REMORSOS DE UM BANQUEIRO MULTIMILIONÁRIO. “EM 21 MESES PERDI MAIS DE 4 MIL MILHÕES”
Guy Hands é um investidor de capitais privados famoso por comprar empresas, reestruturá-las e vendê-las com grandes lucros. Agora escreveu um livro brutalmente honesto sobre o mundo de negócios de alto risco e as suas consequências emocionais.
Antes de começarmos, deixe-me dizer-lhe algo raro sobre Guy Hands, que nada tem a ver com os 2.500 milhões de libras que ele perdeu em 2011 ou com os cerca de 1.000 milhões – ele não referiu o valor exato – que recuperou desde então e tudo a ver com as suas mãos.
Neste momento, na sua cozinha soalheira, com as suas janelas corridas com vista para o mar, estão levemente entrelaçadas, agitando-se no ar ao ritmo do seu discurso. Mas estas não são as mãos de um executivo de alta finança de 62 anos com uma nuvem plácida de cabelo branco. São as mãos de uma criança: sem poros, nem rugas, nem pelos. Será que ele usa creme hidratante, pergunto-lhe, pensando que talvez sejam mesmo assim as mãos de uma pessoa rica. Ele diz, enfaticamente, que não. Depois vira as palmas para mim, devagar, como um ilusionista prestes a fazer uma revelação dramática e… são lisas!
As suas palmas são quase completamente lisas. Têm apenas as linhas básicas: cabeça, vida, destino. "É muito estranho", reconhece. "Quase não tenho impressões digitais". Ele levanta a ponta do dedo indicador. Está vazia, à exceção de duas linhas verticais – II – semelhantes a um símbolo matemático. Fazem disparar os detetores nos aeroportos, diz. "Tenho de fazer registos eletrónicos porque não conseguem obter a minha impressão digital". Ele seria um excelente criminoso, sugiro. "Acho que não nasci. Parece-me que é isso."
Poderíamos aproveitar esta oportunidade para introduzir uma metáfora sobre como Guy Hands fez carreira a construir instituições de renome como a William Hill e a Odeon Cinemas, reestruturando-as e vendendo-as rapidamente, deixando poucas impressões digitais, ao melhor estilo das empresas de capitais privados, antes de embater contra a opinião pública quando adquiriu a empresa discográfica EMI, um negócio que correu pessimamente e se transformou num conto admonitório sobre a ganância de um investidor durante uma crise financeira.
Ou poderíamos sugerir, em tom de brincadeira, que a sua particularidade genética é sinistra, uma prova de casco fendido, tal como o terceiro mamilo de Scaramanga, de que ele é uma força malevolente entre nós. Contudo, nenhuma destas hipóteses se aproxima minimamente de contar a história da vida de Hands como ele próprio o faz na sua dramática autobiografia, The Dealmaker, da Penguin Books.
Hands é CEO da Terra Firma Capital Partners, empresa por si fundada em 2002, e tornou-se praticamente a razão pela qual a maioria dos civis alguma vez ouviram falar em capitais privados em meados da década de 1990, quando, durante algum tempo, foi a maior empresa do seu género na Europa. Antes disso, trabalhara no Nomura, o banco de investimento japonês, onde geriu um departamento de capitais privados, e no Goldman Sachs, a partir de onde observou a transformação da City: do sítio embriagado, libertino, racista e sexista que era na década de 1980 para o sítio tecnológico, arrogante, racista e sexista que era na década de 1990. A verdade é que Hands é uma daquelas pessoas que roça a fama simplesmente por ser rico. E o seu nome – Guy Hands – fica na memória. Nem conseguimos acreditar que é um nome real de uma pessoa real.
The Dealmaker deve ser o único livro que existe sobre capitais privados que parece um thriller. Algumas páginas após o começo, Guy Hands está num bunker cravejado de balas e salpicos de sangue nos arredores de Moscovo onde dois russos, chamados Big Peter e Little Peter, o ameaçam de morte "a não ser que eu concorde com o negócio (um offtake contract – um acordo para uma venda futura – para um empreendimento petrolífero no valor de várias centenas de milhões de dólares). Hands continua a dizer que não: uma demonstração do seu caracter. Consegue fugir, mas recebe um postal de Natal dos russos com uma fotografia dos seus filhos. Esse episódio aconteceu em 1995. Hands ficou tão traumatizado com a experiência que nunca mais fez negócios com russos. E tão traumatizados ficaram os dois colaboradores que o acompanharam nessa viagem que se casaram um com o outro.
