sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Ler antes de partilhar

Pedro Guerreiro    25/09/2015


" Uma menina deficiente e órfã perde direito a transporte escolar para dar lugar aos refugiados”. O suposto título do Jornal de Notícias foi partilhado nos últimos dias por milhares de portugueses e o artigo continua a receber comentários. Há um problema: a notícia data de 2013 e nada tinha a ver com os refugiados. O título foi adulterado por um qualquer utilizador no Facebook. A maioria não terá sequer aberto o artigo antes de repartilhar.

O episódio tem dias mas a tendência não é de hoje. Tanto que o deputado do PSD Duarte Marques até apelidou António Costa de “activista do Facebook” – aquele que “discursa o que lhe aparece no feed… mas não lê, não estuda” – a propósito do défice de 2014. E essa tendência explica, por exemplo, por que há notícias antigas que ressuscitam e se tornam virais.

Na campanha também há artigos zombies. Na quinta-feira, o deputado comunista Miguel Tiago recuperou o post “CDU e Bloco – Diferenças de Classe”, publicado em 2014 no blogue Manifesto 74. A ilustrar a partilha, uma fotografia de Marisa Matias, João Semedo e, entre estes, Mário Soares e Alexis Tsipras. Em baixo, a legenda: “É boa a fotografia. Dá para ver o sorriso oportunista da deputada Marisa Matias a olhar para o avô Marinho (também quis ficar na fotografia). Vejam também o ar comprometido do deputado João Semedo, de braço dado ao "avô". Estão lindos”. O autor da legenda não é o deputado. É um anónimo. Para um “activista do Facebook”, pouco importa. O que interessa é atear o fogo.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O ovo da serpente

Lauro António 17/07/2015 

Alguns dos maiores pesadelos que a Europa (e a humanidade) viveu foram gerados na Alemanha.

Tenho uma relação estranha com a Alemanha. Dali vieram alguns dos maiores escritores, poetas, músicos, dramaturgos, cineastas, artistas plásticos que eu admiro, e dali saíram duas guerras mundiais, com inícios em 1914 e 1939.

Alguns dos maiores pesadelos que a Europa (e a humanidade) viveu foram gerados na Alemanha. Foi ali que Bergman colocou “o ovo da serpente”. Foi ali que Bram Stoker colocou o castelo original do conde Drácula. Foi da terra alemã, a viajar de barco para fora das fronteiras, que Nosferatu trouxe a peste que dizimou milhares no filme de Murnau. Loucos nasceram (e nascem) em todo o lado, mas foi na Alemanha que um austríaco, frustrado pintor de medíocres aguarelas, tentou dominar o mundo, proclamando a hegemonia da raça ariana.

Assustador não foi aparecer um louco, foi milhões de loucos seguirem-no. Nas urnas, nas paradas, nas trincheiras, nos campos de concentração. Assustador é ninguém ter tido culpa, ninguém saber de nada, todos terem cumprido ordens.

Intrigante foi aparecer na década de 20 um movimento artístico a que se passou a chamar expressionismo, que mostrava como a sociedade gera monstros (literários, poéticos, teatrais, cinematográficos…) que prenunciaram o aparecimento de outros monstros, ia a dizer não humanos, mas o que é verdadeiramente surpreendente é que eram “humanos”.

Falando só do cinema, filmes como “O Gabinete do Dr. Caligari” e “As Mãos de Orlac”, de Robert Wiene, “O Estudante de Praga” e “O Golem”, de Paul Wegener, “Nosferatu, uma sinfonia de horrores”, “Fantasma”, “O Último dos Homens” e “Fausto, uma Lenda Alemã”, de Friedrich Wilhelm Murnau, “O Gabinete de Figuras de Cera”, de Paul Leni, “Mabuse”, “Os Nibelungos”, “Metropolis” e “M Matou”, de Fritz Lang, são alguns títulos possíveis de evocar para documentar o mal-estar de uma sociedade reflectido nessas obras. Chamaram a esse período o “Ecrã Demoníaco”.

Desde 1945 que a Europa não conhece uma guerra mundial. Um período de paz que, ao que julgo perceber, estaria na origem da constituição da União Europeia.

Os políticos que a criaram imaginaram -na assim. Os políticos que lhes sucederam foram lentamente alterando as finalidades. Será que se chocam por aí novos “ovos de serpente”? Que político é esse de riso alarve que faz humor negro com a desgraça da Grécia e Porto Rico? Estarão já no poder novos “monstros” que se entretêm a torturar e humilhar os mais fracos? Que Europa é esta? Para onde vai?

OS POBREZINHOS

Por António Lobo Antunes.

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria: - Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"

A pátria em acentuada decadência

31 Julho 2015,  por Baptista Bastos

Se quiser saber o que realmente ocorre, tem de frequentar a imprensa estrangeira, tal como no fascismo. Este reino cadaveroso está envolvido num lamaçal de condescendências e de cumplicidades, que afecta a própria alma do que somos.

A decadência portuguesa acentuou-se nos últimos quatro anos. O universo de embuste criado com o "empobrecimento" da população; a "austeridade" imposta por uma ideologia que ignora as características, a cultura e a História do país criaram uma apatia de desistência, já marcada anteriormente e acentuada agora. Não há debate político ou cultural; inculcou-se no português médio o fetiche do futebol; as revistas cor-de-rosa deram lugar a um universo fantasioso; e a imprensa, aquela que tinha por dever, obrigação e destino, está moribunda e pertence a grupos industriais com objectivos e funções especiais, que pouco têm a ver com a própria natureza do "produto."

É penoso ler a imprensa dita de "referência", estafada em desaforar o leitor dos grandes problemas nacionais e internacionais. A caso da Grécia, nos nossos jornais, foi e tem sido tratado com uma leviandade e uma displicência que brada aos céus. Nem nos tempos do fascismo, com censuras internas e externas, eram analisados temas como quem despacha um fardo enfadonho. Nem durante a guerra do Vietname, que seguimos com a atenção que o conflito justificava, a imprensa portuguesa desceu tão baixo. Então, como agora, tratava-se de um acto de beligerância, cuja natureza exprimia uma ideologia de supremacia, que conduzira a um embate sangrento. As pessoas, em todo o mundo, tomaram partido, na maioria dos casos com evidente simpatia pelos vietnamitas. Na contenda entre a Grécia, foi rapidamente percebido o que estava em causa, mesmo que os jornais, as rádios e as televisões fossem omissos em abordar a essência da beligerância, e a capitulação do Syriza não deixou de magoar muita gente, pela evidente humilhação de um povo, cercado pelas garras do capitalismo mais exacerbado.

