terça-feira, 27 de março de 2018

Morreu Linda Brown, a menina que acabou com a segregação racial nas escolas americanas


Em 1951, uma escola frequentada exclusivamente por brancos recusou matricular Linda Brown. Oliver, o pai, levou o caso à justiça. Três anos depois, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos legislava a proibição de segregação racial nas escolas do país, abrindo caminho para a luta pelos Direitos Civis. Linda Brown tornou-se um símbolo dessa luta. Morreu domingo, aos 75 anos.
MÁRIO LOPES 27 de Março de 2018


Em 1951, Linda Brown não foi aceite na escola de Topeka, no Texas. Três anos depois era considerada inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas americanas

Oliver Brown não estava descontente com a escola em que a filha estudava, mas preocupava-o o longo caminho que ela tinha que percorrer, não isento de perigos para uma menina de oito anos – Linda, assim se chamava a filha, tinha que caminhar por uma linha de caminho-de-ferro e atravessar uma estrada bastante concorrida antes de apanhar o autocarro escolar. Oliver decidiu então matriculá-la noutra escola, mais próxima da casa da família. Acontece que Oliver e Linda eram negros, que a escola mais próxima era frequentada por brancos e que estávamos em Topeka, no Texas, em 1951, quando a segregação racial era ainda uma realidade nos Estados Unidos. O que seguiu à recusa da escola em aceitar Linda Brown – cuja morte, este domingo, aos 75 anos, foi anunciada na segunda-feira – tornou a menina um símbolo da luta pelos Direitos Civis da população negra americana.

“Era um dia luminoso, ensolarado, caminhámos rapidamente e lembro-me de chegar junto de uns grandes degraus”, recordou Linda Brown em 1987, citada no obituário que lhe dedicou o New York Times. “Percebi que algo tinha corrido mal. Ele [o pai] saiu [do edifício], pegou-me pela mão e caminhámos de volta a casa. Caminhámos ainda mais rápido, e eu conseguia sentir a tensão a transferir-se da sua mão para a minha.”

Três anos depois, a 17 de Maio de 1954, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos declarava por unanimidade a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas americanas. Chegava ao fim o caso “Brown vs Conselho Educativo”, cujo desfecho abriu caminho para as batalhas que se seguiram naquela década e na seguinte.

Não se tratou de uma acção isolada por parte de Oliver e Leona Brown, os pais de Linda. Oliver surgiu no processo como o principal queixoso, mas a acção legal, idealizada pela Associação Para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), reuniu casos apresentados por treze pais de vinte crianças dos estados do Texas, Delaware, Carolina do Sul, Virginia e Washington.

“No campo da educação pública, não tem lugar a doutrina ‘separados, mas iguais’. Instalações educativas diferentes são inerentemente desiguais”, escreveu então o líder do conjunto de juízes, Earl Waren. A expressão entre aspas era uma referência à decisão que fazia lei desde 1896, quando Homer Plessy, de Nova Orleães, interpôs um processo contra o Estado do Louisiana após ter sido preso por se recusar a abandonar uma carruagem de comboio reservada a brancos. Plessy alegava que a separação dos passageiros por cor de pele era inconstitucional, mas o Supremo Tribunal não lhe deu razão. Ainda que desmentida diariamente pela diferença de qualidade e investimentos nas estruturas disponíveis a brancos e a negros, o ideia “separados, mas iguais” manteve-se a doutrina oficial, em todas as dimensões da vida americana, até 1954.

A resistência à decisão do Supremo Tribunal manifestou-se de várias formas. Na Virginia, um senador iniciou um movimento de protesto que preferia encerrar ou destruir as escolas a abri-las a todos os alunos. No Arkansas, em 1957, o governador convocou a Guarda Nacional estadual para impedir a entrada de estudantes negros na escola, obrigando o presidente Dwight Eisenhower a enviar o Exército para repor a legalidade no estado. No Mississipi, a luta pelos direitos civis ganharia um mártir em 1963, ano do assassinato do influente activista negro Medgar Evers, baleado por um membro do White Citizens Council, organização supremacista branca criada precisamente em 1954 – pouco antes da sua morte, Evers ameaçara iniciar um processo legal para obrigar as escolas de Jackson, capital do Mississipi, a cumprirem a lei anti-segregação que, ali, não saíra do papel.

“Há 64 anos, uma pequena rapariga de Topeka, Kansas, espoletou um caso que acabou com a segregação nas escolas públicas da América. A vida de Linda Brown recorda-nos que, batendo-nos pelos nossos princípios e servindo as nossas comunidades, podemos realmente mudar o mundo”, escreveu em comunicado o Governador do Kansas, Jeff Collyer. “O legado de Linda é uma parte crucial da história da América e continua a inspirar os milhões que, por causa dela, conseguiram tornar real o sonho americano.”