Mais tarde, adquiriu uma cadeia de pubs no East End que sofreu um incêndio quando ele se recusou a vendê-los (o que o fez mudar de ideias). Há ainda o relato de uma perseguição assustadora no túnel Dartford Tunnel com um motociclista todo vestido de cabedal e traficantes de cocaína que ameaçaram matá-lo por reduzir as despesas com o pessoal na EMI. Ele até tem uma história [com um departamento de impostos do governo britânico]. A razão pela qual ele vive atualmente em Guernsey) na cena fiscal mais intensa que o leitor alguma vez lerá, na qual ele gasta 20 milhões de libras só em advogados e contabilistas.
No centro de tudo isto, encontra-se o protagonista, Hands, um génio matemático com um conhecimento brilhante de sistemas complexos, mas como uma dislexia tão grave que tem a velocidade de leitura de uma criança de 13 anos, uma dispraxia tão grave que mal pode acelerar acima dos 50 km/h e um transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) tão incapacitante que lhe causa um vício péssimo para a saúde: batatas assadas. Li as primeiras palavras de The Dealmaker a bordo de uma avioneta a caminho de Guernsey para me encontrar com ele e não fazia a menor ideia do que me esperava.
Bem, acho que a casa de estilo moderno com vista panorâmica para o mar não seria assim tão inesperada. Ou a fabulosa arte – paredes e mais paredes revestidas pelo mesmo artista, Stanley Spencer. Mas não havia heliportos, nem Ferraris.
Guy Hands está na cozinha. Esta manhã teve de fazer uma visita de urgência ao dentista no horário que costuma dedicar ao seu yoga. Yoga, Pilates, psicoterapia, hipnose, relaxamento, alimentação saudável (mais ou menos) e ter amigos com quem pode conversar sobre os seus sentimentos são coisas que fazem parte da sua nova vida após os 60 anos, tema ao qual voltaremos mais tarde.
Primeiro: a loucura do dinheiro. Nos anos antes e depois da crise financeira, as empresas de capitais privados – que pedem emprestadas grandes quantias de dinheiro para comprar e vender empresas inteiras – foram o enfant terrible da City. Para os seus defensores, as empresas de capitais privados revitalizam negócios preguiçosos. Para os seus críticos, desumanizam as empresas geradoras de emprego tratando-as como um bem que transacionam em troca de dólares rápidos. Hands insiste que todos os grandes investimentos são pessoais.
É obcecado com justificar as suas decisões sobre o centro de negócios Wyevale, que desmantelou, e o grupo de residências assistidas do Four Seasons, que perdeu 450 milhões de libras e foi retomado pelos credores.
Insiste que adquiriu a EMI porque adorava música e que esse foi o seu único momento emocional numa carreira de negócios altamente racional. Sempre foi "obcecado" com os Stranglers e a onda "anti-establishment do punk". Ele é punk, na verdade, se pensarmos bem nisso, se for possível ser-se punk e multimilionário da alta finança em simultâneo. Por isso, quando se tornou CEO da EMI, achou que estava ao lado dos artistas, que era um dos criativos.
Foram os tipos da A&R (Artistas e Reportório) que o puseram doente: homens de meia-idade que mandam nos jovens talentos. Hands encontrou provas da sua corrupção por todo o lado: as festas colossais com todas as despesas pagas para as quais os artistas nem sequer eram convidados, os subornos em grandes negócios com managers amigalhaços. Ao examinar os livros, descobriu que a EMI era dona de um apartamento de 5,6 milhões de libras em Mayfair, fazia despesas anuais no valor de 20 milhões de libras em "fruta e flores", que veio a descobrir ser o nome de código para cocaína e acompanhantes de luxo. Havia um funcionário que ganhava 20 milhões de libras por ano para contratar novos talentos e não contratava ninguém há dez anos. Havia o hábito de enviar caixas de discos para o estrangeiro e incluir os discos nos números das vendas, apesar de a maioria estar guardada em armazéns.
No entanto, mesmo tendo razão, Guy Hands não conseguiu ter sucesso. Os artistas não o consideravam um aliado. O manager de Robbie Williams dirigiu-lhe um "insulto violento"; Lily Allen disse à comunicação social, "Odeio a Terra Firma [empresa de Hands que comprou a EMI]." Os Radiohead despediram-se. Os Rolling Stones despediram-se. Janet Jackson despediu-se. Joss Stone levou o seu caniche para uma reunião "emotiva" no escritório de Hands e o cão fez cocó no tapete.
