em muitos casos, as populações habituaram-se de tal forma a conviver visualmente com estes exemplos, que, na rotina do dia a dia, já ninguém repara neles. Alguns são aproveitados para fins menos lícitos, mas há também quem os utilize para expressar formas de arte, ou para diversão radical. Em comum, todos estes locais "fantasmas" são marcados por histórias da própria cidade e das gerações que a habitaram.

Só em Lisboa, há 2172 espaços em ruínas e 771 terrenos sem utilização. Os números são avançados pelo projeto Novoid, que está a ser desenvolvido por uma equipa de geógrafos, arquitetos e arquitetos paisagistas da Universidade de Lisboa e da Universidade do Minho, e é financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia. "Uma das coisas que mais me surpreenderam foi a invisibilidade dos espaços abandonados. O olho humano habitua-se a estes e, às tantas, não tem consciência da existência dos mesmos", refere ao JN Eduardo Brito-Henriques, principal investigador e coordenador do projeto.

Na impossibilidade de analisar todo o território nacional, o Novoid escolheu quatro cidades, duas no Norte (Guimarães e Vizela) e duas mais a sul (Lisboa e Barreiro). No critério de seleção o facto de todas terem perdido população no período entre os últimos dois censos nacionais (2001-2011). Essencialmente, o estudo aborda o modelo de desenvolvimento urbano seguido nas últimas décadas em Portugal, que conduziu a um crescimento descontínuo das cidades que deixou muitos terrenos vagos no seu interior. Por outro lado, conclui que novas formas de ruínas vieram juntar-se às mais tradicionais, tornando-se parte da paisagem urbana: fábricas abandonadas, quartéis desmantelados, cinemas encerrados, centros comerciais "mortos", empreendimentos ou imobiliários não terminados são alguns dos exemplos inventariados.

Para Eduardo Brito-Henriques, da análise destes espaços resulta que "há cidades escondidas dentro da própria cidade". Mais, o geógrafo considera que "há cidades esquecidas" nos territórios urbanos. Concretizando, revela que, no desenvolvimento do projeto, foi feito o exercício de estar numa rua a observar a movimentação dos transeuntes perante estes espaços abandonados. "As pessoas que passam não olham sequer para um edifício em ruínas. Porque se não há uma loja, ou não há gente a entrar e a sair, aquele espaço torna-se oculto", observa.

No entanto, os investigadores encararam uma realidade totalmente diferente quando abordam a vizinhança. "Estes espaços estão carregados de memórias", assegura o coordenador do Novoid. "Quando interpeladas. as pessoas desatam lembranças do tipo isto agora está assim, mas quando eu era miúdo servia para isto ou para aquilo, viviam cá estas pessoas. Ou seja, todas as memórias começam a voltar ao de cimo" justifica. Encontrar utilizações para estes espaços desocupados é assim um dos grandes objetivos dos investigadores. No entanto, como sublinha Eduardo Brito-Henriques, estes locais, mesmo abandonados, "são frequentados por humanos". Edifícios devolutos são muitas vezes associados à marginalidade, como consumo e tráfico de droga. Mas o investigador e coordenador do projeto sublinha que os mesmos "não têm de ser necessariamente associados à delinquência".

"Há quem faça corridas de drones"

E revela algumas das utilizações que acabam por surpreender. "Há pessoas que não têm casa e os utilizam como abrigo, mas há também quem os procure para atividades artísticas, como grafítis, exploração urbana (tirar fotografias e publicar nas redes sociais), ou outras mais radicais, como parkour, corrida de drones ou mesmo paintball", revela. Ao estudar todas estas realidades, o objetivo do Novoid é procurar soluções para devolver estes espaços às cidades, enquanto não há uma utilização final. Eduardo Brito-Henriques explica que todas as soluções previstas têm de obedecer a critérios. "Intervenções de baixo custo, que tenham um caráter efémero e sejam eficientes do ponto de vista ambiental", elenca.

