LÍDIA JORGE
Parte dos sete biliões de homens à face da Terra está a receber punição em vez de recompensa. Em face deste escândalo, tudo o que de extravagante possa acontecer é possível.
14 de Novembro de 2018
O pensamento pobre sobre os ricos e pobres, e ricos
em vez do pensamento rico sobre pobres ricos.
1. Vivemos um momento particular. Descrevê-lo não vale a pena, quando ele se afigura por demais evidente. O que não deveria constituir uma surpresa. Desde o início dos anos 90 que os teóricos da comunicação do grotesco anunciavam que aí viriam tempos em que as populações poderiam eleger como líderes figuras bizarras, aparentadas com os cómicos, os palhaços, os furiosos, fundamentalistas de ideias fixas e outros gestos arrebatados. Essas previsões deprimentes ainda estão longe de se generalizar, mas o que até agora já aconteceu, dentro e fora da Europa, aconselha reconsideração. A ideia de que a História longa tudo nivela não pode evitar o reconhecimento de que os seus ciclos são feitos a partir da História miúda que se tece ano a ano do calendário comum e que a vida de cada ser humano conta na transformação do mundo.
2. Por isso mesmo, os dias que correm oferecem aspectos que há que valorizar na medida justa. Os últimos acontecimentos relacionados com a eleição de figuras não recomendáveis para dirigirem grandes e respeitáveis nações têm levado a reacções no espaço público cuja clareza, diversidade e desassombro só pode ser louvável. Diria mesmo que em Portugal, local de opiniões retardadas e emoções contidas, de súbito entrámos num clima de paixão pelas ideias e pelas ideologias, levando os portugueses a discutirem com frontalidade o que pensam do seu presente e do seu futuro. A avaliação do mandato de Donald Trump e do seu modo devastador de tratar o género humano, embora com benefícios económicos para uma parte da população norte-americana, desencadeia auto-retratos públicos bastante reveladores. E a recente eleição de Bolsonaro parece constituir um teste de manchas de Rorschach para a projecção das almas portuguesas. Há, no entanto, um aspecto que aproxima as opiniões de quem se manifesta, como se nesse ponto todos estivessem de acordo — a ideia de que quem comanda a opinião são as redes sociais, o espaço indocumentado do novo fenómeno da comunicação digital. Entre mentiras e exageros, apelos ao medo e instigação à violência, os eleitores encaminhar-se-iam para as mesas de voto como animais acossados pelos instintos mais primários e a sua cruz ou a pressão do seu dedo seriam comandados pelo impulso da vingança e ânsia de sobrevivência. Mas essa é uma causa de aparato, não de substância.
3. As causas profundas de escolhas tão surpreendentes continuam a ter raiz onde sempre têm estado, são filhas da desigualdade. As sociedades contemporâneas encontram-se estranguladas por tremendos sentimentos de injustiça que nenhuma Web Summit parece ter o poder de melhorar. Horta Osório, no passado dia 7 de Novembro, no Programa Fronteiras XXI, colocou o dedo na ferida. Usando números mais ou menos simbólicos, referiu a percentagem de 50% dos muito pobres deste mundo, os 45% dos pobres e o 1% dos oceanicamente opulentos. E disse que o problema do futuro provirá dessa desigualdade. Sabemos que a primeira tranche tende a viver submetida à sua sorte, reagindo por sistemas de escapatória como forma de enfrentar o limbo de onde provém. Mas a faixa dos apenas pobres incorpora uma nova população, legiões de jovens com licenciaturas, mestrados e até PhD, que não vêem horizonte à sua frente. São pessoas que têm sentido crítico, conhecem minimamente os caminhos da História e não vão aceitar ser vítimas. São esses que querem mudar para um outro lugar de representação política que não se pareça em nada com o que conheceram até agora. O sentimento de injustiça toca-lhes, sobretudo, quando conhecem o locupletamento da faixa dos 1%. Como todos estamos perto de todos, o escândalo do contraste torna-se intolerável. Não tenhamos dúvidas, se generalizado, esse sentimento será devastador para os regimes democráticos. E é aí que me lembro do caso das camisas de Gerhard Schröder.
4. Em 2005, na Alemanha, vivia-se um momento de viragem. O chanceler do SPD havia feito uma reforma da Segurança Social que enraivecia a classe média, sua base de apoio, mas certo dia, à mesa de um restaurante na margem do lago Alster, um grupo de alemães decidia abandonar a fidelidade ao chancelar por um outro motivo. A edição de um jornal de fim-de-semana tinha publicado os gastos de Schröder em roupas de luxo, destacando em especial o custo das camisas. O preço de duas delas seria equivalente ao salário médio de um professor alemão. Alguém disse, com raiva: “O próximo chanceler será de novo do partido de Helmut Kohl.” E assim seria. É mais fácil aguentar a corrupção das quadrilhas, que se instalam no escuro à mesa do poder, do que a ofensa da ostentação por parte daqueles que deveríamos ter por pessoas dignas. Na política, a compaixão não pode ser uma palavra, tem de ser um programa aplicado e intimamente vivido.
5. Não se pode minimizar a questão da justiça relativa em sociedades sem barreiras de comunicação como estas que estamos a construir. Talvez fosse bom que os políticos europeus voltassem a rever o filme de Truffaut que conhecem da infância, a história do menino selvagem a quem o médico que o recolhera chamava Victor, embora duvidasse que fosse pessoa. No dia em que em vez de o recompensar, depois de um exercício bem feito, o puniu, Victor chorou de raiva. Só então, em face da reacção à injustiça, o Dr. Jean Itard deduziu que estava perante um ser humano. Parte dos sete biliões de homens à face da Terra está a receber punição em vez de recompensa. Em face deste escândalo, tudo o que de extravagante possa acontecer é possível.