« A História repete-se perenemente; todavia, ainda vamos a tempo de usar os exemplos de há cem anos para evitarmos hoje catástrofes maiores e, neste caso, segundo os factos passados nos EUA.
Há 100 anos também estava tudo farto.
Ao meio-dia de 21 de Novembro de 1918, as sirenes soaram em toda a cidade de São Francisco, baluarte da Califórnia, anunciando o fim do confinamento e o regresso à normalidade depois de um ano duríssimo.
Há dez dias que a I Guerra Mundial tinha terminado, com a assinatura do armistício entre a Alemanha e os Aliados, e a população ainda não tinha saído às ruas para festejar.
Ali, como em tantas outras partes do mundo, as autoridades tinham imposto duras medidas para suster o contágio mortífero da gripe pneumónica, ou gripe espanhola, que fustigara a população nos últimos meses.
Estava tudo farto do isolamento.
Depois de soar a sirene, os restaurantes e bares encheram-se de gente.
As massas celebraram, lançando as máscaras ao lixo e acorrendo aos teatros.
A euforia da liberdade era forte:
Tinham vencido a pandemia mais mortífera da história da Humanidade. Ou assim pensaram na altura.
São Francisco fora uma das primeiras cidades a tomar medidas de distanciamento e uso obrigatório de máscaras para mitigar o contágio da pneumónica, que ali chegara em Setembro.
Em Novembro, os novos casos de infecção caíam de forma sustentada e, ao crerem que a situação estava controlada, as restrições foram levantadas.
Não é preciso imaginação para adivinhar o que aconteceu a seguir.
Algumas semanas depois do toque da sirene, São Francisco estava a braços com uma subida em flecha de novos infectados.
Mas quando as autoridades tentaram reactivar as medidas obrigatórias, como o uso de máscaras, a população resistiu.
Houve protestos.
A “Liga Anti-Máscara” fez campanha contra a ordem.
São Francisco, incapaz de controlar o surto e a braços com uma população que se recusava a voltar para dentro de portas, tornou-se a cidade mais atingida pela pandemia no país, com 45 mil novos casos de infecção e 3 mil mortos.
Uns 600 quilómetros mais abaixo, em Los Angeles, a comunidade médica e as autoridades debateram durante muito tempo a utilidade das máscaras para combater o vírus.
Houve uma “semana da limpeza” para desinfectar todas as secções da cidade e restrições nos horários de funcionamento das lojas.
Houve uma semana para “ficar em casa”, mas poucos residentes cumpriram.
Um grupo de igrejas tentou reabrir à revelia das ordens.
A pressão sobre a autarquia vinha de todos os lados e no início de Dezembro as restrições foram aliviadas.
As escolas reabriram. Resultado?
Uma subida dramática do número de doentes, incluindo muitas crianças, e as escolas tiveram que voltar a fechar.
Foi aprovado um pacote financeiro substancial para combater a pandemia e aprovada a ordem de quarentena.
Mais de 100 anos depois, é notável concluir que muito pouco mudou na reacção a um surto viral altamente contagioso e mortífero.
Sabemos que a pneumónica circulou durante dois anos, teve três vagas e que a segunda foi a mais letal.
Sabemos que deixou profundos impactos, sendo responsável pela monitorização apertada que as autoridades de saúde fazem ao vírus da gripe e pelas campanhas anuais de vacinação.
Sabemos que a "pneumónica" matou de 50 a 100 milhões de pessoas.
Sabemos que, em Portugal, matou sobretudo jovens adultos, apesar de ser a faixa etária que se considerava mais capacitada para resistir.
Sabemos que, há 100 anos, também as populações confinadas estavam fartas do isolamento, das máscaras e da quarentena.
E vejam, nessa altura não tinham iPhones, YouTube, Zoom ou Netflix, bicicletas estáticas ou UberEats... nem ainda TV!
A dimensão da inconveniência e tédio é difícil de imaginar. As lições apreendidas com esta tragédia mundial deveriam servir como farol para a sociedade que temos hoje, muito mais alfabetizada, conectada e capaz de extrair conhecimento do passado.
Mas o que temos é, grosso modo, o mesmo tipo de problemas.
Negacionistas, resistentes que não acreditam na seriedade do problema, contra-correntes, especialistas a contradizerem-se uns aos outros, políticos a tomarem medidas dúbias por causa da pressão económica.
A História repete-se perenemente; todavia, ainda vamos a tempo de usar os exemplos de há cem anos para evitar catástrofes maiores.
Perceber que não haverá um interruptor que se possa premir e instantaneamente ter a vida que levávamos antes.
Não haverá uma sirene a anunciar o fim da pandemia. Não vamos acordar um dia e záz, tudo na ponte a caminho da praia e grandes caracoladas na esplanada de um bar à pinha.
Tudo isto tem sido duro demais para deitar a perder com uma atitude de tudo ou nada, em que ou se está a falar com as plantas durante um mês fechado em casa ou está tudo nos “sunsets” com uma cerveja na mão.
Porque uma coisa é certa: depois de se sair do confinamento, será muito mais difícil voltar a ele.»