Podemos dizer que ele irritou toda a gente. As pessoas com quem trabalhou na EMI ainda hoje estão furiosas com ele. Chamam-lhe bully, um homem motivado por pura ganância. Mas Hands está arrependido. Reconhece que se comportou como um megalómano. Diz-me que tentou fingir que estava numa posição forte, deambulando pelos escritórios de Kensington a dizer "‘Sou o maior. Ouçam-me. Eu é que tenho razão’, em vez de, ‘Estou a tentar dar o meu melhor. Estou total e completamente f*d*d*. Quero manter esta empresa. Preciso da vossa ajuda." Ele diz que foi confrontativo, obstinado e inflexível. Mais tarde, fez um teste de personalidade que mostrou que ele está "basicamente 97 por cento do tempo a competir, o que significa que estava a competir em todas as situações. Se uma pessoa for a atravessar a rua à minha frente, eu vou querer atacá-la." Ele hesita. "Bem, também não é assim tão mau como isso."
A expiação é o motivo principal de The Dealmaker. Não apenas para com as pessoas que ele tratou mal nos negócios. Após o colapso da EMI, ele perseguiu o Citigroup, o banco que subscrevera o acordo e depois lhe puxou o tapete, nos tribunais. Quando perdeu em Nova Iorque, apelou aos tribunais de Londres. No total, o processo judicial engoliu cerca de sete anos da sua vida – bem como amigos, colegas de trabalho e parentes. "Não estava com [a minha mulher] Julia, não assisti à adolescência das minhas filhas, não acompanhei os meus filhos na faculdade, não vi os meus pais, nem os meus irmãos." Quando olha para trás, sente um certo horror.
"Não suporto a ideia de tudo isto ter sido para nada. (...) só posso culpar uma pessoa: eu. Foi eu quem decidiu levar o caso para o Reino Unido e voltar a lançar os dados. Era a minha vida e eu escolhi desperdiçar sete anos num processo judicial." Aqui estava ele, com 57 anos, "com excesso de peso, diabético e mentalmente de rastos". A sua mulher, Julia, uma empresária feroz que gere o grupo Hand Picked Hotels, concordou com mudar-se para Guernsey. Mas apesar de tudo, nas primeiras 240 noites que ela passou na ilha, Hands trabalhou 90 horas por semana e apanhou 300 aviões.
Ele diz que se atormentou por causa da EMI pelo menos até 2019. Mas agora já passou. Quase. Existe apenas um momento que o persegue: ele estava a tentar assinar um acordo com o sindicato Fire and Police Union em Nova Iorque para um dos seus fundos e um trabalhador levantou a mão no ar e disse: "Sr. Hands, o senhor tem de perceber que isto é o dinheiro das nossas pensões. Por isso, por favor, não o perca." Quando me conta esta história, os seus olhos ficam vermelhos. "Eu não me desfaço em lágrimas quando penso nisto, mas ainda fico com os olhos humedecidos", diz. "Desiludi-o. E é muito difícil viver com isso emocionalmente. Eu não posso devolver 50 dólares a cada um deles. Quer dizer, acho que logicamente até poderia, mas logicamente não poderia porque teria de voltar atrás. Aquilo que posso fazer é ser uma pessoa melhor. Não posso compensá-los de outras formas."
O que motiva, então, alguém como Guy Hands? Poder? Obsessão? É algo que Hands também já se perguntou várias vezes. "Tenho uma personalidade aditiva", conclui. "E já fui viciado em trabalho, provavelmente de uma forma nada saudável". Provavelmente? Em 2004, visitou 70 países para se encontrar com 400 potenciais investidores. "E medo", acrescenta. "Tenho medo de chegar ao fim da minha vida sem ter conseguido." Passado um determinado nível de riqueza, "as pessoas ficam menos felizes", dizem. "E quando eu penso sobre os multimilionários que conheço, o nível de felicidade entre eles e as suas famílias é bastante reduzido. Muito mais reduzido do que entre pessoas que conheci quando era mais novo e que tinham empregos de classe média muito tradicionais e uma vida estável.