No ponto da situação, há uma luta de classes e de poder que pode arrastar a Europa para um abismo profundíssimo. A questão é que deixou de existir analistas que, pedagogicamente, explicassem o que está em jogo, e os perigos decorrentes de uma Europa atrozmente desunida, que não passa de uma cabisbaixa serventuária da Alemanha. As coisas devem ser ditas pelo próprio carácter do enredo.
Na discórdia europeia, Passos Coelho colocou-se, obediente e sabujo, ao lado de Angela Merkel, tal como, anteriormente, o fizera José Sócrates. Nesta parada de serviçais, não o esqueçamos, o único partido que sempre recalcitrou foi, e tem sido, o PCP. Goste-se ou não, os comunistas portugueses têm pelejado contra a subserviência dos nossos governos e alertado para a urgente necessidade de Portugal sair desta Europa defeituosa. Nada desta problemática é tratada, com a seriedade exigida, pelos órgãos de comunicação sociais. Se quiser saber o que realmente ocorre tem de frequentar a imprensa estrangeira, tal como no fascismo. Este reino cadaveroso está envolvido num lamaçal de condescendências e de cumplicidades, que afecta a própria alma do que somos. "Um fraco rei faz fraca as fortes gentes", disse-o o Poeta, melhor do que ninguém.


Um autor fora do curso
Sempre gostei muito de Tomaz de Figueiredo, do seu temperamento sacudido e trágico, mas, sobretudo, dos seus livros, da requintada nobreza do seu carácter, do seu acrisolado gosto em ser português. Conheci-o, e disse-lhe o que acima escrevo. Ele apreciava quem o apreciava, e falou-me, várias vezes, no Manuel Poppe, grande crítico literário que nutria por ele grande estima e admiração. A verdade é que cada vez gosto mais deste homem raro e deste escritor invulgar, um pouco maltratado pela "inteligentzia" da época, a qual não suportava o seu génio e a sua truculência vital. A família do grande escritor reuniu, em volume, "Pedra d'Armas", uma série de textos avulsos, mas que marcam e definem a essência única deste prosador. Ler Tomaz de Figueiredo é ter um encontro inesquecível com um dos nossos maiores dos maiores.

Duas reportagens do miúdo que eu fui

07 Agosto 2015, por Baptista Bastos

"Vêm aí os ciclistas!" gritavam pelos microfones os batedores, as estradas apinhadas de gente, a alegria de um reencontro, e a fuga à enxada, aos trabalhos rudes do campo, doze, catorze horas insanas de combate à fome, à miséria. Inesquecível.


(Aos sobreviventes)


Para usar uma expressão do horóscopo chinês, 1959 foi o ano da minha "alegria suprema". Era redactor de O Século, talvez o mais importante diário nacional; tinha publicado um livro, "O Cinema na Polémica do Tempo"; fizera a minha primeira reportagem internacional (a inauguração da Feira de Bruxelas): era tido e havido como um crítico de cinema de larga notoriedade; e fora indicado para escrever a notícia da Volta em Portugal em Bicicleta. Um miúdo ancho de vaidade, muito senhor do meu nariz, e presunçoso, tolo e parvo. Tenho de reconhecer, porém, que andava na idade da aprendizagem, e dividia os homens em "jornalistas" e "os outros." Como vêem o tolejo, por vezes, espinoteia.

O Século era a "universidade", a "catedral", como lhe chamou o meu amigo e camarada Mário Zambujal, e aqueles, antigos, que lá trabalhavam, eram mal pagos, exerciam funções em outros órgãos de comunicação, a fim de arredondar a conta ao fim do mês, e embalavam sonhos irrealizados. Foram eles, e o Acúrsio Pereira, lendário chefe de redacção, quem fez do miúdo que fui o homem, hoje também antigo, que sou. Aprendi, com eles, que não há grandes jornalistas sem grandes redacções, e a de O Século era uma delas. Recordo-os a todos com emoção e orgulho e com uma gratidão sem preço.

Quando viajei para a Bélgica travei conhecimento com outra figura mítica do jornalismo, Artur Portela, que logo simpatizou comigo e com a forma desenvolta e alegre do jovem camarada. Portela fora correspondente do Diário de Lisboa na Guerra Civil de Espanha, e comportara-se com uma dignidade rara, de que outros se não podiam gabar. Era um homem baixo, extremamente amável, com um estilo muito próprio que o distinguia, mesmo que não assinasse os textos. Recordo, agora, quando da morte de António Ferro, o necrológio redigido pelo Portela, na hora de fecho do jornal, que devia figurar numa antologia para aprendizes de jornalismo. Via-o quase todas as noites, eu na varanda de O Século, ele a caminho de casa, vindo do Coliseu dos Recreios, onde elaborava as prosas de publicidade. "Boa noite, senhor Portela!", saudava-o e ele parava, olhava para a varanda onde eu me encontrava, tirava o chapéu, e seguia a sua vida. Li-lhe os livros com zelo e apreço: imitei-o, sem nunca conseguir igualá-lo. Boa noite, senhor Portela fica para o meu sempre. Mas muito gostaria de que os jovens de hoje, nos jornais, frequentassem os livros deste jornalista sem par.

Tinha, pois, ido a Bruxelas, no encantamento indizível de ser correspondente de O Século. Escrevi umas crónicas mais cheias do sentimento da descoberta, era a minha primeira viagem ao estrangeiro, seguir-se-iam outras, muitas outras, e obtive um êxito superior aos méritos do trabalho. Ainda guardo os recortes, que levavam o título "Passaporte para o paralelo 58". Nesse tempo, ir à Bélgica era uma aventura cheia de emoção.