Linda Brown e a irmã, Cheryl Brown Anderson, fundaram em 1988 a Fundação Brown para a Equidade, Excelência e Pesquisa Educativa, dedicada a homenagear os queixosos do caso de 1954 e a continuar a lutar pelos seus ideais. O pai de Linda não chegou a assistir ao nascimento da fundação. Vitimado por um ataque cardíaco em 1961, quando servia como pastor de uma igreja em Springfield, no Missouri, não chegou sequer a assistir ao corolário da luta que ajudara a iniciar: em 1964 foi aprovada a lei dos direitos civis que proibiu qualquer tipo de discriminação baseada na cor, religião, sexo ou país de origem.

Sherrilyn Ifill, da NAACP, emitiu um comunicado em que prestou homenagem a Linda Brown como uma das jovens heróicas que, juntamente com as suas famílias, “lutaram corajosamente para acabar com o símbolo máximo do supremacismo branco – a segregação racial nas escolas”. Acrescentou ainda: “Fica como exemplo de como alunos comuns podem ocupar o centro do palco na transformação deste país.” Palavras que ressoam de forma particularmente forte dias depois das grandes manifestações, lideradas por estudantes liceais, exigindo soluções para a questão da posse de armas nos Estados Unidos.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Reconstituído o genoma do primeiro mulato (que se conhece) na Islândia através dos seus descendentes


No início do século XIX, um escravo mulato conseguiu fugir da Dinamarca para a Islândia, onde se tornou agricultor, casou e teve filhos. Um grupo de cientistas recriou agora a metade africana do seu genoma através de 182 descendentes seus vivos.
TERESA SERAFIM 
26 de Março de 2018

Aurora boreal no lago glaciar Jökulsárlón, uma paisagem que Hans Jonathan terá visto na Islândia


A história de vida de Hans Jonathan é uma autêntica odisseia. Nasceu no final do século XVIII numa colónia da Dinamarca e estava praticamente predestinado a ser um escravo. Era filho de uma mãe escrava negra. Mais tarde, partiu para a Dinamarca, onde chegou a combater nas guerras napoleónicas e foi considerado um “herói” nacional. Tinha tudo para ser um homem livre, mas a sua proprietária pôs o caso em tribunal e o juiz condenou-o a voltar às colónias. Hans Jonathan conseguiu fugir para um sítio remoto: a Islândia, tornando-se um dos primeiros mulatos a viver naquele país nórdico. Agora, quase 200 anos depois da sua morte, uma equipa de cientistas, da qual faz parte Luísa Pereira, geneticista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto, conseguiu reconstituir quase 40% da metade africana do genoma de Hans Jonathan através da análise genética de 182 descendentes seus.

Doze de Abril de 1784. Hans Jonathan nasceu em Santa Cruz, uma ilha no mar das Caraíbas, na altura uma colónia dinamarquesa e agora dos Estados Unidos. “Tornou-se claro, depois de passarem poucas semanas, que o filho de Emilia Regina era um mulato, o rebento de uma mãe negra e de um pai branco”, lê-se no livro biográfico The Man Who Stole Himself: The Slave Odyssey of Hans Jonathan (The University of Chicago Press, 2016), do antropólogo da Universidade da Islândia Gísli Palsson. A sua mãe também já tinha nascido escrava nesta colónia e pertencia à plantação de açúcar da família Schimmelmann.

“Antes de ter um ano, em 1785, Hans Jonathan foi registado no memorando de escravos pertencentes aos Schimmelmanns”, refere-se no livro. Não se sabe quem era o seu pai, apenas que era branco. Gísli Palsson indica várias possibilidades como Ludvig Schimmelmann, o seu proprietário, o conde Adam Moltke e o secretário privado dos proprietários Hans Gram. Todos estiveram em Santa Cruz perto da altura do nascimento de Hans Jonathan.

Plantação de açúcar em Santa Cruz 

Até aos seus sete ou oito anos, Hans Jonathan passou a vida nas plantações de açúcar. É por essa idade, com a decadência dessas plantações, que embarca para casa dos seus proprietários em Copenhaga (Dinamarca), nomeadamente para a mansão no número 23 da rua Amaliegade. Aí, foi crescendo entre os edifícios dessa rua e dentro do jardim da mansão. “Hans Jonathan teve uma vida mais confortável do que a maioria das crianças escravas. Usufruiu de muitos privilégios que a elite social dinamarquesa considerava indispensáveis. Parece que teve lições de música, por exemplo, tal como sabemos pelo seu amor pelo violino ao longo da vida. Também aprendeu a ler, a escrever e matemática”, conta na biografia Gísli Palsson.
A viúva contra o mulato

Em 1801, decidiu ingressar na Marinha dinamarquesa para combater na Batalha de Copenhaga (guerras napoleónicas) contra a Inglaterra. Mesmo contra a vontade da sua proprietária, Henrietta Schimmelmann, viúva de Ludvig Schimmelmann, Hans Jonathan fugiu e participou no conflito.