A sua acumulação de riqueza não foi, certamente, racional. No seu auge, ele não gastava um tostão. "Era completamente paranoico", diz. No alto dos seus 2.500 milhões de libras, ele tinha uma avaliação de 1.500 milhões sobre os seus fundos, "por isso estava ali com 4.000 milhões e pensava que poderia perder tudo amanhã. E isso revelou-se bastante verdade, porque 21 meses mais tarde, perdi quase tudo."
Mais tarde, olhou para trás, para o seu auge, e desejou ter, literalmente, morrido naquela altura. "Simplesmente despenhar-me num avião. Toda a gente teria dito que era uma grande tragédia, que ele era ótima pessoa e um ótimo homem de negócios. Agora se eu me despenhar num avião, vão dizer: ‘Era o tipo que deu cabo da EMI.’ Por isso, agora tenho medo de que isso aconteça."
"Eles" são quem o atormenta, presumivelmente: os chefes e banqueiros que o fizeram vender empresas que – caso ele tivesse ficado e insistido um pouco mais – teriam rendido ainda mais dinheiro (ele consegue citar os números, se for preciso), mas também os miúdos que o perseguiam e humilhavam terrivelmente na escola, os professores que achavam que ele era "denso".
Ele admite ser perfecionista, um brutal executador de tarefas. Queimou cinco ghostwriters para o seu livro. O projeto demorou 17 anos. Ele acha que recebeu um adiantamento de 10.000 libras o que, em termos de cêntimos por minuto, foi o mínimo que já recebeu na vida, incluindo quando estava a repor artigos nas prateleiras de uma loja em Kent durante as férias da escola.
Além de dislexia e dispraxia, ele também sofre de uma condição chamada afantasia, que significa que tem pouca memória visual e imaginação visual e recorda os acontecimentos recorrendo a gatilhos como cheiros e fotografias. É incapaz de formar uma imagem mental de Julia, mas sabe que ela tem cabelo louro e olhos azuis. "De resto, posso estar no supermercado, perdê-la de vista e continuar a andar e, de repente, chegar ao pé de outra mulher que está no supermercado e, a não ser que ela caminhe de forma diferente de Julia, demoro algum tempo a perceber, até a mulher olhar para mim e perguntar: ‘O que é que você está a fazer?’
Ser casada com Hands implica, em grande parte conseguir lidar com estas idiossincrasias. Julia, diz ele, usa uma espécie de "controlo suave". E acrescenta que o "controlo" "nem sempre é assim tão suave".
Pergunto-lhe se falaram todos os dias durante todos os anos durante os quais ele esteve fora. Ele diz que sim, mas hesita e acrescenta que Julia poderá discordar. "Quer dizer, ela diria que não o fiz e que sou um menino malcomportado e que deveria tê-lo feito, mas na verdade, telefonei-lhe quase todos os dias. Seria grave se não o fizesse." Ele diz, a brincar, que fizeram sexo cinco vezes – "uma porque era divertido, quatro para fazer as crianças" – e depois fica coradíssimo. Quase consigo ver a mecânica do seu cérebro a tentar perceber como vai explicar esta frase mais tarde, quando chegar a casa. O vício em batata assada é exagerado, embora Hands ache que é um bom exemplo de comportamento TOC. "Tenho de acabar todas as batatas assadas e quero sempre molho. Sou capaz de fazer uma refeição à base de batatas assadas – [elas] tornam-se quase tão importantes como o resto da refeição." Um hipnotizador plantou no seu cérebro não só medo delas ("Ela disse qualquer coisa como ‘se continuar a comer batatas assadas, nunca verá os seus netos’"), como a ideia de que o seu sabor era repugnante. "Assim como papel, com um fim de boca horrível… Oh!" Ele faz um esgar perante a memória. A obsessão/vício passou e ele debate-se agora com cheesecake e diz que precisa de marcar mais sessões. "Adoro cheesecake", diz melancolicamente. "Acho que é saudável porque diz ‘queijo’.
Ao longo da sua vida, Hands tem dependido de rituais para se acalmar ou, melhor dizendo, atenuar comportamentos obsessivos, tarefas que, caso ficassem incompletas, lhe causavam uma ansiedade profunda. Estes incluíam repetir o mesmo mantra – "Na verdade uma simples oração, mas acho que Deus não estava a ouvir" – todas as noites e todas as manhãs. Ele não me diz o que era – "É privado" – mas confessa que o fez desde os 9 até aos 60 anos.
