Bárbara Reis 25 de Maio de 2018,
Os líderes religiosos foram a Belém dizer que a eutanásia viola a “dignidade da vida” e que há cuidados paliativos. Esquecem que Séneca já explicou que morrer antes de tempo não tem nada que ver com a dor mas, justamente, com poder morrer de forma digna.
O pastor Jorge Humberto da Aliança Evangélica Portuguesa que me desculpe, mas vou ter de contar a história do condenado que, antes de ser lançado para o recinto onde iria lutar contra um tigre ou um leão, pediu para ir à casa de banho — ou o mais próximo disso nos anos 20 d.C. — e forçou pela garganta abaixo o pau com a esponja enrolada que o guarda lhe deu para limpar as partes íntimas.
É Séneca quem conta esta “história sórdida” numa das suas cartas sobre a morte — e o adjectivo também é dele. Preocupado, quase obcecado, com a morte, o filósofo romano sentiu que precisava de casos explícitos para falar sobre a importância da dignidade da vida.
“A questão não é morrer mais cedo ou mais tarde”, escreve numa carta ao amigo Lucílio. “O que importa é morrer bem ou morrer mal. E morrer bem é escapar ao perigo de viver mal.” Esta e outras histórias, como a do gladiador que se matou na arena antes de o espectáculo começar, estão contadas em How to Die — An Ancient Guide to the End of Life, de Séneca, editado, traduzido e com introdução de James S. Romm, que a Princeton University Press editou este ano integrado na sua belíssima colecção de guias da Antiguidade. O primeiro foi corajoso, conclui Séneca, porque foi ele a decidir a sua morte e porque nada teria de corajoso enfrentar um animal selvagem e morrer lentamente, rasgado aos bocados. Do segundo constata que “o espectáculo foi mais impressionante, pois é mais digno ensinar como se morre do que ensinar como se mata”.
Que não haja engano: Séneca sempre criticou quem queria morrer sem uma razão forte. Mais: a dor não era para ele uma razão suficientemente forte para querer morrer. “Não usarei a morte para escapar à doença, desde que a doença seja curável. Morrer apenas por causa da dor é admitir a derrota. Mas se sei que a minha condição vai durar para sempre, abandono a vida. Não por causa da dor propriamente dita, mas porque isso me vai tirar as razões para viver. É o homem fraco que morre por causa da dor, mas é o homem tolo que vive em nome da dor”, escreve ao amigo. Noutra carta diz: “Viver não é uma coisa boa em si mesma, mas sim viver bem.” E, por isso, “sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”.
É caso para dizer que sábio é Séneca. É verdade que não conseguiu ter a morte digna que tanto o ocupou, mas deixou-nos um manual de instruções límpido e desconcertante sobre como encarar a morte com naturalidade. “Qual é o espanto? Nasceste sob esta lei. Aconteceu ao teu pai, à tua mãe, aos teus antepassados, a todas as pessoas antes de ti, a todos depois de ti, numa sequência inquebrável.” “Estuda a morte”, “ensaia a morte”, “pratica a morte”, diz ao amigo.
O xeque David Munir, líder da Mesquita Islâmica Central de Lisboa, e o cardeal-patriarca, Manuel Clemente, que me desculpem, mas a eutanásia não tem nada que ver com desvalorizar a vida. É o contrário. “Uma vida mais longa não é necessariamente melhor e uma morte mais longa é necessariamente pior”, diz Séneca, tentando persuadir o amigo de que a vida deve ser medida pela qualidade e não pela quantidade, e que o seu prolongamento não deve ser um fim em si mesmo. “Só há uma forma de dizer que a vida que vivemos foi longa: se foi suficiente.” A vida, diz, “é longa se for cheia” e fica cheia se se for “bom cidadão, bom amigo e bom filho”.
Não resisto a mais duas passagens. Primeira: “Antes de ser velho, fiz por viver bem; agora que sou velho, faço por morrer bem. E morrer bem significa morrer com vontade.” Segunda: “A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida. Mas dá-lhe um bom fim.”
Os líderes religiosos quiseram dizer ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa que, para o debate da eutanásia, “as religiões têm um sério contributo a dar no sentido da dignidade da vida”. Falham o argumento porque é justamente para isso que a eutanásia serve: dar dignidade aos vivos na hora da morte. E agora que me desculpem os leitores, mas afinal não resisto a mais um excerto: “Se o nosso corpo se torna incapaz de desempenhar as suas funções, não será correcto retirar dele a nossa alma torturada? Talvez isso deva ser feito ligeiramente antes do momento em que tem de ser feito, porque quando tem de ser feito já não somos capazes de o fazer”, diz o sábio da morte. E logo a seguir pergunta ao amigo: “Achas que há alguma coisa mais cruel a perder na vida do que o direito de acabar com ela?”