Venho da viagem e, como era hábito, telefonei a Acúrsio: "Já cheguei." E ele: "Prepara-te, pois depois de amanhã vais fazer a reportagem da Volta." O jornalista que a escrevia tinha adoecido gravemente e eu era o substituto. A educação do jornal fazia-se dessa maneira, com experiência e zelo. Foi uma das grandes reportagens que fiz, e uma experiência humana que ficou para toda a vida. Tive a ajuda de Artur Agostinho e de Tavares da Silva. Este tomou-me como afilhado e eu via aqueles dois homens transmitir para a rádio e para o jornal relatos empolgantes logo a seguir às metas.

Era a época de Alves Barbosa, de Pedro Polainas, de Agostinho Baptista, dos ciclistas de Pinto Valongo, "Vêm aí os ciclistas!" gritavam pelos microfones os batedores, as estradas apinhadas de gente, a alegria de um reencontro, e a fuga à enxada, aos trabalhos rudes do campo, doze, catorze horas insanas de combate à fome, à miséria. Inesquecível. Tudo isso e muito mais, coisas terríveis, de grandeza e de indignidade, escreverei num texto memorialístico que estou a concluir.

A Volta a Portugal marcou-me para sempre. Assim como os nomes e os rostos daqueles que definiram essa minha história real. E, com ternura e afecto, nomeio, de novo, Artur Agostinho e Tavares da Silva que ampararam e ensinaram, com o exemplo, o puto repórter a executar o seu trabalho. Há anos, conhecedor da minha paixão pela Volta, o meu saudoso amigo Emídio Rangel convidou-me a completar a última etapa desse ano num carro aberto da SIC. Voltou a ser inesquecível. O vento na cara, os gritos do povo, os acenos, a amizade às escâncaras e o gosto de se encontrar quem se não conhece, quem nunca se viu.

Aqueles que nos ajudaram a sobreviver quando tudo parecia perdido

28 Agosto 2015, por Baptista Bastos |

Um país sem memória cultural é um país condenado a todos os gelos. Que livros leram o dr. Passos, o Relvas, o Nuno Melo, o João Almeida, o dr. Cavaco? Que conhecem eles, entre outros mais, de livros, de autores; que poetas frequentam?

Apanho, na Graça, o eléctrico 28 e vou dar uma volta pela cidade, até ao cemitério dos Prazeres. Há muitos anos que não fazia esta bela viagem. Quando morei em Alfama, fi-lo muitas vezes, sempre encantado com os sítios por onde o carro passava. Depois, mudei-me e deixei de percorrer aquele percurso mágico. Houve uma altura em que uma administração da Carris quis acabar com a carreira 28; depois, predominou o bom senso. Antes de apanhar o eléctrico decidi beber um café. As pessoas cumprimentavam-me com simpatia. Vivi por aqueles lados durante muitos anos, e frequentava os cafés da Graça, que ainda hoje entendo ser um dos mais belos bairros da cidade.

Uma vez, há quantos anos?, o Luís Veiga Leitão veio a Lisboa, ele era do Porto, e convidei-o a fazer o percurso do 28. Acabámos, numa taberna, próximo do cemitério, a beber uns e outros. O Veiga Leitão era parente do Miguel Veiga, querido amigo e homem de bem, e levara uma vida aventurosa e de combate contra o salazarismo. Ele, o Egito Gonçalves e o João Apolinário faziam parte de um grupo, "Notícias do Bloqueio", plataforma de resistência contra o fascismo, contra todos os fascismos.

O Veiga Leitão, entre outros livros admiráveis, publicara um, "Noite de Pedra", de uma beleza incomum. Passara maus bocados, fora com a mulher, Sofia, para o Brasil, e, lá, chegara a vender enciclopédias, para governar a vida difícil. Era um homem de riso claro e boa disposição. Já ninguém fala nesta gente e o exemplo moral e cultural desta gente não era resgatável. A literatura portuguesa, então, abordava-nos porque fazia parte de nós, mantendo uma tradição que vinha de sempre.

Há tempos no Porto, falei no Veiga Leitão, e poucos sabiam quem era. Está tudo, assim, agora. Um manto de silêncio e de ignorância, como se a nossa identidade própria tivesse sido engolida por um abismo. Gostava de perguntar, a esta gente, quem era este e aquele; mas esta gente não sabe nem cura de saber. E um país sem memória cultural é um país condenado a todos os gelos. Que livros leram e têm lido o dr. Passos, o Relvas, o Nuno Melo, o João Almeida, o dr. Cavaco? Que conhecem eles, entre outros mais, de livros, de autores; que poetas frequentam? Há dias, uma mão amiga fez-me chegar uma página da Revista Ler, de Outubro de 1995, na qual o dr. Cavaco, na altura candidato à Presidência da República, referia "os livros da sua vida." Ei-los: a "Bíblia"; "Contos", de Miguel Torga; "Mensagem", de Fernando Pessoa; Emily Brontë, "O Monte dos Vendavais"; "Jubiabá", de Jorge Amado; Ruy Belo, "Obra Poética"; Vitorino Nemésio, "Mau Tempo no Canal"; Agustina Bessa-Luís, "Os Meninos de Ouro"; Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano"; Vergílio Ferreira, "Para Sempre".

Claro que é uma boa escolha. Mas restará sempre a dúvida se o dr. Cavaco é o verdadeiro autor da lista. Não desejo adiantar mais do que disse; no entanto, deixo ao cuidado do leitor a preocupação de analisar se a bota dá com a perdigota.

A ausência de memória cultural da esmagadora maioria da "classe" política é assustadora. E a resposta da "classe" política é na mesma moeda. De vez em quando, alguns escritores levam uns penduricalhos e ficam muito felizes, mas desacreditados. No tempo do fascismo, havia prémios literários oficiais e vultosos, mas eram raros aqueles que os aceitavam, e os que cediam eram enxovalhados com o desprezo. Estamos na mesma. A pequena vaidade sobrepõe-se à honra e à dignidade da recusa.

O vazio cultural que enreda a sociedade portuguesa é idêntico ao vazio moral. Por vezes, muitas vezes, recordo aqueles que construíram um território de integridade e de decência, no meio da traição e da ignomínia, e o silêncio em torno desses nomes faz parte da mesma estratégia de ignorância e de desapego que viceja em Portugal, porque o exemplo vem de cima.

Ao falar de Luís Veiga Leitão, falo num exemplo, como muitos outros, que nos ajudaram a suportar o insuportável.