E não conseguia dormir se a porta não estivesse trancada. Graças à terapia, "consigo deixá-la entreaberta", o que é uma enorme libertação, "uma sensação de liberdade" da ideia de que "o bicho papão vai entrar pela porta". Os antidepressivos também o ajudaram. Ele tomou sertralina, que foi eficaz, "mas que nos põe um pouco moles", por isso agora toma uma dose baixa de Zyban, "que diminui a minha ansiedade".
Está em "melhor estado" do que esteve durante muito anos. Um dos novos elementos são os amigos, o que pode soar de doidos, mas o seu médico perguntou-lhe, em tempos, se ele tinha seis amigos a quem pudesse ligar se tivesse um problema grave e ele respondeu que não. Tinha um amigo a quem pudesse ligar? "Não. Por isso agora tenho um – e gostava que isso aumentasse – mas tenho uma pessoa a quem posso telefonar e com quem posso conversar sobre tudo. Só Deus sabe por que me ouve. Acho que é horrível ouvir-me."
Hands nasceu na África do Sul da época do apartheid, com todos os privilégios inerentes, filho de dois sul-africanos brancos licenciados de Durban. A família mudou-se primeiro para a Rodésia do Sul (atual Zimbabué) e depois para uma existência mais modesta em Cookham, Berkshire, quando ele tinha três anos. Assim que entrou para a escola começou a sofrer bullying. Na primeira semana, partiram-lhe os dentes (ele culpa o facto de ser "precoce" e de isso alienar os outros miúdos.)
Nos anos seguintes, foi atacado, perseguido e chegava frequentemente a casa coberto de nódoas negras. E descreve-se sempre como estranho: errático, rígido, uma pessoa que falava sem parar, mas não sabia atar os atacadores. "Quando me fixava num rumo ou num comportamento, achava difícil alterá-lo mesmo que as coisas não estivessem a correr de feição", diz. Entrou para um colégio preparatório com uma bolsa de estudo e o bullying continuou. Os rapazes tiraram-lhe as molas da cama para esta cair e atiraram-lhe objetos, incluindo uma lata que lhe partiu a cabeça. Não foi a sua última ida ao hospital devido a ferimentos infligidos pelo bullying na escola – na escola seguinte, levou um murro na cabeça e perdeu os sentidos.
As aulas de piano eram uma luta constante para fazer o professor parar de meter as mãos no meio das suas pernas. Ele é vago sobre o que os seus pais pensavam sobre ele, dizendo que o consideravam "estoico". Mais tarde, a mãe rasgou os seus poemas por os achar "muito negativos". Saiu da escola como "um macho zangado, desligado e desengonçado, com cabelo comprido e calças de ganga justas e uma camisa de algodão fino, completamente descontrolado".
Apesar disso, conseguiu entrar na Universidade de Oxford, apesar de um A e um E nos seus exames de A-level. Foi em Oxford que experimentou drogas – "bolinhos de haxe". Ele esperava que o tornassem mais criativo, mas a sua escrita tornou-se ainda mais ilegível do que o habitual, por isso "foram três dias desperdiçados".
Foi também na universidade que conheceu William Hague e desenvolveu o seu amor pela política. Era um Conservador empedernido (o nome do meio de uma duas suas filhas é Margaret, em homenagem a Thatcher), mas foi prejudicado pelo seu desempenho não ser tão elegantemente irónico como o daqueles que frequentaram escolas privadas. Numa festa em casa dos Lawson, conheceu os irmãos Dominic e Nigella: Nigella era maldosa quando ele não se conseguia exprimir bem, mas Dominic era "sistematicamente bondoso".
Quando lhe pergunto por que não se tornou deputado depois de ser tão ativo nos seus tempos de estudante, ele diz: "Oh, é muito simples. A Julia disse-me que, se eu casasse com ela, não poderia ir para a política." E tê-lo-ia feito, caso isso não tivesse acontecido? "Oh sim, definitivamente." Quando fez 40 anos, sentiu "já ganhei dinheiro suficiente para qualquer pessoa, por isso perguntei à Julia se já podia ir para a política, mas ela continuou a dizer que não, absolutamente não". Então, ele passou a vida inteira frustrado, a assistir a tudo sentado nas bancadas. Hoje em particular. As prateleiras vazias, a falta de motoristas de pesados, a crise dos combustíveis, tudo era, na sua opinião, "completamente previsível".