Para o geógrafo, do ponto de vista do planeamento urbano, o grande desafio é precisamente pensar em arquiteturas efémeras e nos usos temporários para a cidade. "Normalmente, o planeamento urbanístico não pensa nisto. Preocupa-se em pensar em coisas que hão de ficar. Mas a cidade é transformação, é dinamismo e é mudança", justifica.


"Guimarães: jovens em risco na antiga cutelaria"

Antiga Fabrica Belo Inox.

Em Sande São Clemente, Guimarães, uma antiga fábrica de talheres é o local preferido para jovens das escolas se juntarem, ignorando os riscos para a sua segurança. "Eles vêm quase todos os dias para fumar cigarros porque já os apanhei aqui e expulsei-os", refere uma vizinha. Aquele espaço já teve dois incêndios nos últimos dois anos. Não tem portas, pelo que qualquer pessoa consegue entrar. No interior há colchões, seringas, vidros e a robustez das paredes permanece duvidosa. "Não se veem toxicodependentes, mas é um perigo para os miúdos", acrescenta a vizinha, que assegura já ter alertado as autoridades para o problema. Apesar de abandonado, é um dos símbolos da indústria de cutelaria do séc. XX.

"Vizela: castelo é símbolo da luta pelo concelho"

Castelo de Vizela

É um símbolo emblemático do concelho de Vizela pois resulta de uma luta de Armindo Faria, político e médico, pela autonomia da sua terra natal. Atualmente, o interior do "castelo" encontra-se degradado e em ruínas. Este imponente edifício conhecido como "castelo", de estilo neogótico, foi mandado construir no início do século XX por Francisco de Freitas Ribeiro de Faria com o objetivo de acolher os Paços do Concelho. O "castelo" esteve quase sempre nas mãos de privados. Primeiro foi um cinema, depois o Externato de Vizela e, por fim, foi casa de habitação social. Recentemente foi adquirido pela Câmara de Vizela para ser a biblioteca municipal, um auditório e um centro museológico.

"Lisboa: vilas do século XIX agonizam em Benfica"

Vila Ana e Vila Ventura, dois palacetes abandonados na Estrada de Benfica

Vila Ana e Vila Ventura, dois palacetes abandonados na Estrada de Benfica

Duas vilas centenárias, mandadas construir pela herdeira de um emigrante no Recife, Brasil, marcam a paisagem do troço final da Estrada de Benfica, já no limite da capital. Da Villa Ana (1890), e da Villa Ventura (1910) restam ruínas e vegetação selvagem. Um contraste gritante com um passado de esplendor da sociedade portuguesa da primeira metade do século XX. Na Villa Ana chegou a viver, por exemplo, António de Spínola, primeiro presidente da República após o 25 de Abril, ou o escritor Luiz Pacheco. Já na Villa Ventura, morou a escritora Maria Lamas. Este conjunto arquitetónico é talvez o último testemunho que resta numa zona da cidade toda ela já tomada por prédios de razoável dimensão.

"Barreiro: o legado que ficou do império da CUF"

Parque industrial da Quimigal , Baía do Tejo

No Barreiro, um terço da área urbana é ocupada por terrenos desocupados. A raiz histórica do fenómeno está inteiramente concentrada na herança industrial daquela cidade da margem sul do Tejo, onde no século passado funcionou uma das maiores fábricas de Portugal: a Companhia União Fabril (CUF). Nascida nos finais do século XIX, rapidamente alargou a sua produção a indústrias tão diferentes como produtos químicos, o tabaco ou a construção naval. O modelo económico de grande concentração industrial entra em declínio na década de 70, o que acaba por acentuar-se fortemente após o 25 de Abril, com a nacionalização. Com o desmantelamento do complexo, restam até hoje terrenos e edifícios sem uso.