Um pífio e triste debate

11 Setembro 2015, por Baptista Bastos

O encontro foi uma coisa pífia e desajeitada, com Passos cansado e insistente num realejo que já ninguém pode ouvir, e na persistência nos gestos, mãos em paralelo, que se percebem estudados.


Os assuntos fulcrais, como a exclusão e a pobreza, a fome e a miséria, provocados pelo novo enquadramento ideológico, em Portugal e no resto da Europa, foram esquecidos no "debate" entre Passos Coelho e António Costa. A obsessão do presidente do PSD em José Sócrates foi um disparate político, logo torpedeado por António Costa, notoriamente o melhor e mais apetrechado dos dois. Em suma: o encontro foi uma coisa pífia e desajeitada, com Passos cansado e insistente num realejo que já ninguém pode ouvir, e na persistência nos gestos, mãos em paralelo, que se percebem estudados. Curiosamente, muito semelhantes à gesticulação pesada e patusca do dr. Cavaco.

Se eu quisesse ser irónico, diria que a grande novidade do "debate" foi a ressurreição de Miguel Relvas, não se sabe o que o pobre homem foi lá fazer, o seu nervosismo inabalável e a tolice dos seus comentários. Não me interessa, minimamente, se Relvas é "doutor" ou não. Dizem-me não ser muito culto e pouco dado a frequentar livros e afins, mas que é despachadíssimo nos malabarismos políticos, e que Passos Coelho tem para com ele uma dívida impagável: teria sido Relvas quem o transportou ao colo para o poder. É lá com eles.

Outro despautério fatal foi Passos Coelho ter insistido em referir, sem pausa nem reflexão, no nome de José Sócrates. Lestamente, Costa colocou um ponto final no assunto, dizendo que Sócrates, como qualquer outro socialista, ou não, tem o direito de falar e de votar em quem entender.

Uma questão, entre outras, se levanta: o "debate" alterou algo das intenções de voto de eleitores, há muito já decididos? Dizem que talvez, outros que sim. Creio bem que não. No entanto, a vertiginosa crítica de Costa aos quatro lastimosos anos de Passos no poder, a circunstância de repetir na miséria que nos aflige, e de perguntar aos portugueses se querem mais do mesmo, caucionou a simpatia dos que gostam de ouvir estas verdades.

As coisas estavam feias para Costa. Uma certa indolência no discurso impedia que o arranque se efectuasse com ênfase e com brilho. Depois, uma imprensa desafecta e uma televisão, sobretudo a SIC, muito atenciosa e veneradora com todos e quaisquer movimentos de Passos; comentadores e jornalistas sem fé nem vértebras eram a soma e o resto que faltavam ao sinistro ramalhete. Acaso um impulso novo supriu no "debate"; acaso.

Já no dia anterior, Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, tinha colocado a soberba de Paulo Portas no devido lugar. Com o sorriso displicente, desarmara a pesporrência enfatuada do homem, com factos e números e argumentos irrefutáveis. A propósito, recomendo vivamente a leitura de "Mitos Urbanos", da porta-voz do Bloco, editado pela Parsifal, que esclarece muitas dúvidas e embustes em circulação pelas ideias feitas.

Tudo indica que os próceres da Direita indígena estão a manifestar grande fadiga, e que nem as manipulações das sondagens, cada vez mais descaradas, nem esta casta de jornalistas estipendiados, nem os saneamentos injuriosos conseguem moldar os caracteres a seu bel-prazer. Esperemos pelo bom senso das pessoas. Esperemos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A carta de Passos a Sócrates em 2011 prometia apoio à vinda da troika

SÃO JOSÉ ALMEIDA   15/09/2015

PÚBLICO revela na íntegra, pela primeira vez, a carta que o líder do PSD dirigiu ao então primeiro-ministro a 31 de Março de 2011 para que este pedisse apoio externo.

Passos Coelho e José Sócrates encontraram-se diversas vezes em 2011

As palavras são lapidares na carta assinada por Pedro Passos Coelho, a 31 de Março de 2011, e dirigida ao então primeiro-ministro, José Sócrates, e agora revelada pelo PÚBLICO. “Nestas circunstâncias, entendo ser meu dever levar ao seu conhecimento que, se essa vier a ser a decisão do Governo, o Partido Social Democrata não deixará de apoiar o recurso aos mecanismos financeiros externos, nomeadamente em matéria de facilidade de crédito para apoio à balança de pagamentos.”

As palavras escritas pelo líder do PSD são irrefutáveis e davam a sua aprovação expressa e o apoio a que o Governo avançasse com o pedido de empréstimo externo de 78 mil milhões de euros à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional. O pedido de intervenção externa seria feito pelo primeiro-ministro, José Sócrates, uma semana depois, a 6 de Abril. Mas a carta de Passos Coelho dava luz verde e defendia essa estratégia para fazer face aos problemas orçamentais do Estado português.

Na carta a que o PÚBLICO teve acesso – e que é divulgada pela primeira vez –, Passos Coelho começa por afirmar a sua preocupação com as informações que possui através do Banco de Portugal e da Associação Portuguesa de Bancos.

“Recebi hoje informação, da parte do senhor Governador do Banco de Portugal, de que o nosso sistema financeiro não se encontra, por si só, em condições de garantir o apoio necessário para que o Estado português assegure as suas responsabilidades externas em matéria de pagamentos durante os meses mais imediatos. Ainda esta manhã o senhor Presidente da Associação Portuguesa de Bancos transmitiu-me idêntica informação”, afirma o primeiro-ministro, acrescentando então: “Estes factos não podem deixar de motivar a minha profunda preocupação.”


De seguida, Passos Coelho lembra a posição de José Sócrates, ou seja, a recusa do primeiro-ministro em pedir ajuda financeira sob a forma de intervenção negociada com as três instituições, Comissão Europeia, BCE e FMI. “Não desconheço que o Governo tem repetidamente afirmado que Portugal não necessitará de recorrer a qualquer mecanismo de ajuda externa e é certo que a competência pela gestão das responsabilidades financeiras do país cabe por inteiro ao Governo".

Assim como reconhece que compete ao Governo decidir e é o executivo que detém a informação total sobre o estado das contas públicas e os constrangimentos orçamentais. “Não disponho de informação sobre as acções e diligências que o Executivo estará a desenvolver para assegurar o cumprimento dessas obrigações.” Mas advoga que, “porém, é do conhecimento público a situação do mercado que a República vem defrontando, desde há vários meses a esta parte, bem como o facto de o sistema bancário se encontrar sem acesso ao mercado desde há mais de um ano”.