"A experiência Brexit", como lhe chama, "está condenada". O seu "tornassol" é ver pessoas que ele conhecia que eram tão apaixonadamente pró-Brexit e agora são apaixonadamente contra. "O seu raciocínio é simples: eles acreditavam no Brexit, baseado no pressuposto de o Reino Unido mudar radicalmente e se transformar efetivamente numa Singapura. Teria então de haver uma inversão completa das leis britânicas sobre os direitos humanos, direitos dos trabalhadores, número mínimo de horas, salário mínimo, etc. No entanto, acham que o Reino Unido avançou ainda mais para aquilo que consideram "um rumo socialista."
Pelo caminho, ele disse-lhes, "Eu não concordo com o Brexit, mas se concordasse, diria que precisaríamos de um acordo com o Partido Conservador, para este se comprometer a introduzir as políticas necessárias para fazer o Brexit funcionar. Porque o Brexit é sobre ser um país independente com 60 milhões de pessoas, competindo num mundo de 7.000 milhões de pessoas, quando não temos um império ou uma Commonwealth que efetivamente trabalhe para nós e estamos completamente sozinhos. E a única maneira de fazer isso é como Singapura fez, fazendo um milagre económico. Poderá funcionar? Sim. Poderá funcionar se nos comportarmos da mesma maneira que nos comportávamos quando estávamos na União Europeia? Claro que não."
Ele diz que algumas pessoas do Partido Trabalhista perceberam isso e temeram uma viragem para a direita e que alguns conservadores perceberam e disseram "‘Olhem: isto não vai funcionar porque nunca vamos ser assim tão libertários." Quando muito, o Reino Unido tornou-se mais parecido com aquilo a que os Conservadores que votaram a favor do Brexit chamariam ‘um estado ama-seca’. E está a avançar no sentido de haver mais controlo do estado, não menos."
E depois faz uma afirmação ousada para um capitalista de megawatts: "Eu teria votado em Jeremy Corbyn nas últimas eleições", diz. E ele teria votado nos Trabalhistas precisamente porque Corbyn seria ineficaz no Brexit. "Eles nunca conseguiriam a maioria, mas poderiam conseguir votos suficientes para travar aquilo tudo." A crise económica que os outros Tories temiam dos Trabalhistas não era nada comparado com aquilo que ele temia que os Tories pudessem fazer. Examinando o cenário hoje, ele sente que o seu ponto de vista era justificado. "Acho que ainda não é irrecuperável, mas está a ficar muito perto disso." Ele acha que o partido Tory "perdeu o seu rumo. Perdeu a sua razão de existir, a sua moralidade e a sua alma. Tornou-se sobre o Brexit e Boris era sobre o Brexit. Agora é sobre ser anti-Trabalhista.
Isso não é uma boa razão para existir. Eles têm de encontrar coisas reais que façam a diferença na vida das pessoas. De momento, é como Tony Blair, mas sem o intelecto: política de frases curtas. É embaraçoso, a sério que é."
Ele acha que a Grã-Bretanha vai tornar-se mais pequena e mais irrelevante. "Na melhor das hipóteses, seremos o caniche da América e às vezes vamos levar um pontapé e noutras receber um osso. Os europeus estão fartos de nós. Os russos e os chineses não gostam de nós. O Médio Oriente irá para onde o Médio Oriente precisar de ir. A África do Sul e a África, em geral, não gostam de nós. A Índia não gosta de nós… Talvez tenhamos a Austrália, mas eles sabem que o seu ganha-pão pode vir da América ou da Ásia, por isso acho que estamos muito isolados, a não ser que ofereçamos algo diferente ao mundo. E, de momento, aquilo que estamos a oferecer é uma versão mais burocrática da Europa."
Ele consegue transitar do fracasso do governo para a esperança da sua nova organização de caridade, a Engage Britain, que criou no rescaldo do Brexit para tentar colmatar o "enorme desfasamento" que existe entre a sociedade e o sistema.
"Quer dizer, tenho uma ideia bastante clara na minha mente sobre o que quero ter na minha lápide." O quê? "'Ele falou com verdade e fez a diferença.’ É esse o meu objetivo. Não quero que a minha lápide diga ‘Ele valia X mil milhões.’"
Charlotte Edwardes/The Times/Atlântico Press
Tom Jackson/The Times/Atlântico Press