"Terrenos no Centro Histórico do Porto vazios há décadas"

Rubim Silva, morador na Rua dos Burgães, em Cedofeita

Em pleno centro do Porto, os muros de cimento tapam aquilo que parece escapar ao olhar da maioria das pessoas. Pelas ruas da Invicta, muitos são os portões que escondem enormes terrenos abandonados. E muitas são, também, as histórias que quem lá morou durante toda a vida tem para contar. No coração de Cedofeita, a saída dos moradores, "que foram sendo realojados por falta de condições, fez com que as casas e os terrenos fossem ficando cada vez mais vazios". A observação é de António Fonseca, presidente da Junta de Freguesia do Centro Histórico do Porto, e faz referência a espaços de "mais de 1000 metros quadrados" que estão, "há décadas, sem ninguém".

No quarteirão da Rua dos Burgães, em Cedofeita, os poucos moradores que resistiram sabem de cor as histórias escondidas por detrás dos blocos de cimento. "Ali, chegou a ser uma grande fábrica", referiu Rubim Silva, 76 anos, apontando para um grande terreno e recordando o tempo em que o quarteirão "tinha muita gente e muita vida". Alguns metros mais abaixo, o caso repete--se, num outro terreno abandonado. E o morador depressa partilha "as histórias" que conhece sobre aquela que foi, em tempos, "uma grande quinta". Com o passar dos anos, "os campos deixaram de ser cultivados" e seguiu-se o abandono. "Há mais de três décadas, "comentava-se que ia ser um polo judicial, mas nunca chegou a ser construído qualquer edifício", disse o morador, acrescentando que "o terreno é atravessado por uma mina e há quem diga que esse poderá ser o motivo" que impede a construção. Para o presidente da Junta, "o Porto tem, atualmente, demasiadas ilhas, casas e terrenos ao abandono". Espaços que, em pleno Centro Histórico, têm "um grande potencial".

terça-feira, 5 de junho de 2018

Ganha a multidão

Ainda não assistimos à ascensão do populismo na política portuguesa. Mas é uma questão de tempo para que tal aconteça.

13 de Março de 2018
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TIAGO MOREIRA DE SÁ

No magnífico filme de Ridley Scott, O Gladiador, o imperador Marcus Aurelius decide designar como seu sucessor o general Maximus, em detrimento do seu filho Commodus, com o propósito de salvar Roma da corrupção. Ambicioso e sem escrúpulos, o herdeiro preterido mata o pai e assume o poder, dando ordens para que o seu rival seja executado. Este consegue escapar, mas acaba reduzido à condição de escravo, sendo vendido nas províncias do império a Proximo, um antigo gladiador que ganha a vida a promover combates em arenas. Lutador exímio e experiente, o general caído em desgraça rapidamente ganha a atenção do comerciante que o comprou. A um dado momento, o segundo manda chamar o primeiro. Segue-se um diálogo delicioso e cheio de significado. Maximus: “Perguntaste-me o que eu quero. Eu também quero estar em frente do imperador.” Proximo: “Então, ouve-me. Aprende comigo. Eu não fui o melhor porque matei rapidamente. Era o melhor porque a multidão adorava-me. Ganha a multidão e conquistarás a liberdade.”



Numa vasta faixa geográfica, que vai das margens do Pacífico dos EUA até à fronteira europeia com a Rússia, tem crescido na última década um descontentamento — ou mesmo revolta — generalizado com a política e com os partidos, mas também com a justiça, com os bancos e com as instituições em geral.

É isto que está na base da tendência actual de ascensão de líderes, partidos e movimentos anti-sistema, populistas e extremistas, num número significativo e crescente de países: Estados Unidos, Espanha, França, Reino Unido, Itália, Holanda, Áustria, Grécia, Hungria, Polónia, República Checa e por aí em diante. Como escreveram Cas Mudde e Kaltwasser, no seu livro intitulado Populismo, trata-se de uma reacção do povo, que se vê como puro, contra a elite, que considera corrupta, não representando ninguém que não a si própria, aos seus interesses individuais ou dos grupos de poder que a suportam.

