Em 1951, uma escola frequentada exclusivamente por brancos recusou matricular Linda Brown. Oliver, o pai, levou o caso à justiça. Três anos depois, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos legislava a proibição de segregação racial nas escolas do país, abrindo caminho para a luta pelos Direitos Civis. Linda Brown tornou-se um símbolo dessa luta. Morreu domingo, aos 75 anos.
MÁRIO LOPES 27 de Março de 2018
Oliver Brown não estava descontente com a escola em que a filha estudava, mas preocupava-o o longo caminho que ela tinha que percorrer, não isento de perigos para uma menina de oito anos – Linda, assim se chamava a filha, tinha que caminhar por uma linha de caminho-de-ferro e atravessar uma estrada bastante concorrida antes de apanhar o autocarro escolar. Oliver decidiu então matriculá-la noutra escola, mais próxima da casa da família. Acontece que Oliver e Linda eram negros, que a escola mais próxima era frequentada por brancos e que estávamos em Topeka, no Texas, em 1951, quando a segregação racial era ainda uma realidade nos Estados Unidos. O que seguiu à recusa da escola em aceitar Linda Brown – cuja morte, este domingo, aos 75 anos, foi anunciada na segunda-feira – tornou a menina um símbolo da luta pelos Direitos Civis da população negra americana.
“Era um dia luminoso, ensolarado, caminhámos rapidamente e lembro-me de chegar junto de uns grandes degraus”, recordou Linda Brown em 1987, citada no obituário que lhe dedicou o New York Times. “Percebi que algo tinha corrido mal. Ele [o pai] saiu [do edifício], pegou-me pela mão e caminhámos de volta a casa. Caminhámos ainda mais rápido, e eu conseguia sentir a tensão a transferir-se da sua mão para a minha.”
Três anos depois, a 17 de Maio de 1954, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos declarava por unanimidade a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas americanas. Chegava ao fim o caso “Brown vs Conselho Educativo”, cujo desfecho abriu caminho para as batalhas que se seguiram naquela década e na seguinte.
Não se tratou de uma acção isolada por parte de Oliver e Leona Brown, os pais de Linda. Oliver surgiu no processo como o principal queixoso, mas a acção legal, idealizada pela Associação Para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), reuniu casos apresentados por treze pais de vinte crianças dos estados do Texas, Delaware, Carolina do Sul, Virginia e Washington.
“No campo da educação pública, não tem lugar a doutrina ‘separados, mas iguais’. Instalações educativas diferentes são inerentemente desiguais”, escreveu então o líder do conjunto de juízes, Earl Waren. A expressão entre aspas era uma referência à decisão que fazia lei desde 1896, quando Homer Plessy, de Nova Orleães, interpôs um processo contra o Estado do Louisiana após ter sido preso por se recusar a abandonar uma carruagem de comboio reservada a brancos. Plessy alegava que a separação dos passageiros por cor de pele era inconstitucional, mas o Supremo Tribunal não lhe deu razão. Ainda que desmentida diariamente pela diferença de qualidade e investimentos nas estruturas disponíveis a brancos e a negros, o ideia “separados, mas iguais” manteve-se a doutrina oficial, em todas as dimensões da vida americana, até 1954.
A resistência à decisão do Supremo Tribunal manifestou-se de várias formas. Na Virginia, um senador iniciou um movimento de protesto que preferia encerrar ou destruir as escolas a abri-las a todos os alunos. No Arkansas, em 1957, o governador convocou a Guarda Nacional estadual para impedir a entrada de estudantes negros na escola, obrigando o presidente Dwight Eisenhower a enviar o Exército para repor a legalidade no estado. No Mississipi, a luta pelos direitos civis ganharia um mártir em 1963, ano do assassinato do influente activista negro Medgar Evers, baleado por um membro do White Citizens Council, organização supremacista branca criada precisamente em 1954 – pouco antes da sua morte, Evers ameaçara iniciar um processo legal para obrigar as escolas de Jackson, capital do Mississipi, a cumprirem a lei anti-segregação que, ali, não saíra do papel.
“Há 64 anos, uma pequena rapariga de Topeka, Kansas, espoletou um caso que acabou com a segregação nas escolas públicas da América. A vida de Linda Brown recorda-nos que, batendo-nos pelos nossos princípios e servindo as nossas comunidades, podemos realmente mudar o mundo”, escreveu em comunicado o Governador do Kansas, Jeff Collyer. “O legado de Linda é uma parte crucial da história da América e continua a inspirar os milhões que, por causa dela, conseguiram tornar real o sonho americano.”
Linda Brown e a irmã, Cheryl Brown Anderson, fundaram em 1988 a Fundação Brown para a Equidade, Excelência e Pesquisa Educativa, dedicada a homenagear os queixosos do caso de 1954 e a continuar a lutar pelos seus ideais. O pai de Linda não chegou a assistir ao nascimento da fundação. Vitimado por um ataque cardíaco em 1961, quando servia como pastor de uma igreja em Springfield, no Missouri, não chegou sequer a assistir ao corolário da luta que ajudara a iniciar: em 1964 foi aprovada a lei dos direitos civis que proibiu qualquer tipo de discriminação baseada na cor, religião, sexo ou país de origem.
Sherrilyn Ifill, da NAACP, emitiu um comunicado em que prestou homenagem a Linda Brown como uma das jovens heróicas que, juntamente com as suas famílias, “lutaram corajosamente para acabar com o símbolo máximo do supremacismo branco – a segregação racial nas escolas”. Acrescentou ainda: “Fica como exemplo de como alunos comuns podem ocupar o centro do palco na transformação deste país.” Palavras que ressoam de forma particularmente forte dias depois das grandes manifestações, lideradas por estudantes liceais, exigindo soluções para a questão da posse de armas nos Estados Unidos.