A batalha naval aconteceu fora da cidade e os ingleses estavam em superioridade numérica e eram mais experientes do que os dinamarqueses. Hans Jonathan estava a bordo do navio Charlotte Amalie, que enfrentava duas embarcações inimigas. A Inglaterra acabou por vencer. Houve cerca de duas mil baixas dinamarquesas e vários feridos. Hans Jonathan sobreviveu, recebeu dinheiro pelo seu serviço (talvez o primeiro pagamento que teve na vida e terá usado uma parte para comprar um violino) e foi considerado um “herói” na Dinamarca.

Pintura Batalha de Copenhaga

Por isso, tornou-se um homem livre por algum tempo. “A 14 de Maio de 1801 o comandante Bille [da Marinha dinamarquesa] atribuiu a Hans Jonathan a sua liberdade”, lê-se no livro. “Aos 17 anos, Hans Jonathan não era mais escravo ou pelo menos parecia.” Mas a sua “proprietária” decidiu levar o caso a tribunal, que ficou conhecido como A Viúva do General vs. o Mulato, algo que se assemelha a uma disputa entre um Golias e um David. Na Dinamarca, a escravatura já tinha sido abolida, mas o tribunal acabou por afirmar que ele ainda era um escravo, propriedade de Henrietta Schimmelmann e que deveria voltar às colónias da Dinamarca, onde a escravatura ainda era legal.

Hans Jonathan fugiu para a Islândia. Pelo que se sabe, não terá tido grandes dificuldades em integrar-se no país (segundo alguns autores), tornando-se primeiro ajudante comercial e depois agricultor. “Hans Jonathan, além de um homem livre, era também o pilar de uma comunidade. Foi o tempo de aproveitar a sua vida: gerir um negócio, ir pescar com o seu barco, cuidar do seu rebanho, tocar violino – apaziguar-se e começar uma família”, escreve Gísli Palsson.

Em 1820, casou-se com a islandesa Katrin Antoniusdottir e tiveram três filhos: dois chegaram à idade adulta. Hans Jonathan acabou por morrer aos 43 anos, provavelmente devido a “um acidente vascular cerebral” (de acordo com a sua certidão de óbito) e terá sido enterrado num cemitério na Islândia. Contudo, como nota Gísli Palsson, “o seu túmulo não está marcado e a localização precisa é desconhecida.” Mesmo assim, deixou um legado com peripécias e descendentes que se dispersaram por muitos sítios na Islândia.

Pintura de Djupivogur, localidade no Leste da Islândia, onde Hans Jonathan viveu

“Imaginar alguém de origem marcadamente africana a vaguear pela Islândia de 1802, a fundar família, deixando filhos perfeitamente integrados na comunidade, leva-nos a um cenário improvável”, lê-se num comunicado do i3S sobre o trabalho publicado na revista científica Nature Genetics. Os cientistas quiseram então contar esta história através da genética.

“O facto de ter acontecido na Islândia é uma situação especial e permitiu que fizéssemos este estudo”, adianta Luísa Pereira. A Islândia tem registos genealógicos muito completos, o que permitiu identificar melhor os descendentes ao longo das gerações. Além disso, tem a empresa de CODE, que desde os anos 90 está a caracterizar o genoma da população islandesa (o coordenador deste estudo, Agnar Helgason, faz parte da deCODE). A empresa já terá recolhido dados genéticos de mais de metade da população adulta islandesa, segundo o comunicado.
Ao todo, foram identificados 788 descendentes de Hans Jonathan nos registos genealógicos e 182 participaram neste estudo, que faz parte de um programa de doutoramento Marie Curie dedicado ao estudo do impacto da escravatura transatlântica em diferentes áreas da ciência, como a genética e a arqueologia.

Montar um puzzle

Os cientistas conseguiram reconstituir 38% da parte africana e materna do genoma (ADN do núcleo das células) de Hans Jonathan. O valor teórico para se reconstituir a parte materna era 50%, por isso conseguiu-se recriar quase toda essa parte.

E como se fez? Tal como nós, Hans Jonathan recebeu 23 pares de cromossomas, metade da parte da mãe (africana) e metade da parte do pai (europeu). “Nas células que deram origem aos seus espermatozóides ocorreu uma divisão chamada ‘meiose’, durante a qual cada par de cromossomas se uniu em certos locais, havendo troca de material genético entre eles, num processo designado ‘recombinação’”, explica a geneticista. “Originaram-se assim cromossomas códigos de barras com partes paternas intercaladas com partes maternas”, conta, acrescentando que os fenómenos de recombinação são altamente aleatórios e que cada um dos espermatozóides de Hans Jonathan tinha um puzzle de material genético das duas partes diferente.

Um dos netos de Hans Jonathan com a mulher e os seus cinco filhos

“Misturou-se a informação que veio de cada um dos ancestrais. Isto é um fenómeno natural que aumenta a diversidade genética por novas combinações de variantes que foram transmitidas pela mãe e pelo pai”, resume Luísa Pereira. A equipa foi então encontrar os pedaços africanos no genoma de 182 descendentes de Hans Jonathan ou, como quem diz, montar um puzzle a partir de um puzzle.