Portugal é uma das poucas excepções. Até esta data ainda não assistimos à ascensão do populismo e do extremismo na política portuguesa. Todavia, é apenas uma questão de tempo para que tal aconteça. E acresce que, embora pouco se fale nisso, nós já temos um governo que é suportado por partidos anti-NATO, anti-União Europeia, anti-Euro e anti-Estados Unidos (no caso da União Europeia a posição do Bloco de Esquerda é mais matizada).

A tendência actual na Europa e na América, que podemos designar de revolução do sistema “de fora para dentro”, tem de ser contrariada por uma contra-tendência reformista a partir de dentro, ou seja, levada a cabo pelos líderes e partidos tradicionais que sejam simultaneamente anti-sistema, anti-populistas e anti-extremistas.

A primeira linha deste projecto deve ser o combate à corrupção, entendida aqui no seu sentido mais lato: a prevalência do interesse individual ou de grupo sobre o bem comum; a escolha das pessoas sem qualidade ou sem preparação em detrimento dos mais competentes; a promiscuidade entre a política e os interesses económicos, incluindo no relacionamento pessoal; a apropriação de dinheiros públicos; o recebimento indevido de vantagem; e por aí fora.

A segunda consiste na reforma do sistema político. Há várias formas de fazê-lo e as universidades estão cheias de estudos sobre isso. Por exemplo, pode ser feito através da mudança da lei eleitoral, ou da redefinição dos círculos eleitorais, ou de um novo processo qualquer de escolha dos deputados. As opções são sensíveis e nenhuma é destituída de desvantagens. Mas, seja como for, o resultado final tem de ser o de colocar os representantes a representar os representados.

A terceira é a reforma dos partidos políticos. Também aqui tem havido muito debate e há várias propostas em discussão, desde a generalização das primárias abertas até ao fim dos “vetos de gaveta” à admissão de novos militantes. Uma vez mais há riscos em algumas destas propostas, mas o essencial é que os partidos se abram ao exterior, sejam capazes de atrair pessoas muito boas nos vários sectores — universidades, think tanks, empresas, área social, etc. — e representem, de facto, a sociedade.

Fora do campo estrito da política também há reformas importantes para a credibilização do sistema, como a reforma da justiça — que tem de ser mais rápida e mais igual — e do sistema financeiro — que tem de ser mais transparente, rigoroso e com muito maior responsabilização.

Finalmente, no campo da política externa (que é cada vez mais também interna), é preciso um combate sem quartel ao discurso populista anti-europeu — ou mesmo à demagogia de que tudo o que é bom é nacional e tudo o que é mau é culpa da Europa — e defender sem timidez e com entusiasmo a integração europeia. A União Europeia pode já não fazer sonhar e há várias coisas que estão mal, mas ela continua a ser um espaço sem igual de liberdade, paz, lei, prosperidade, diversidade e solidariedade. Não gostam do que é a UE? Então experimentem viver sem ela.

No filme de Ridley Scott, o corrupto Commodus conseguiu suceder a Marcus Aurelius e governar durante algum tempo. O preço foi a continuação da decadência de Roma. Porém, acabou por ser morto no coliseu pelo íntegro Maximus, que não foi capaz de eliminar pois este era adorado pela multidão. Foi feliz o conselho de Proximo: “Ganha a multidão e conquistarás a liberdade.”

As democracias morrem lentamente

Vencer eleições a qualquer custo muitas vezes reverte o sentido da própria democracia.

17 de Fevereiro de 2018
TIAGO MOREIRA DE SÁ

Num livro publicado este mês, intitulado Trumpocracy: The Corruption of the American Republic, o conservador David Frum, que trabalhou com George W. Bush, escreve sobre o perigo que Donald Trump representa para a democracia americana. Segundo ele, o declínio do sistema democrático começou em países como a Rússia, a Hungria, a Turquia e a África do Sul e chegou ao mais improvável dos locais: os Estados Unidos. Em todos estes casos há uma linha comum: a destruição (ou tentativa de destruição) dos mecanismos de limitação do poder dos líderes, tais como as restantes instituições. Para Frum é o que se está a passar de forma discreta na América, acrescentando de modo significativo: “À medida que Trump e a sua família enriquecem, a presidência cai nas mãos dos generais e dos financeiros que o rodeiam”.