Daí que Passos Coelho prossiga afirmando que, “atenta a especial sensibilidade desta matéria e as gravíssimas consequências que decorriam” para Portugal “de qualquer eventual risco de incumprimento, é essencial que o Governo garanta, com toda a segurança e atempadamente, adopção das medidas indispensáveis para evitar tal risco”.

Na carta Passos Coelho informa ainda José Sócrates de que “considerando a extrema relevância desta matéria” irá dar “conhecimento desta carta confidencial ao senhor Presidente da República”.

O resto da história é conhecido. No dia seguinte, 1 de Abril, Passos declarava à Lusa que “se o Governo achar que por qualquer razão, é preciso contrair um empréstimo especial para evitar incumprimento de Portugal no exterior, o Governo tem todas as condições para o poder fazer, e não é o PSD que vai pôr isso em causa. O PSD apoiará isso”. Isto no mesmo dia em que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, escrevia ao primeiro-ministro. Já a 2 de Abril foi a vez do líder do CDS, Paulo Portas, declarar à Lusa: "Não faço parte dos que diabolizam o FMI."

A 4 de Abril, é a vez de a tese da intervenção externa ser apoiada pelos principais banqueiros Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira, Faria de Oliveira, Fernando Ulrich e Nuno Amado, que depois de uma reunião com Carlos Costa, se dirigiram para o manifestar ao ministro das Finanças, Teixeira dos Santos. No dia seguinte, os banqueiros reúnem-se com Passos Coelho e a 6 com Cavaco Silva.

Na tarde desse dia 6 de Abril, o Jornal de Negócios publica uma declaração em que o ministro Teixeira dos Santos diz que a intervenção era inevitável. Menos de três horas depois, o primeiro-ministro, José Sócrates,assumiu perante as televisões o pedido de ajuda.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Como cresceu o Big Mac


Esta é a história desconhecida de Marco António Costa, o poderoso "número dois" do PSD, sob investigação do Ministério Público. Saiba como ele faz jus à curiosa alcunha Big Mac pela qual é conhecido por muitos no partido

Miguel Carvalho (artigo publicado na VISÃO 1164 de 25 de junho)
13:07 Quinta feira, 2 de Julho de 2015 |