À medida que as gerações passaram, esses pedaços de material genético africano foram ficando mais pequenos, porque nas células sexuais dos descendentes de Hans Jonathan ocorreram mais fenómenos de recombinação. Mas como se procuraram pedaços africanos em genomas islandeses tornou-se fácil identificá-los. Afinal, esses pedacinhos são muito diferentes nos islandeses. “Não tivemos capacidade de distinguir a parte europeia de Hans Jonathan porque é muito semelhante à dos outros ancestrais islandeses que se cruzaram com ele e os seus descendentes. A parte africana já foi mais fácil. É mesmo um puzzle com pedacinhos africanos espalhados por várias pessoas”, diz a cientista.

“Pela primeira vez, foi possível reconstituir metade de um genoma de uma pessoa que viveu há cerca de 200 anos, analisando apenas material biológico dos seus descendentes”, destaca ainda Luísa Pereira. Além disso, conseguiu-se perceber qual a origem geográfica da mãe de Hans Jonathan, Emilia Regina. E foi aqui que Luísa Pereira também entrou, porque tem vindo a estudar e a caracterizar a diversidade de várias populações africanas. O mais provável é que Emilia Regina seja descendente de africanos de uma região que se estende do Benim, passa pela Nigéria e vai até aos Camarões.

A investigadora Luísa Pereira

“O objectivo [do estudo] era mesmo contar esta história bonita”, realça Luísa Pereira sobre as aplicações do trabalho. “Sabe-se que antes dele não houve [nenhum mulato na Islândia]. Outros africanos começaram a aparecer na Islândia no século XX.” Também Gísli Palsson diz o mesmo no seu livro: “Durante o século XX, as pessoas de pele escura tornaram-se mais comuns nas ruas de Reiquejavique [a capital da Islândia].” E escreve mais à frente: “Nas décadas recentes, a Islândia tornou-se um caldeirão cultural colorido, graças, entre outras coisas, a casamentos inter-raciais, viagens internacionais para dentro e para fora, adopções transnacionais e uma afluência de trabalhadores migrantes, refugiados e requerentes de asilo de várias partes do mundo.”

Luísa Pereira diz que também já usou o mesmo método estatístico deste estudo para conseguir mapear genes que protegem contra certas doenças, como a febre de dengue na população de Cuba. Mas, para a geneticista, aqui o importante é mesmo destacar o factor antropológico desta história. “Este indivíduo já viveu numa altura em que se estava a debater muito as questões éticas do que era a escravatura”, nota. “Foi um momento de transição histórica e este indivíduo, de certa maneira, representa a capacidade de alguém que nasceu escravo conseguir obter a sua liberdade, ser integrado num outro país, ter descendentes de uma mulher islandesa e ser aceite pela comunidade.”

sábado, 24 de março de 2018

Rui Rio não percebeu nada de nada






24 de Março de 2018

Nunca esperei que Rui Rio trouxesse grandes ideias. Mas sempre esperei que trouxesse seriedade ao debate político. Se ele não traz uma coisa nem outra, tem para oferecer o quê, afinal?


Peço desculpa por regressar ao tema, mas há coisas que me encanitam. Ouvir Rui Rio declarar, acerca do caso Barreiras Duarte, que o que aconteceu “foi de uma desproporção brutal relativamente àquilo que estava em causa”, é um absurdo tão grande que não pode passar em claro. Rio falou mesmo num “massacre” que “não é bom para a democracia”, e que representa “uma transformação negativa na sociedade portuguesa”. A sério? Ora, tendo sido eu uma das pessoas que mais insistentemente escreveu sobre o assunto, não quero ficar no papel de Touro Sentado enquanto tentam vestir à pressa Barreiras Duarte com as roupas ensanguentadas do general Custer. Se houve algum “massacre”, os responsáveis não são os jornalistas, não são os colunistas, nem são os conspiradores do PSD. O primeiro responsável é Feliciano Barreiras Duarte e o segundo é Rui Rio.

Portanto, convém fixar os factos de uma vez por todas, e alinhavar uma espécie de guia político para totós, de forma a que o actual presidente do PSD não roube a Santana Lopes o recorde – que sempre tive por imbatível – de maior número de gafes destrambelhadas por semana de mandato. Rui Rio nunca será primeiro-ministro, mas a continuar por este caminho desastroso pode espatifar o maior partido da oposição – exercício que, por mais incrível que lhe possa parecer, eu não desejo que pratique. Se o primeiro erro deste processo está na criação de um “visiting scholar” que nunca visitou coisa alguma, não foi por isso que o “massacre” ocorreu. O “massacre” começou no dia em que Rui Rio comentou o caso, e disse: “Há um aspecto do seu currículo que estava a mais, não estava preciso, e ele corrigiu.”