A presença constante de Donald Trump na nossa vida parece ter tido como efeito normalizá-lo. Uns acham que ele é o novo Reagan. Outros que ele até tem muitos elementos de continuidade com Obama. E muitos esqueceram um assunto de que tanto se falava há cerca de um ano: a ideia de que a democracia poderia estar em risco com a eleição de um populista para a Casa Branca. À primeira vista a política democrática norte-americana está bem e recomenda-se. Mas um olhar mais atento mostra-nos que dar isso como um dado adquirido é um erro que se pode vir a pagar caro.

A crise da democracia liberal passa por três temas fundamentais que até há relativamente pouco tempo não eram muito debatidos fora das portas das universidades: (1) a importância das instituições democráticas; (2) o papel fundamental dos partidos políticos; (3) a moral na política.

Quanto ao primeiro aspecto, a democracia norte-americana deve merecer-nos um grande respeito. Afinal, as grandes bandeiras eleitorais de Trump, que prometiam transformar o espírito dos EUA — liberal como o conhecemos — foram derrotadas. Os tribunais chumbaram as leis anti-imigração, o Congresso tem negado ao presidente mudanças estatutárias fundamentais como a substituição do Obamacare e os serviços de intelligence têm escrutinado de perto o seu poder e possíveis ligações ilegais à Rússia. Lembre-se que o próprio Donald Trump está sob investigação e já houve demissões de peso relacionadas com este caso.

Outros poderes, alguns sem rosto, têm desempenhado um papel importante: a quantidade de fugas de informação vindas da Casa Branca e de vários órgãos de poder; os republicanos internacionalistas no Pentágono, no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional evitaram manobras mais desastradas; a própria opinião pública tem sido profundamente vigilante, cumprindo a missão que lhes era atribuída pelos Pais Fundadores.

O segundo tema – a ideia de que as mais importantes instituições democráticas são os partidos políticos – está muito bem abordado num estudo recentemente publicado por dois cientistas políticos de Harvard. A propósito dos Estados Unidos de hoje, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt fazem o duplo argumento de que, ao contrário de outros regimes, as democracias morrem lentamente e sem estardalhaço, especialmente quando os partidos políticos deixam de ter uma visão a longo prazo dos destinos do país e passam a despachar diariamente tendo em conta os seus interesses pessoais e/ou partidários de curto prazo. Vencer eleições a qualquer custo muitas vezes reverte o sentido da própria democracia: ganhar votos não significa necessariamente dizer ou fazer o que os eleitores querem ouvir ou ver feito, mas ter a certeza de que as medidas correspondem a visões de longo prazo que podem ser retomadas pela oposição, sem que para isso as questões ideológicas saiam feridas.

Nos EUA de hoje combate-se em muitas frentes: os Republicanos estão profundamente divididos no Congresso e em outras instâncias e os Democratas moribundos depois da presidência de Barack Obama. De parte a parte, criaram-se aversões que afinal foram uma das razões que explicam porque Trump chegou ao poder. E como dizia Lincoln, o herói da América polarizada, “uma casa dividida não pode permanecer em pé”. A polarização americana vai precisar de tempo – e enquadramento para todas as classes sociais – para serenar. E isso depende de uma responsabilidade social que até aqui não parecer ter grandes representantes.

Finalmente, chegamos ao terceiro tema. Diversos países democráticos enfrentam crises de corrupção altamente nocivas para o governo: veja-se o Brasil ou a África do Sul. Mas a ideia da moralização da política, ou da falta dela, tem maior alcance e pode colocar em causa o próprio regime. A ideia generalizada de que as elites perderam o sentido ético e se protegem umas às outras à custa da classe média é incompatível com a democracia representativa. A consequência é a ascensão de partidos e movimentos extremistas e populistas numa vasta geografia que vai dos Estados Unidos até à Europa de Leste. No caso da América, até já existe um novo conceito para traduzir o que se está a passar: populismo oligárquico.

