quinta-feira, 6 de março de 2014

'Almofada financeira': Sete questões, sete pecados?



por VIRIATO SOROMENHO MARQUES E RICARDO CABRALHoje18 comentários

A retórica de sucesso nas operações de "regresso aos mercados", contrasta com as graves consequências da aparente falta de prudência na gestão do erário público, e não dissipa as dúvidas sobre se o controlo parlamentar, exigido pela Constituição e pela Lei-Quadro da Dívida Pública(LQDP), está a ser respeitado.
Desde 2011 o Governo passou a manter uma importante "almofada financeira", ou seja, um nível significativo de depósitos. No final de 2011, de acordo com a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), essa "almofada financeira" representava 8,4% do PIB (14,4 mil milhões de euros). Inicialmente foi uma almofada involuntária, consequência do memorando assinado pela troika que obrigava o Governo Português a utilizar euro12 mil milhões de euros do financiamento do programa de resgate para recapitalizar a banca.
Essa "almofada financeira" não está prevista na LQDP e até poderá considerar-se incompatível com os princípios da gestão eficiente da dívida pública e da minimização de custos consagrados nessa lei (art.os 2.º e 12.º). Estranhamente, não obstante a utilização dos fundos da "almofada financeira" para as recapitalizações bancárias (entre junho de 2012 e janeiro de 2013 foram utilizados 5,6 mil milhões de euros, do fundo de recapitalização da troika), a "almofada financeira" em vez de diminuir aumentou até 10,5% do PIB (17,2 mil milhões de euros) no final de 2013. Isso significa que houve uma ação deliberada do Governo ou do IGCP para aumentar o seu montante.
Primeira questão: a Assembleia da República mandatou o Governo ou o IGCP para criar e aumentar a dimensão da "almofada financeira"? A margem de manobra que as leis do Orçamento do Estado cedem ao Ministério das Finanças para o "reforço das dotações para amortização de capital" não constitui base legal alternativa suficiente ao estipulado pela LQDP.
Segunda questão: quem tem competência legal para definir a dimensão adequada da "almofada financeira" e para a gerir? Na prática, quem aparenta assumir essas competências é o IGCP. Mas não estarão em causa, nos termos do art.º 161.º da Constituição da República Portuguesa, competências do Parlamento?
A "almofada financeira" tem custos exorbitantes: o dinheiro que o Estado deposita junto do Banco de Portugal rende 0% por ano; o dinheiro que o Estado pediu emprestado à troika tinha, em abril de 2013, uma taxa de juro média de 3,2%, de acordo com o IGCP; o dinheiro que o Estado pediu emprestado em quatro emissões sindicadas de dívida de médio e longo prazo desde janeiro de 2013 (um total de 11 750 milhões de euros), tem uma taxa de juro média de 5,08%; e as emissões sindicadas têm ainda custos em termos de comissões pagas a bancos.
De acordo com as nossas estimativas, a taxa de juro bruta que deveria ser imputada a essa "almofada financeira" é de 4,4%. Portanto, a despesa bruta com juros de uma "almofada financeira" de tal dimensão é de 755 milhões de euros por ano.
Terceira questão: a Assembleia da República autorizou, especificamente, o Governo a realizar essa despesa em juros com a "almofada financeira"?
Ao aprovar (os mapas) da Lei do Orçamento do Estado, a Assembleia da República autoriza um dado nível de despesa com juros (em 2014, foram autorizados 7239 milhões de euros de despesa com juros). Contudo, se a "almofada financeira" tem custos brutos diretos de 755 milhões por ano, superiores ao orçamento de vários ministérios, a questão de uma autorização específica coloca-se como exigência legal e de ética pública elementar.
Sobre as duas recentes operações financeiras do IGCP: O artigo 4.º da LQDP define que a Assembleia da República estabelece, por lei, para cada exercício orçamental, as "condições gerais a que se deve subordinar [...] a gestão da dívida pública".
Na primeira das operações do IGCP, realizada a 11 de fevereiro de 2014, o Estado, apesar da volumosa almofada já constituída, pediu dinheiro emprestado: foi uma emissão "sindicada" de 3000 milhões de euros de obrigações de tesouro a uma taxa de juro de 5,11%. Na segunda, realizada a 27 de fevereiro de 2014, o Estado pagou parte de dois empréstimos antigos, antecipando em 7,5 e 19,5 meses o seu vencimento: uma operação de recompra de parte de duas séries de obrigações de tesouro que venciam em 15 de outubro de 2014 e 15 de outubro de 2015. Essas operações, tal como outras anteriores, que se inserem nas operações de gestão da dívida pública (artigo 12.º da LQDP) levantam as seguintes questões.
Quarta questão: dado o elevado montante dessas operações de gestão de dívida, não deveriam ser elas objeto de autorização específica da Assembleia da República?
Analisando a emissão sindicada a 11.2.2014 e a recompra em 27.2.2014 das obrigações que vencem a 15 de outubro de 2015, conclui-se que para conseguir recomprar 1026,6 milhões de euros dessa dívida o Estado pagou, em média, 103,437 euros por cada 100 euros de dívida. Isso significa que a dívida recomprada tinha uma taxa de juro implícita de 1,19%.
Há quem, olhando somente para a segunda operação, refira que o Estado poupou com essa operação de recompra perto de 20 milhões de euros em juros até outubro de 2015, esquecendo que o Estado irá gastar, durante esse mesmo período, 4,3 vezes mais na despesa com os juros dos fundos que utilizou para recomprar essa dívida. De facto, como o Estado se financiou, na emissão sindicada, à taxa de juro de 5,11% e utilizou esse dinheiro para recomprar dívida que rende 1,19%, esta operação de gestão de dívida custou 3,92 pontos percentuais (5,11% -- 1,19%), a que acrescem as comissões para os bancos do sindicato bancário. Ou seja, da emissão de 1026,6 milhões de euros de uma série de obrigações de tesouro e subsequente recompra dos mesmos 1026,6 milhões de euros de outra série de obrigações do tesouro resultou um aumento da despesa pública de, pelo menos, 40,14 milhões de euros por ano até à maturidade da segunda série de obrigações (15.10.2015). No atual quadro de restrição financeira é difícil compreender a realização de operações de "gestão da dívida" cujos principais efeitos são aumentar a despesa com juros e agravar a taxa de juro média da dívida da República.
Quinta questão: como pode a Lei do Orçamento de 2014 ser tão específica com cortes de salários e pensões e não impor (artigos 132.º e 136.º) quaisquer limites a taxas de juro e a operações de gestão de dívida, permitindo aumentos da taxa de juro em 4 pontos percentuais ou superiores numa mera operação de gestão de dívida?
Sexta questão: dado o montante do aumento da despesa com juros e/ou dívida deste género de operações ditas de gestão de dívida, não deveria a Assembleia da República fixar um limite para a despesa (em juros) e para as menos-valias resultantes de tais operações?
Sétima questão: o IGCP, em diversos roadshows internacionais tem anunciado a sua estratégia publicamente. Em resultado, investidores do sector privado podem antecipar as recompras do IGCP em vários meses e obter retornos elevados, à custa de um menor retorno para o erário público. Afirma-se que a recompra visa "antecipar a entrega de liquidez aos investidores", tentando seduzi-los para próximas emissões de dívida de longo prazo. Não se percebe se o que está em causa é aliviar o garrote da dívida do Estado, ou colocar os contribuintes a dar prémios de antecipação aos credores! Não seria mais justo e estimulante para a saúde económica do País se o Estado cedesse liquidez às PME, saldando as dívidas pendentes de mais de três mil milhões de euros, que tantas falências e desemprego provocam?

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