Com esta inteligentíssima frase, que desvalorizava um assunto evidentemente grave, até pelo insuportável histórico de trafulhices académicas da recente política portuguesa, Rui Rio achou que ia ganhar tempo. Mas a única coisa que fez foi dar tempo à comunicação social e aos milhões de portugueses que sabem googlar para se entreterem a investigar mais a fundo a performance académica e política do senhor Feliciano. Tivesse Barreiras Duarte apresentado de imediato a demissão, ou tivesse Rio demitido imediatamente Barreiras Duarte, e o terrível “massacre” – também conhecido como “escrutínio” – jamais teria ocorrido.

Infelizmente para os dois, quando a opinião pública descobriu a famosa tese de mestrado, aquilo que tinha diante de si era de um calibre muitíssimo diferente. Os portugueses depararam-se nesse momento não com um político que dourou o currículo, mas com um homem incapaz de escrever uma frase em português ou alinhavar um raciocínio complexo. Aí a pergunta deixou de ser “como é que ele foi capaz de fazer isto?”, e passou a ser “como é que ele chegou até aqui?”. A primeira pergunta é do domínio da ética e diz respeito ao próprio. A segunda pergunta é do domínio da política e diz respeito a Rui Rio.

É verdade que Rio andou a apregoar banhos de ética, e quando se olha para a sua equipa parece que quer o duche só para ele – mas o problema Barreiras Duarte vai muito além disso. Rui Rio apregoou também um profissionalismo e uma exigência que este caso destruiu pela base, e em cima disso ainda veio queixar-se da comunicação social, como se reclamar por melhores políticos prejudicasse a democracia portuguesa. Eu nunca esperei que Rui Rio trouxesse grandes ideias. Mas sempre esperei que trouxesse seriedade ao debate político. Se ele não traz uma coisa nem outra, tem para oferecer o quê, afinal?

sexta-feira, 23 de março de 2018

A RESPOSTA QUE CALOU OS AMERICANOS! SHOW DO MINISTRO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS

Essa merece ser lida, afinal não é todo dia que um brasileiro dá um esculacho educadíssimo nos americanos!

Durante debate em uma universidade, nos Estados Unidos,o ex-governador do DF, ex-ministro da educação e atual senador CRISTÓVAM BUARQUE, foi questionado
sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia.

O jovem americano introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um Humanista e não de um brasileiro.

Esta foi a resposta do Sr. Cristóvam Buarque:

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso.

"Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a humanidade.

"Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro.O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia
para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou
diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço."

"Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser
internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país.
Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

"Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França.
Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural Amazônico, seja manipulado e instruído pelo gosto de um proprietário
ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês,decidiu enterrar com ele, um quadro de
um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.

"Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York,
como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua historia do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

"Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas
mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maiores do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.

"Defendo a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir à escola.
Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro.

"Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo.
Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia
seja nossa. Só nossa!

Só um tipo muito estúpido é que tem uma empresa


Isabel Stilwell | falecomisabelstilwell@gmail.com 20 de março de 2018

O empresário é um alvo colocado à mercê dos milhares de institutos, direcções, autoridades, departamentos e repartições criados para lhe infernizar a vida. Decididamente, fazemos bem em desconfiar de quem se mete nisso.

Não faltam estudos, documentos e análises a confirmarem que o nível de instrução dos empresários portugueses é uma autêntica desgraça, com escolaridade inferior à média dos trabalhadores, na maioria dos casos não ultrapassando o ensino básico.

Muitos acreditam que reside aí uma das justificações para a baixa produtividade nacional. O problema não estaria nos trabalhadores, mas em quem os comanda, que em muitas das vezes não percebe patavina do que anda a fazer e sabe tanto de gestão e estratégia como eu de medicina quântica. Reforça a tese a percepção que gostamos de alimentar (não interessa nada se certa ou errada) de que os "nossos" emigrantes são umas estrelas da companhia "lá fora", enquanto se encostam e fazem ronha "cá dentro".

E embora nenhum desses estudos esclareça se as limitações dos empresários decorrem do facto de não terem tido instrução capaz ou se é por serem tão limitados que não conseguiram ir mais longe na escola, alguma coisa se passa. Porque se analisarmos as complicações que decorrem para a vida de um qualquer indivíduo a partir do malfadado dia em que lhe passou pela cabeça trocar a estabilidade do emprego para se lançar numa aventura empresarial, concluímos que, realmente, é necessária uma dose elevada de estupidez para alguém ser empresário neste país.

No início, parecem só facilidades. Basta pôr um emblema de start-up na lapela para ser convidado para conferências e "sumits", recebendo elogios e palavras de encorajamento de governantes e dando entrevistas a torto e a direito, que mais agravam a inconsciência do logro em que está metido.