É Séneca quem conta esta “história sórdida” numa das suas cartas sobre a morte — e o adjectivo também é dele. Preocupado, quase obcecado, com a morte, o filósofo romano sentiu que precisava de casos explícitos para falar sobre a importância da dignidade da vida.
“A questão não é morrer mais cedo ou mais tarde”, escreve numa carta ao amigo Lucílio. “O que importa é morrer bem ou morrer mal. E morrer bem é escapar ao perigo de viver mal.” Esta e outras histórias, como a do gladiador que se matou na arena antes de o espectáculo começar, estão contadas em How to Die — An Ancient Guide to the End of Life, de Séneca, editado, traduzido e com introdução de James S. Romm, que a Princeton University Press editou este ano integrado na sua belíssima colecção de guias da Antiguidade. O primeiro foi corajoso, conclui Séneca, porque foi ele a decidir a sua morte e porque nada teria de corajoso enfrentar um animal selvagem e morrer lentamente, rasgado aos bocados. Do segundo constata que “o espectáculo foi mais impressionante, pois é mais digno ensinar como se morre do que ensinar como se mata”.
Que não haja engano: Séneca sempre criticou quem queria morrer sem uma razão forte. Mais: a dor não era para ele uma razão suficientemente forte para querer morrer. “Não usarei a morte para escapar à doença, desde que a doença seja curável. Morrer apenas por causa da dor é admitir a derrota. Mas se sei que a minha condição vai durar para sempre, abandono a vida. Não por causa da dor propriamente dita, mas porque isso me vai tirar as razões para viver. É o homem fraco que morre por causa da dor, mas é o homem tolo que vive em nome da dor”, escreve ao amigo. Noutra carta diz: “Viver não é uma coisa boa em si mesma, mas sim viver bem.” E, por isso, “sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”.
É caso para dizer que sábio é Séneca. É verdade que não conseguiu ter a morte digna que tanto o ocupou, mas deixou-nos um manual de instruções límpido e desconcertante sobre como encarar a morte com naturalidade. “Qual é o espanto? Nasceste sob esta lei. Aconteceu ao teu pai, à tua mãe, aos teus antepassados, a todas as pessoas antes de ti, a todos depois de ti, numa sequência inquebrável.” “Estuda a morte”, “ensaia a morte”, “pratica a morte”, diz ao amigo.
O xeque David Munir, líder da Mesquita Islâmica Central de Lisboa, e o cardeal-patriarca, Manuel Clemente, que me desculpem, mas a eutanásia não tem nada que ver com desvalorizar a vida. É o contrário. “Uma vida mais longa não é necessariamente melhor e uma morte mais longa é necessariamente pior”, diz Séneca, tentando persuadir o amigo de que a vida deve ser medida pela qualidade e não pela quantidade, e que o seu prolongamento não deve ser um fim em si mesmo. “Só há uma forma de dizer que a vida que vivemos foi longa: se foi suficiente.” A vida, diz, “é longa se for cheia” e fica cheia se se for “bom cidadão, bom amigo e bom filho”.
Não resisto a mais duas passagens. Primeira: “Antes de ser velho, fiz por viver bem; agora que sou velho, faço por morrer bem. E morrer bem significa morrer com vontade.” Segunda: “A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida. Mas dá-lhe um bom fim.”
Os líderes religiosos quiseram dizer ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa que, para o debate da eutanásia, “as religiões têm um sério contributo a dar no sentido da dignidade da vida”. Falham o argumento porque é justamente para isso que a eutanásia serve: dar dignidade aos vivos na hora da morte. E agora que me desculpem os leitores, mas afinal não resisto a mais um excerto: “Se o nosso corpo se torna incapaz de desempenhar as suas funções, não será correcto retirar dele a nossa alma torturada? Talvez isso deva ser feito ligeiramente antes do momento em que tem de ser feito, porque quando tem de ser feito já não somos capazes de o fazer”, diz o sábio da morte. E logo a seguir pergunta ao amigo: “Achas que há alguma coisa mais cruel a perder na vida do que o direito de acabar com ela?”
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