Solidariedade e equidade entre gerações e a infame guerra aos velhos
Por João Cravinho
30/12/2013 -
Portugal 1973-1993-2013
Para pessoas decentes e bem formadas, a guerra aos velhos promovida pelo primeiro-ministro a pretexto da justiça e equidade entre gerações é absolutamente infame.
A solidariedade e equidade entre gerações são princípios civilizacionais basilares. É nesse terreno fecundo que se enraíza e aprofunda a ética de responsabilidade que, por todo o lado e a cada momento, procura construir as necessárias pontes entre presente e futuro, individual e colectivo.
Nenhuma sociedade contemporânea minimamente decente e justa será sustentável contra essa ética de responsabilidade alicerçada na solidariedade e equidade entre gerações. Na eventualidade da sua derrota ou significativo enfraquecimento, a decência e a justiça não tardariam a ficar aplastadas pela sua subordinação à iniquidade e ao egoísmo que resultariam inexoravelmente do princípio alternativo neoliberal: cada um por si e salve-se quem puder.
Está em curso a revogação prática do pacto social baseado nos princípios da solidariedade e equidade entre gerações. A estratégia escolhida é a do facto consumado, desprezando a fundamentação e a consensualização através do normal funcionamento do processo político, designadamente no plano da sua conformidade constitucional. O instrumento preparatório dessa subversão é a guerra entre gerações projectada nacionalmente pelo próprio primeiro- ministro, que procura levantar a seu favor o ressentimento, a animosidade e a agressividade de novos contra velhos.
Denunciados como perigosas ameaças à salvação das finanças públicas e ao bem-estar futuro das novas gerações, maltratam-se os velhos como se estivessem a beneficiar de pensões excessivamente generosas e imerecidas à custa de mais impostos e/ou mais dívida pública, parasitando as gerações ativas, sobretudo as novas gerações.
Maltratam-se também como se fosse vital para o país castigá-los publicamente, acusando-os de predadores insaciáveis de rendimentos alheios para os quais nada teriam contribuído, máxime dos rendimentos das novas gerações. Explícita ou subliminarmente, a guerra contra os velhos assenta na ideia, suposta óbvia e incontroversa, de que os velhos roubariam às novas gerações qualquer possibilidade de melhoria futura do seu bem-estar, de tal maneira pesado seria o fardo que pretenderiam impor-lhes. Na nossa história não haveria roubo maior e mais iníquo.
Vejo com verdadeiro horror a guerra entre gerações que o primeiro-ministro vem promovendo. Tenho para isso quatro razões sólidas.
Em primeiro lugar, por uma questão de princípios civilizacionais basilares que presidem à minha visão da boa sociedade, como já referi.
Em segundo lugar, porque as transferências entre gerações funcionam de modo exactamente contrário ao que vem sendo falsamente propagandeado: os beneficiários líquidos têm sido historicamente as gerações mais novas e não as mais velhas. De facto, as investigações mais profundas e documentadas até hoje efectuadas provam, contra os resultados enviesados na base do enganador quadro informacional da primeira vaga da contabilidade dita geracional, que nos países ocidentais, no cômputo geral de uma vida, o dinheiro tem ido dos velhos para os novos e não em sentido contrário.
Em terceiro lugar, porque mesmo que as gerações mais velhas venham a ser beneficiárias líquidas no exclusivo plano das transferências entre gerações – o que é muito provável nas próximas décadas, em data variável de país para país – o quadro de avaliações de equidade entre gerações tem de ter em conta muitos outros domínios, para além das transferências que, frequentemente, são apenas uma parte menor desse quadro. O quadro geral de avaliações tem de ponderar o balanço dos legados recebidos e transmitidos entre gerações, em especial intervivos mas não só, bem como os correspondentes beneficiários líquidos na sucessão do tempo.
Cada geração, e cada indivíduo, vive, realiza-se e ganha a sua vida aos ombros das gerações precedentes que lhe fizeram o legado de sucessivos blocos de capital humano, de capital cultural, organizacional e social e de capital físico infra-estrutural ou directamente produtivo. Os legados geracionais de todas estas formas de capital contribuem decisivamente para o bem-estar colectivo e individual das novas gerações. Deste ponto de vista é abundantemente claro que o legado das gerações hoje na reforma ou muito próxima dela abriu e continuará a abrir às novas gerações um quadro de possibilidades e competências infinitamente mais vasto do que aquele que receberam.
O Portugal de hoje não é de modo algum comparável ao Portugal dos anos 50 e 60 do século passado, muitíssimo mais pobre tanto no plano do rendimento e nível de vida como no do capital humano, cultural, organizacional, social, infra-estrutural e produtivo. A diferença, quase que abissal, é benefício líquido das novas gerações obtido na base do esforço e investimento das gerações que hoje estão na reforma ou próximo dela. As novas gerações, por mais que venham a cumprir o pacto social intergeracional em vigor até recentemente, nunca chegarão a fechar o seu saldo devedor para com as velhas gerações.
E é perfeitamente natural e justificado que assim seja no contexto das vicissitudes a que o nosso desenvolvimento foi longamente submetido. O que não é natural, e muito menos admissível, é que se faça tábua rasa desse enorme contributo das velhas gerações para o bem-estar e o nível de vida das novas gerações, no presente e no futuro. Nomeadamente, é completamente falsa e aberrante a afirmação de que as velhas gerações em pouco ou nada contribuíram ou contribuirão para o rendimento das novas gerações. Esta matéria é de fácil comprovação. Mas não sendo este o espaço apropriado para a fazer, basta ter em conta, a título ilustrativo, o importantíssimo impacto incremental das superiores qualificações educacionais e competências investidas nas novas gerações, quer à custa dos esforços e sacrifícios directos das velhas gerações, quer indirectamente mediante as transformações socioeconómicas e ocupacionais por elas agenciadas.
Em quarto lugar, as projecções de longo prazo publicadas pela Comissão Europeia demonstram que, salvo ocorrência de cataclismo europeu prolongado por décadas, os rendimentos médios das novas gerações disponíveis para utilização em benefício próprio excederão em muito os quantitativos médios correspondentes usufruídos pelas velhas gerações, no cômputo geral de todo um percurso de vida activa. A margem de progressão da nossa produtividade é de tal maneira grande que a melhoria significativa do nível de vida das novas gerações só poderá ficar em dúvida se elas próprias forem excepcionalmente negligentes ou incapazes de fazer bom uso das competências nelas investidas pelas velhas gerações. Os ganhos adicionais do PIB potencialmente ao alcance do melhor uso das competências herdadas são enormes, quanto mais se essas competências forem devidamente actualizadas e reorientadas para relançar com mais força a aquisição e uso de novas e superiores competências.
Tudo visto, os velhos hoje impiedosamente fustigados pelo Governo de Passos Coelho colocaram os seus deveres de solidariedade e equidade muito acima da simples reciprocidade. E confiaram na justiça que lhes é devida. Não são sanguessugas predadoras do bem-estar das novas gerações. Bem pelo contrário, fizeram da grande maioria dos indivíduos das novas gerações grandes beneficiários líquidos do seu legado.
Nestas circunstâncias, é moralmente abjecto e factualmente doloso que se promova a guerra contra os velhos em nome da pretensa justiça e equidade entre as gerações
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