Paulo Vieira da Silva chegou afogueado a um restaurante da zona das Antas, no Porto.
Vinha sorridente, bloco de apontamentos na mão, e quis ficar de frente para a porta. "Tenho amigos que percebem disto, não vá o Diabo tecê-las", justificou. Depois respirou fundo. Estaria indisponível para declarações ou 15 minutos de fama. Mas explicaria o que o movia, "em nome de um futuro melhor para os nossos filhos".
Desconhecido dos portugueses até há semanas, Paulo é militante e ex-dirigente do PSD no distrito, católico praticante e empresário. Saiu do quase anonimato aos 42 anos para denunciar à Justiça "o alpinista político", vice-presidente do partido, Marco António Costa, os "seus homens de mão" e a sua "rede". A tese, vertida para sete páginas e enviada ao Ministério Público em finais de abril, é esta: Marco promoveu o "tráfico de influências" e enriqueceu "sem olhar a meios". A Procuradoria abriu o inquérito 567/15.9TELSB, atualmente em curso na 12.ª secção do DIAP do Porto.
O texto da denúncia foi viral nas redes sociais. Os principais visados reagiram com honra ferida e desdém. Marco anunciou uma queixa-crime, o deputado Miguel Santos resume o caso a "teorias da conspiração" e o secretário de Estado Agostinho Branquinho não pretende perder tempo com o assunto. "Ouvir o Paulo a falar do PSD é a mesma coisa que ouvir o emplastro a dar palpites sobre o FC Porto", reagiu Virgílio Macedo, líder da distrital, lamentando as "alucinações".
Era uma vez em Fânzeres Mas, afinal, quem é Marco António Costa? Naquele 18 de maio de 1967, Berta dos Santos quase não sobrevivia ao parto. Era o tempo das parteiras irem a casa, mas a pronta intervenção de um médico salvou a mãe e o rebento. Marco nasceu na Rua do Valado, a dois passos do jardim de infância que ainda pertence a familiares.
Modista de méritos reconhecidos, a progenitora casara com Nominando Costa, que construiria nova casa de família a trabalhar na Novopan, fábrica de aglomerados de madeira da SONAE. Vizinhos de outrora recordam o pai, "belíssima pessoa", e a figura tutelar da mãe, "de mau feitio, estilo posso, quero e mando". Fânzeres, em Gondomar, era então uma pálida aldeia, onde perduravam memórias da "fome de rato" e a família vivia remediada, sem luxos nem misérias. A terra inspirara capítulos de Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis. Tivera emigrantes no Brasil e padres com muitos filhos a desassossegar casamentos, mas ficara famosa pelos palacetes, pelas lavadeiras e pelo pão que todos os dias fazia chegar ao Porto.
Marquinho, chamava-lhe a mãe, cresceu a colecionar carrinhos, a sair à rua aperaltado, mas sem mimos maternos. Com a mãe dada ao lar e à rudeza, o rapaz "chegou-se" ao pai.
De samarra vestida, Marco foi a primeira vez ao cinema, ao Porto, depois dos dez anos. O filme Gremlins é um dos seus preferidos.
Ainda delira com a cena em que os bichinhos "estão a armar a maior confusão e aquele que tem uma penugem mais branca liga o interruptor e sai disparado".
Já era vereador em Valongo quando foi ao teatro, e hoje, quando os dossiês e as lides partidárias folgam, é fiel leitor de Miguel Sousa Tavares.
O formigueiro político em que o País se tornara nos primeiros anos de democracia toma conta da família. A mãe é vista por vizinhos a empunhar uma bandeira do PCP ou do MRPP, pois só a foice e o martelo perdura na memória de alguns. O pequeno Marco até andará, já espigadote, a exaltar a Constituição, mas seria apenas um detalhe perdido no tempo. A maioria da família puxava para o PPD/PSD e o miúdo rapidamente lá chegaria.
A mão de Mirita Marco estava na pré-adolescência quando os pais se mudam para Valongo, a um sopro de distância de Fânzeres. Praticante de judo, chegaria a cinturão castanho e à seleção de juvenis. Abandona por causa da vida académica. Viria a licenciar-se em Direito e a ser visto em comícios do PSD a colocar aparelhagens de som. Já presidente da JSD concelhia, o grupo de amigos, onde se incluía o "shark tank" Rafael Koehler, presidente dos "jovens empresários ", vai ficar famoso por fazer da sede do partido, em Ermesinde, cenas à Gremlins.
"Portavam-se tão mal que foram proibidos de frequentá-la", recorda o médico João Bastos, então militante. "Entravam pelo telhado, queimavam cadeiras no inverno e até roubaram uma televisão, que depois recuperámos. Um regabofe!".
Por essa altura, Marco tem o seu primeiro emprego.
Dá-lhe a mão Joaquim Silva, mais conhecido por Mirita, dono da Norteáguas, empresa de furos e captações de água que viria a ganhar contratos com a Câmara de Valongo no tempo de Marco. Nunca se soube o papel do atual porta-voz do PSD junto de Mirita, nem ele esclareceu.
Viam-no com uma pasta sempre recheada de papéis. O empresário depressa meteria dinheiro em tudo o que mexia: imobiliário, combustíveis, automóveis e, claro, política. Era um "mãos largas" para escolas, associações, coletividades, mas perseguiam-no suspeitas de andar enfarinhado em atividades ilícitas. Quando algum negócio azedava, "Mirita abria ligeiramente o casaco e mostrava o prateado da pistola ao interlocutor", descreve quem o conheceu. Em 2000, o gesto saiu pela culatra: foi assassinado após um desaguisado com um cliente. Tombou de pistola na mão, sem direito a lendas, exceto esta: "Quem se aproximar também leva", terá dito o homicida. O empresário de Sobrado faleceu no seu Mirita Park, polígono industrial erguido dos escombros da Companhia Industrial de Fibras Artificiais (CIFA), cuja construção foi licenciada quando o PSD governou a autarquia.
Marco ficara amigo do filho de Mirita.
A vida que o herdeiro Rui levava, rodeado de barcos, carros de luxo e viagens, não estava ao alcance de Marco. Iam de Ferrari para a discoteca Ars Nova, em Ermesinde, faziam viagens ao Mónaco, correram redondezas e o mundo. Agora, o filho do velho Mirita (que não conseguimos contactar, nem no escritório, nem por telemóvel) coleciona processos por fraude fiscal e as Finanças detetaram gastos luxuosos de outros tempos refletidos na contabilidade das empresas.
Marco chegou à Câmara de Valongo em 1993, à boleia da vitória surpreendente do médico Fernando Melo, ex-diretor do Hospital de Valongo e governador civil do Porto. Terá sido o antigo deputado Nuno Delerue a falar ao novo presidente do puto prometedor. A campanha, faustosa, deixara desconfianças: "Já repararam que o PSD (Valongo) e a JSD (Valongo) põem e dispõem disto tudo como donos e senhores?", questionava A Voz de Ermesinde. Melo prometia ser "um bom gestor público e não um qualquer calceteiro". Valongo é por esta altura um concelho desordenado. Outrora a "Sintra do Norte", a freguesia de Ermesinde é enclave de "separatistas", indignados com os maus cheiros e a falta de água.
Marco entra para adjunto da presidência.
Consolida desde logo a amizade com o único homem que se pode dizer que é a sua sombra: Fernando Pinto, antigo segurança da noite, seu motorista até hoje. Seu, vírgula.