É apenas quando a poeira assenta e é entregue a si próprio que começa a perceber que o empresário é basicamente um alvo colocado à mercê dos milhares de institutos, direções, autoridades, departamentos e repartições, cuja principal ocupação é dificultar a vida às empresas e seus proprietários, com regras, decretos, determinações e normas cujo integral cumprimento acarreta a necessidade de contratar advogados, contabilistas e técnicos vários, arrasando logo à partida o equilíbrio económico do negócio.

Os poucos que conseguem ultrapassar esta fase e sobreviver são irremediavelmente acometidos do "trauma postal". Trata-se de uma síndrome que determina o aumento do nível de ansiedade à chegada do correio perante a inevitabilidade de o mesmo lhe trazer a notícia de uma qualquer infração às 5.327 regras a que está obrigado, acompanhada do anúncio de coimas e multas aplicáveis e ameaças várias de condenação por crimes hediondos.

Por fim percebem que não escapam a essas investidas, por muito que tentem ser rigorosos e invistam tempo e dinheiro a procurar minimizá-las. E compreendem também que não podem contrariar a máquina controladora que deles se alimenta, e que parte do pressuposto de que não passam de malandros decididos a ganhar dinheiro à custa dos outros, ou seja, cidadãos duvidosos que têm de ser tratados com rédea curta.

E, no fundo, não é que têm razão? Se fossem pessoas inteligentes e bons chefes de família, tinham-se ficado pelo trabalho por conta de outrem, como a maioria de nós. De facto, se andam a brincar às empresas é seguramente porque preparam alguma - é penalizá-los por conta, já!

terça-feira, 20 de março de 2018

A invasão do Iraque foi há 15 anos – sobrou a violência, a corrupção, o sectarismo

Há uma “epidemia” chamada corrupção e grupos étnicos e religiosos que não voltaram a confiar uns nos outros. Há um país por reconstruir e a ameaça do terrorismo e da desintegração – da Síria ou do Iraque
SOFIA LORENA 20 de Março de 2018


O ultimato tinha data e hora, mas quando o momento chegou nada aconteceu. Alguns iraquianos foram deitar-se, outros permaneceram à espera. Quando George W. Bush surgiu nos ecrãs de televisão de canais em todo o mundo, já caíam bombas no Iraque. As primeiras, junto à fronteira com a Síria, logo depois, em Bagdad, numa chuva de bombas que horas depois saberíamos ter sido apelidada “choque e pavor”.

Passaram 15 anos da invasão e do início da guerra, já houve diversas declarações de “missão cumprida”, mas a insegurança nunca mais desapareceu. Hoje morre-se muito menos, mas nunca mais houve um dia sem mortes violentas. Entretanto, há mais gerações de iraquianos que só conhecem a guerra. O actual primeiro-ministro, Haidar al-Abadi, lamenta “os erros da ocupação”, mas pede aos Estados Unidos que não abandonem o país “antes de concluir o trabalho”, poucos meses depois de ele próprio ter declarado “vitória” sobre o Daesh.

“A esta hora, forças americanas e da coligação iniciaram as fases iniciais das operações para desarmar o Iraque, libertar o seu povo e defender o mundo de um grande perigo”, anunciava Bush.

Assim começava a invasão anglo-americana – a chamada “coligação de voluntários”, países dispostos a participarem numa guerra ilegal, era essencialmente constituída pelos EUA e pelo Reino Unido, governado então por Tony Blair. Mas muitos países, incluindo Portugal, participaram com contingentes pequenos ou médios (no caso de Portugal, a participação fez-se através da GNR). Aliás, o ultimato tinha sido decidido dias antes numa cimeira realizada nos Açores, com o então primeiro-ministro Durão Barroso a servir de anfitrião a Bush, Blair e José María Aznar.

O Iraque não foi desarmado porque, afinal, as tão apregoadas armas de destruição maciça nunca apareceram. O povo iraquiano livrou-se de Saddam Hussein, é certo, mas são tantos os iraquianos que nos últimos anos se arrependeram de ter desejado ver o ditador pelas costas. “Antes tínhamos um Saddam, agora temos 100”, repetem.

“Com Saddam, podíamos fazer o que quiséssemos desde que não nos envolvêssemos na política e não fizéssemos nada contra o governo”, diz agora à Al-Jazira Sami Josef, cristão de Bagdad com 32 anos que perdeu o tio em combate com os EUA. “Até hoje, peço a Deus descanso para a alma de Saddam”.

O povo que se pretendia libertar morreu às centenas de milhares (segundo alguns estudos, são mais de dois milhões os mortos), conheceu o terrorismo da Al-Qaeda, que ali se desenvolveu para combater os EUA até se tornar no Daesh que aterrorizou sírios e iraquianos. O mundo, definitivamente, não ficou menos perigoso.
Pobreza extrema

Pelo menos um quarto dos iraquianos vive hoje na pobreza extrema – os últimos dados, de 2017, apontam para uma população de 39 milhões com a idade média de 20 anos. Há muito desemprego, principalmente entre os jovens mais qualificados. E ainda são muito poucos os iraquianos com acesso permanente a água e electricidade.