Ainda que de forma diferente, David Frum, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam a atenção para a necessidade de não tomar o nosso sistema e regime político por garantidos. Como escreveram os segundos, as democracias morrem lentamente e sem estardalhaço.

domingo, 3 de junho de 2018

O pântano putrefacto do futebol português

Acabar com isto é uma tarefa ciclópica. Deixar tudo como está é oficializar o faroeste em pleno século XXI.

Junho de 2018


A reportagem da SIC sobre o suposto aliciamento de jogadores do Marítimo por parte de colaboradores do Benfica é mais um prego no caixão do futebol português. Embora a solidez da investigação tenha alguns aspectos questionáveis – dada a ausência de indícios materiais, somos basicamente obrigados a confiar no jornalista e na credibilidade da sua fonte (anónima) –, a verdade é que há demasiadas coincidências suspeitas e, sobretudo, péssimas justificações. Aquilo que vimos pode ainda ser curto para sustentar um caso em tribunal, mas é mais do que suficiente para agravar a nossa convicção de que o futebol se transformou num meio onde a corrupção não é apenas um acontecimento infeliz, mas o reflexo de todo um sistema estruturado em cima da fraude e das jogadas de bastidores.
Peço encarecidamente aos leitores cujo sangue ferve todos os domingos para não correrem para a caixa de comentários deste texto munidos de fita métrica, cheios de vontade de comparar os níveis de aldrabice praticados por Benfica, Sporting e Porto. Admito a existência de matizes e diferenças de grau, mas aquilo que defendo é outra coisa – é que este tipo de batota é sistémica e faz partes das regras de jogo dos três grandes, assim como o doping faz parte do ciclismo: quem não pratica é porque é parvo, ou anjinho, ou as duas coisas.

O problema de o futebol estar inquinado desta maneira é que deixa de haver qualquer forma de auto-regulação possível. Não vale a pena ir vender t-shirtsbrancas para a porta da pocilga. As autoridades judiciais e políticas têm de abandonar os camarotes presidenciais dispostas a repensar o futebol de cima a baixo. Isso inclui não só as estruturas dos clubes, as suas regras obscuras de funcionamento e a perpetuação dos seus dirigentes, mas também os seus satélites comunicacionais: a imprensa desportiva enquanto campo fértil de recados; os comentadores televisivos enquanto linha avançada do fanatismo clubístico; os directores de comunicação enquanto poluidores oficiais do espaço público. Portugal tem três diários desportivos e todas as notícias sobre investigações sensíveis ou nascem nos jornais generalistas ou nas televisões. Os jornais desportivos, com redacções extensas e focadas, que todos os dias acompanham clubes, jogadores e dirigentes, quase nunca dão uma notícia original sobre justiça e futebol. Nunca viram nada, nunca ouviram nada, nunca dizem nada.

Miguel Poiares Maduro escreveu neste jornal um excelente ensaio intitulado “Como o jogo mais bonito ficou tão feio”, alertando para aquilo a que chama a cartelização do futebol. Em todo o mundo, a cultura do futebol está contaminada pelas piores práticas de gestão: pouquíssimo escrutínio, uma justiça própria permeável a pressões, enorme concentração de poder numa casta dirigente, ausência de alternância, mecanismos de controlo na directa dependência de quem é suposto ser controlado (veja-se a dificuldade em remover Bruno de Carvalho da presidência do Sporting), constantes conflitos de interesse (veja-se como os advogados do Benfica defendem em simultâneo o clube e funcionários suspeitos de prejudicar o clube), e depois, claro, uma enxurrada de dinheiro via direitos desportivos e televisivos, distribuídos de uma forma profundamente desigual pelos clubes – e assim colocando os mais pequenos cada vez mais dependentes dos favores dos grandes. Acabar com isto é uma tarefa ciclópica. Deixar tudo como está é oficializar o faroeste em pleno século XXI