Requisitado ao longo de anos sucessivos por Marco para os cargos governativos que ocupou, ao abrigo de cedências de "interesse público", Fernando teve o vencimento pago pela autarquia até 25 de julho de 2013. Depois, o grupo parlamentar do PSD requisitou-o. "Fernando? Não estou a ver. Ah, sim, o Fernando Pinto! Sim, sim! É nosso motorista, mas também anda com o doutor Marco António, claro. Ele não é deputado, mas é normal partilharmos funcionários com o partido", esclareceu Luís Montenegro, líder da bancada "laranja".
Nos primeiros anos, Marco circulava pelos gabinetes à vontade. "Foi-me bastante útil no início. Ele é que dominava a política, as guerras", recorda Fernando Melo, quase a fazer 80 anos, "afastado por razões de saúde e por ter percebido como era a política ". No partido, Marco "determinou a exclusão e afastamento de muita gente capaz e bem formada, demonstrando ser incapaz de conviver com espíritos livres e independentes ", recorda José Puig, antigo deputado e ex-líder do PSD/Valongo. Na terra começara a notar-se o vaivém de empreiteiros no edifício camarário, o "regabofe e fartar vilanagem em que se transformou a cidade", escreveu-se na Imprensa local.
"Melo era decorativo. Diretamente ou por interpostas pessoas, o Marco é que sempre mandou em tudo", refere o promotor imobiliário Arnaldo Mamede. Quando o primeiro mandato termina, as construtoras não se limitavam a ter acesso livre à autarquia: sentavam-se à mesa. Em 1997, noticiam-se jantares do PSD e do presidente com "40 construtores civis" e já abundam relatos sobre as tentativas de Marco interferir em áreas sensíveis: urbanismo, habitação, águas e saneamento. "Não tenho estômago para engolir certas coisas", desabafou à época Armando Pedroso, o vereador que sairia no final do primeiro mandato com a coroa de ter resolvido o problema da falta de água e impedir a privatização dos serviços.
"Aqueles quatro anos foram a maior desilusão da minha vida. Fiquei vacinado.
O que se passava na câmara, ao mais alto nível, era tudo menos sério", recorda o eterno comandante dos Bombeiros de Valongo.
No partido, Marco vai ganhando lastro.
"Foi o coala bebé de Filipe Menezes. Empoleirava-se, era observador e tentava aprender. Fazia tudo o que ele fazia, mas já a pensar no que faria diferente, pois já era muito mais metódico, organizado e focado ", ilustra Pinto Lobão, dirigente do PSD/ Matosinhos.
Com a vitória nas autárquicas de 1997, campanha planeada e executada por Agostinho Branquinho, Marco passou a vereador do pelouro da Qualidade de Vida, Cultura, Juventude e Turismo. Antiga jornalista da RTP, Maria José Azevedo, conheceu Valongo a palmo anos mais tarde, ao liderar uma candidatura independente à autarquia. "A Manuela de Melo, minha colega na Câmara do Porto, disse-me que o Marco era trabalhador, empenhado e acima da média no pelouro da Cultura. Carregava a autarquia às costas", recorda. "Não o conheci à época, mas as pessoas ainda tinham dele a ideia de um fazedor", resume. Para as penas laudatórias locais, Marco era "fluente, oportuno ", tinha "amigos importantes e modestos " e ia tornar-se "a maior esperança do concelho".
Quando assume as pastas, Marco faz a primeira declaração de rendimentos pública.
Tem um Citroën AX 14D com nove anos, 75 ações da EDP no valor de cinco euros, um empréstimo de 55 mil euros para a casa e ganhava pouco mais de 27 mil euros por ano. Mas os primeiros sinais de riqueza são escrutinados. No início de 1998, defende-se numa carta aberta publicada no Ecos do Concelho. Adquirira um T1 antes de chegar à câmara e vendera-o por ser pequeno após o nascimento da primeira filha. Comprara outro maior. Um terceiro, na Póvoa de Varzim, pertenceria ao pai.
A tal carta terminava com Marco a colocar as contas bancárias à disposição e com uma frase para memória futura: "A minha vida é transparente."
O 'pequeno Maquiavel' Nem todos têm essa memória dos seus anos de Valongo, de onde saiu em 2003, quando já era vice-presidente, deputado e líder do PSD/Porto, com amizades e conquistas para a vida (ver Marco e os seis magníficos).
O Plano Especial de Realojamento (PER), que permitiu a construção de mais de 600 fogos, e a privatização das "águas" foram os grandes negócios do seu tempo autárquico. As suspeitas chegaram a tribunal, nalguns casos, até hoje.
No caso do PER, o BPN Crédito processou a autarquia por considerar que esta beneficiou a ECOP, entretanto falida, permitindo à empresa de construção receber em duplicado verbas a que não tinha direito.
Na origem do caso está uma "carta de conforto" assinada por Marco António que assumia, perante a instituição financeira, a intenção do município em adquirir 46 fogos à ECOP para habitação social. Só assim, alega o BPN Crédito, foi libertado o financiamento de 1,5 milhões de euros.
O município ganhou a causa em duas instâncias, mas, este ano, o Supremo Tribunal Administrativo acatou as razões do BPN e notificou o ex-presidente Fernando Melo e a autarquia para explicações. Nas sessões até agora realizadas, antigos administradores da ECOP assumiram proximidade com Marco e as boas relações não ofereceram dúvidas. Melo disse saber pouco ou nada.
No caso da privatização da empresa de "águas" concessionada à Générale Des Eaux e hoje nas mãos da Be Water, chinesa, um relatório do Tribunal de Contas sobre o setor considerou a concessão ruinosa para o erário público, tendo sido feita sem estudo de viabilidade económico-financeira. "O saneamento não tem cor, a água não tem cor, há é necessidades dos munícipes", proclamara Marco, nas assembleias municipais.
"A história do enriquecimento de Marco António está ligada à postura que teve em Valongo", garante Celestino Neves, deputado municipal independente. "Tudo o que fosse negócio e em que fosse possível entrar e ganhar dinheiro, ele estava lá. Depois amenizava com ajudas às coletividades e obras de beneficência", explica. "Ele aqui foi considerado uma pessoa que resolvia problemas. Mas o grande faroeste urbanístico é da época dele. Estão aí os esqueletos".
Basta circular por Valongo para perceber a legenda. Em 2012, o Público resumia o dilema futuro do concelho: ser ou não ser um "cemitério de prédios inacabados".
Alguém dirá, porém, que o povo não se queixa. "A população residente nos bairros sociais está globalmente satisfeita com a sua qualidade de vida", refere um estudo da Faculdade de Letras do Porto, de 2014, sobre o PER de Valongo.
Amigo' no 'Swissleaks' Mas façamos marcha atrás. Entre 1998 e 2003, o executivo camarário, que Marco integrou, andou na berlinda. Exemplo disso, a comitiva de 35 pessoas que a Câmara levou a Fortaleza, no âmbito de uma geminação, levantou celeuma. Criticaram-se os gastos da autarquia endividada. Do outro lado do Atlântico, a recebê-los e a fazer a ponte com as instituições brasileiras, estava Generoso dos Santos, empresário de Sobrado (Valongo), emigrado há décadas.
Estreitaram-se então laços duradouros entre Generoso, políticos da terra, empresários e jornalistas. Outras viagens se farão ao Brasil através da Bojador, agência de viagens "oficial" do município, a que recorriam Fernando Melo, Marco António e amigos. Aos 85 anos, Generoso tem ainda negócios no Brasil e em Portugal. O empresário dá avultadas quantias para as festas de São João na sua terra, mas o momento atual não é o mais feliz: apesar dos desmentidos, Generoso, familiares e sócios constam da extensa lista de 342 nomes que o Senado brasileiro investiga a propósito do escândalo Swissleaks, suspeitos de manter contas na Suíça durante anos.