Na semana passada, o Presidente, Fuad Masum, recusou-se a aprovar o orçamento de 2018 por causa de “violações legais e constituições”: o chefe de Estado é curdo e os deputados curdos boicotaram a votação no Parlamento por causa da diminuição dos fundos atribuídos à sua região autonómica.

De nada parecem valer os sinais de paz enviados por Abadi, que permitiu a reabertura dos aeroportos do Curdistão Iraquiano aos voos internacionais e esta segunda-feira decidiu pagar, pela primeira vez desde 2014, os salários dos funcionários públicos da região.
Eleições em Maio

Com eleições legislativas previstas para Maio, Haidar estará a tentar normalizar as relações entre o Governo central e Erbil, depois do referendo sobre a independência que os curdos realizaram em Setembro – a verdade é que as relações nunca foram boas e com alguns curdos a manterem vivas as ambições de terem um Estado próprio, dificilmente alguma vez serão normais.

Horas depois do anúncio do envio de dinheiro para Erbil, a Turquia exigia a Bagdad que “expulse os grupos de militantes curdos do Norte do Iraque”, ameaçando “lançar uma operação na zona”, se necessário. Não seria a primeira vez. Os combatentes curdos turcos treinam desde sempre nas montanhas do Norte iraquiano e Ancara já os bombardeou várias vezes. Agora, que acaba de tomar Afrin, na Síria, aos curdos deste país, tem pressa em pôr os combatentes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) no seu lugar.

No Iraque destes últimos 15 anos morreu-se de tudo, e ainda se morre, só que menos. À invasão, seguiu-se uma ocupação que destruiu todas as estruturas de Estado existentes e alienou a população árabe sunita (minoritária mas privilegiada nos tempos de Saddam), que constituía grande parte das forças militares e do funcionalismo público.

A guerra civil tornou-se inevitável: no pico, entre 2006 e 2008, morriam centenas de pessoas por dia e mais de cinco milhões fugiram do país – muitos destes encontraram abrigo em Damasco, de onde tiveram de voltar sem saber o que encontrariam, quando a revolta dos sírios foi brutalmente esmagada pelo seu regime em 2011.

Houve alguns períodos de acalmia, mas a vida nunca voltou a ser a mesma. Centenas de milhares deixaram de ter como pagar a renda e ocuparam antigos hospitais ou o que restava de bases militares. Outros, tornaram-se deslocados internos em fuga de ameaças. As bombas e os ataques de milícias foram substituídos por checkpoints sem fim. Mas parte da população tem medo da polícia e do Exército; com os xiitas no poder, as forças de segurança são na sua maioria formadas por este grupo religioso.
Os mortos do Daesh

Depois da Al-Qaeda no Iraque, e da brutalidade sem antecedentes do seu líder, o jordano Abu Mussab al-Zarqawi, os jihadistas sobreviventes, muitos com longas temporadas passadas em prisões americanas no país, reagruparam-se. Assim nascia o Daesh, que começou por decapitar sírios até que o mundo acordou para a tragédia quando os decapitados começaram a ser americanos e britânicos.

Em 2014, o grupo nascido no Iraque mas que começou por aproveitar os vazios de poder na Síria, reentrava como um relâmpago no país do Tigre e do Eufrates, tomando províncias como Anbar e cidades como Mossul, a segunda maior do país. Escravizaram minorias, transformaram crianças pequenas em bombistassuicidas.

Os três anos de operações militares (com apoio aéreo dos EUA e terrestre do Irão) para destruir o Daesh culminaram numa batalha de nove meses para recuperar o controlo de Mossul, com pelo menos dez mil civis mortos. Os jihadistas foram derrotados mas não desapareceram: há uma semana, dois ataques lançados pelo grupo mataram pelo menos dez pessoas nas províncias de Mossul e Kirkuk, incluindo um xeque tribal sunita.

É provável que hoje não cheguem notícias de todas as mortes violentas, já que os jornalistas internacionais no país são quase inexistentes. Aliás, com as atenções viradas para outras zonas do mundo, como as Coreias ou as constantes demissões na Casa Branca, já nem a Síria merece a cobertura que deveria ter (já para não falar do Iémen, entre outros conflitos).

“Pagámos a dobrar: quando o Daesh invadiu o Iraque vindo da Síria, causaram milhões de deslocados, mataram muitas pessoas; depois veio a segunda fase, quando começámos a libertar as nossas áreas. A destruição é gigantesca”, diz o primeiro-ministro Haidar, entrevistado pela revista Time no seu gabinete dentro da Green Zone, sede da ocupação dos EUA. “Estimámos que precisamos de 46 mil milhões de dólares (37 mil milhões de euros), sem contar com habitação, e outros 45 mil milhões só para as casas que foram destruídas. Sabemos que o mundo não está pronto para uma doação destas”.
“Quero sentir-me seguro”

Haidar explica que é por isso que aposta noutra frente e está a “encorajar o investimento externo”. De acordo com os seus contactos, garante, já ninguém tem medo da segurança, o problema é mesmo “a epidemia da corrupção”. “Este combate é muito difícil. A mudança fundamental é tornarmos o nosso sistema mais transparente, removermos a burocracia. Porque a corrupção esconde-se na burocracia”.

Os políticos iraquianos asseguram que nunca se viveu tão bem no Iraque desde 2003 como agora – nem todos os iraquianos concordam. “O meu irmão mais velho cresceu uns anos antes de mim e tinha amigos de diferentes províncias. Eu já só tenho amigos de Anbar [fronteira com a Síria, província de maioria sunita], não conheço ninguém de Bassorá [principal cidade e província do Sul xiita] nem de nenhuma outra zona”, diz à Al-Jazira Mahmoud Zaki, 34 anos. “Por causa do que aconteceu com a invasão e o sectarismo que veio depois, o tecido da sociedade partiu-se, afastámo-nos uns dos outros”.

Zaki, que passou dois anos em prisões americanas sob suspeita de apoio à rebelião, diz que não quer ser rico nem tem ambições extraordinárias para o futuro. “Só quero uma vida decente, quero sentir-me seguro, quero que a minha família esteja segura”. Não é pouco.

sexta-feira, 2 de março de 2018

O fim de um mundo


2 de Março de 2018


ANTÓNIO GUERREIRO





Há pouco mais de um ano, Emily Bell, directora do Tow Center for Digital Journalism, depois de ter chefiado o sector digital do diário britânico The Guardian, publicou um artigo numa revista dos Estados Unidos que teve um grande impacto, onde anunciava um dos muitos “fins” que configuram o nosso tempo. Título do artigo: “O fim do mundo tal como o conhecemos: como o Facebook devorou o jornalismo”. Não se pode dizer que seja uma daquelas catástrofes espectaculares, de grandiosos efeitos. Nada disso, é uma catástrofe serena cujo alcance e consequências ainda não foram experimentadas até ao fim e estão em grande parte por avaliar. Há quem diga que o pior ainda está para vir. Como os jornais não gostam de se apresentar a nu perante os seus leitores (acreditam que falar dos seus males é potenciá-los), pouca gente percebe o que se passa e os que percebem acham que apenas há a registar uma morte natural e portanto inelutável. Na mesma ocasião, Emily Bell lançou este dado impressionante: “Em cinco anos, o ecossistema da informação sofreu uma mudança mais vasta do que a que se deu ao longo dos 500 anos precedentes.” Já este ano, a revista Wired publicou uma longuíssima investigação que tinha como título “Inside the Two Years that Shook Facebook – and the World”. Fazia-se aí o retrato de uma rede social que acabou por dominar o mundo dos media, ainda que não queira ser uma empresa desse ramo. Em 2015 superou o Google enquanto veículo para a circulação de conteúdos jornalísticos na Internet, tornando-se a força dominante na indústria das notícias, tanto as falsas como as verdadeiras. E isto, como sabemos, teve profundas implicações éticas e políticas. E levou a uma discussão sobre o impacto desta rede social nas democracias. Em Janeiro, Mark Zuckerberg mudou o algoritmo do Facebook e prometeu um maior controle sobre as notícias falsas, depois de se ter tornado muito evidente que a rede era muito vulnerável tanto à mentira como à propaganda e que, sob determinadas condições, se tinha tornado um instrumento com vocação totalitária. A ingerência russa nas eleições americanas contribui para uma nova percepção pública do Facebook, uma imagem que Zuckerberg quis corrigir. Antes da mudança do algoritmo, já ele tinha decidido realizar uma experiência em seis países (Sri Lanka, Guatemala, Bolívia, Cambodja, Sérvia e Eslováquia) que consistiu em eliminar os media profissionais, de modo a privilegiar os conteúdos privados. Foi uma decisão muito contestada, considerada “de cariz orwelliano”. O que se passa é que os jornais se tornaram tão vulneráveis às decisões desta rede social que até uma pequena variação do algoritmo pode ditar-lhes a sorte. Conter e filtrar as fake news causa danos a quem produz notícias verdadeiras. O Facebook tornou-se mais poderoso que os media e ganhou o estatuto de plataforma que é também editora, algo que não fazia parte da sua vocação original. Mas não é apenas por se ter tornado o principal veículo das notícias que está a destruir a indústria mediática: é também porque concentra o mercado publicitário, do qual apenas umas migalhas sobram para os jornais. Poderiam os jornais deixar de servir de alimento a essa rede social tão voraz? Certamente que podiam, mas estão enredados num terrível paradoxo, para o qual não encontram saída: ao mesmo tempo que são devorados pelo Facebook, não conseguem sobreviver sem ele. E, num plano mais vasto, todos nós fomos apanhados nesta estratégia fatal: quer queiramos quer não, tornámo-nos todos produtores de conteúdos para o Facebook e não há maneira de conseguirmos resistir.