Nos jornais de Valongo, Marco começou a destacar-se em traços mais nítidos.
"Farto de ser a eminência parda da câmara, quer saltar para a ribalta." Os editoriais dizem-no então "possuidor de uma ambição desmedida". É "o pequeno Maquiavel".
Ou então o "pequeno Zaqueu", referência à personagem bíblica que "precisa de subir às árvores para ser visto". Citam-se os "boys" de Marco na autarquia. E surge a "bomba" Eduardo Madeira.
Antigo vereador socialista convertido ao PSD, depois afastado da vice-presidência, Madeira denunciou durante meses, em sessões contínuas da assembleia municipal, os "podres" da autarquia. Por considerá-la "coutada" de amigos e familiares, foi condenado por difamação. Mas uma certidão extraída do processo, suportada por documentos e denúncias de Madeira, seguiu para Valongo. Três anos depois, os jornais deram a certidão como perdida a caminho do tribunal. Verdade ou não, o caso teve até hoje o repouso dos mortos.
"Muito do que disse e denunciei à época sobre a câmara e Marco António continua válido", assume. "Mas, apesar de pensar que era minha obrigação fazê-lo, eu é que fui condenado. De qualquer modo, é um assunto encerrado na minha vida e não pretendo reavivá-lo." A última referência a este processo é uma notícia do JN de 2007, que refere o extravio da certidão.
Mas o que disse o vereador, naquelas sessões camarárias? A autarquia transformara-se no local preferido "dos corruptos, dos traficantes de influências". A privatização das "águas", disse, havia sido tratada "à revelia dos vereadores" e estranhou haver adjudicações com verbas "acima do valor base". O município esbanjava recursos em propaganda, "avenças para amiguinhos e apaniguados". Marco, esse, disse o vereador, dedicava-se "à avaliação e intermediação na venda de terrenos", sugerindo valores "e até o nome das empresas" a contactar e que, "por coincidência, têm grandes interesses na Câmara". Atribuía ainda ao atual "número dois" do PSD a gestão de um "saco azul, alimentado sempre que necessário por empresas que trabalham para a autarquia".
São desse tempo relatos de campanhas eleitorais em que terá circulado muito dinheiro, ao ponto de haver quem ironizasse, dizendo que as notas eram transportadas em caixas de sapatos. A dada altura, o médico João Bastos chegou a espantar-se: no seu tempo, "o dinheiro aparecia e sabia--se de onde vinha. Hoje no PSD, pelo que se vê, não falta dinheiro, gostava de saber de onde é que ele vem", questionou-se, em 2001. Catorze anos depois, reforça: "O homem dos negócios à volta da Câmara e do partido era o Marco. Toda a gente sabia isso", afirma o antigo histórico do PSD.
Eduardo Madeira referiu-se ainda a casos ocorridos com os clubes de futebol Ermesinde e Valonguense. Construtores civis depositavam verbas consideráveis nas contas dos clubes ou dos seus dirigentes e, dias depois, quantias semelhantes voltavam a sair, deixando os extratos reduzidos a trocos. No caso do Valonguense, Marco António Costa terá chegado a convocar uma reunião de emergência sobre o assunto com figuras próximas.
No âmbito de vários processos, a PJ fez buscas no concelho para apurar a veracidade de suspeitas. Na agência Bojador nada encontrou nos arquivos sobre as viagens dos políticos da autarquia. Nos clubes, desapareceram documentos. Na Câmara, segundo um antigo responsável do departamento de obras, atual funcionário, "é hoje impossível reconstituir todas as peças do PER". Há uns anos, no âmbito do processo Apito Dourado, escutas de conversas de Marco António com Valentim Loureiro eram também dadas como desaparecidas. "Não sei dizer se lá estão, de facto", refere o juiz António Carneiro, que julgou o caso. Escudado nas leis, autorizou o acesso da VISÃO aos 144 volumes, mas impediu a consulta das escutas.
A nova vida de Marco Com a entrada na autarquia de Gaia, em 2005, e a liderança da distrital do Porto do PSD desde há 15 anos dividida por ele próprio, Branquinho e Virgílio Macedo, três amigos de longa data, Marco foi "enterrando " as memórias de Valongo, onde tudo começou. Esteve no Governo e agora é vice-presidente do partido, onde aufere cerca de três mil euros mensais. Na sua última declaração pública de rendimentos, de julho de 2013, o n.º 2 do PSD refere cerca de 77 mil euros de rendimento dependente e mais 16 mil de rendas prediais. Revela ainda a doação às filhas de uma moradia em Valongo, além da propriedade de dois escritórios em Lisboa. Declara um único automóvel, um VW Tiguan, mas que se encontra em usufruto da ex-mulher. Com casa em Gaia e em Lisboa, Marco é incansável na dedicação ao partido, percorrendo o País de lés a lés. Em Valongo e Gaia era, por vezes, o último a apagar a luz. Para muitos militantes e simpatizantes ele é o "Big MAC".
Apesar de insistentemente solicitado, via PSD, pela VISÃO, por mail e telefone, Marco António não respondeu às nossas tentativas de contacto nem o advogado Bolota Belchior, mas os amigos e deputados Virgílio Macedo e Miguel Santos tomam-lhe as dores, vendo-se ao espelho: "As denúncias recentes fazem de nós um bando de malfeitores. É alucinação", reage Virgílio. "A política tem um desgaste enorme na vida familiar e na saúde. Aqui não existem estratégias de grupo", refere Miguel Santos que, a par de Marco, já foi relacionado com a Maçonaria regular. O vice-presidente do PSD, de resto, frequentou a Loja Brasília, mas terá entretanto confessado a amigos a saída. Em 2012, o Expresso noticiou que Miguel Relvas e Marco foram os dirigentes contactos pelo antigo diretor da secreta externa (SIED) e alegado "maçon " Silva Carvalho "para se tentar promover ". Mas não só. Marco receberia o clipping diário do "espião" e este chegou a pedir a Miguel Santos, em junho de 2011, "alguém de jeito" para o Conselho de Fiscalização das "secretas". O deputado jurou não ter dado qualquer importância ao assunto. Meses depois, Paulo Óscar, amigo de Marco e Miguel, antigo procurador em Valongo e atualmente no DIAP do Porto, foi proposto para membro daquele órgão. Segundo o Sol, teria sido Marco a sugeri-lo ao partido. Na audição, Paulo Óscar mostrou-se contrário a um período de nojo para os espiões que quisessem abandonar os serviços e abraçar o mundo empresarial. O chumbo à sua eleição na Comissão Defesa Nacional contou com votos de deputados do PSD.
No partido do Governo existe por estes dias quem reclame uma maior atenção da Justiça a este elemento da "família": "Quando Marco, o homem que segurava a mala do telemóvel do Menezes, chega onde chegou, há algo que não bate certo.
O percurso dele tem demasiadas sombras e merecem ser investigadas", reclama Pedro Salvador, conselheiro nacional do PSD e ex-diretor da campanha de Passos à liderança.
"As suspeitas suscitadas justificam, de sobra, o integral esclarecimento dos métodos de atuação e alegadas promiscuidades de Marco enquanto dirigente partidário e titular de cargos públicos", reconhece o advogado e antigo deputado José Puig. Nisto, o silêncio do visado "só contribui para o crescimento das dúvidas".