domingo, 27 de novembro de 2016

Fidel Castro (1927-2016): A morte muito antes do sonho


Viveu como falava: aos borbotões, com gestos largos, a explicar a sua ideia de revolução, que uns seguiram, outros não, e uma parte deixou a meio. O último herói do socialismo ou o último pirata das Caraíbas, agora tanto faz, porque morreu muito antes do sonho.

FERNANDO SOUSA 26 de Novembro de 2016, 9:51 actualizado a 26 de Novembro 


Agora, sim, é verdade: Fidel Castro morreu. Talvez só para quem não gostava dele – porque para outros continua a viver, entre a incredulidade e a lenda. Na mais extensa das entrevistas que deu, a de cem horas, em 2005, ao antigo director do Le Monde Diplomatique Ignacio Ramonet, ele próprio antevia esta irrealidade: “No dia em que eu morrer de verdade, ninguém vai acreditar. 


Poderia andar como o Cid, o Campeador, que mesmo morto era levado a cavalo para vencer batalhas!” (Fidel Castro – Biografia a duas Vozes). Mas morreu mesmo; e ninguém o deverá levar para mais nenhuma batalha, porque as teve de sobra, e disso se falará de hoje em diante até que a História arrefeça. Ainda é muito cedo.


Um dos primeiros companheiros de jornada, Max Lesnick, descreveu-o uma vez como “jacobino, rebelde, radical”. Modos de ver. Ramonet retratou-o de uma maneira mais moderada: “Não é nem o monstro que certos meios de comunicação ocidentais descrevem, nem o super-homem que às vezes alguns meios de comunicação cubanos apresentam. É um homem com princípios éticos e morais rigorosos, que leva um modo de vida muito austero e frugal.”


Do campo ao mundo

Uma coisa é certa: Fidel, mesmo nascido num berço de ouro, voltou as costas à condição de filho de um fazendeiro, Ângel Castro, natural de Láncara, na Galiza, para desafiar vários líderes populistas da sua juventude, de Batista a Batista, passando por Grau San Martín ou Socarrás, e 11 presidentes norte-americanos durante cinco décadas – Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e Obama –, em nome de uma ideia de revolução. Que amadureceria – ou que empobreceria, conforme as opiniões – com o tempo, a idade e os ciclos da história, para acabar num país onde os direitos económicos e sociais não quereriam saber dos direitos civis e dos políticos – como é a Cuba actual.

Na Roménia, em Maio de 1972 REUTERS/PRENSA LATINA

Um aviso: a maior parte dos autores que foram à fonte para beber a verdade sobre a vida do líder cubano ou tiveram de aceitar filtros, como Cláudia Furiati (Fidel Castro – Uma Biografia), que deveu parte dos seus apontamentos a gente da maior confiança do regime, ou revisões do entrevistado, como Gianni Miná, Frei Betto, Tomás Borge ou Ramonet.

Num jogo de basquetebol, em Cracóvia, Polónia, Junho de 1972

Fidel Alejandro Castro Ruz nasceu em Birán, um lugarejo rústico do Oriente, no dia 13 de Agosto de 1927, mesmo que na ilha não se queira que tenha nascido nesse dia e mês, mas um ano antes (daí ser noticiado que morreu aos 90 anos). Isto porque, não podendo, por falta de idade, frequentar o grau a que tinha direito por mérito próprio no Colégio de Belén, o pai conseguiu que o registo civil aldrabasse a escrita para o garoto se poder inscrever. Pelo menos foi o que averiguou Furiati. Motivo aparente da controvérsia: 26 é o número fetiche do regime, por causa do 26 de Julho de 1953.

Num julgamento público, em Havana, em Abril de 1961

Nasceu de Dom Ângel e de Lina, com quem o pai passou a viver e se casaria mais tarde, depois de se divorciar de Maria Argota, cresceu no meio das selvajarias próprias dos garotos da terra e da idade – tinha, por exemplo, um gosto particular em operar pássaros e outros animais com lâminas de barbear –, tornou-se exímio no manejo de armas; e, com o tempo, um atleta sem competidores à altura, principalmente quando chegou aos 1,85 metros – no basebol era o melhor, fosse pitcher ou right.

Na ONU, em 12 de Outubro de 1979

Rebelde com causa
Aluno de escolas jesuítas, era aplicado. Estudava até desoras, decorava páginas só de lhes passar os olhos, estava sempre entre os melhores. Era forte em Psicologia, História, principalmente da Revolução Francesa, e um apaixonado de Rousseau e Diderot, mas também bom nos números. Tinha uma mania estranha: depois de ler uma página, rasgava-a e deitava-a fora. Um livro de 500 acabava em cem.

Com o chefe índio W.A.Raifford, em Havana, em Julho de 1959

A vida política, Fidel Castro inicia-a na Universidade de Havana, onde entra no dia 27 de Setembro de 1945, na Federação dos Estudantes Universitários (FEU), repartindo a militância com o estudo de Direito. Cuba era nesse tempo um alvoroço, cheia de zaragatas, golpes, conspirações, gangsterismo, comércio de favores, bordéis com clientes certos: os Marines. Era um país à procura do amor-próprio, refém da Emenda Platt, que desde 1901 o acorrentava aos Estados Unidos. A anacrónica base de Guantánamo veio daí.

Nas áreas libertadas do Vietname do Sul, Outubro de 1973

É nesses anos, na FEU, que se molda, na luta pela direcção dos estudantes, ou contra o sistema, na altura representado por Grau, alvo do seu primeiro discurso público, ou insignes bandidos como Salabarría ou Masferrer, que eram uma espécie entre os polícias e os pistoleiros. É nesses anos que mergulha na vida e nas memórias do “apóstol” José Martí, Bolívar, Antonio Jose de Sucre.

Com Malcolm X no hotel Theresa, em Nova Iorque, em Outubro, de 1960

 É nesses anos que sobe, desce e discursa, já então aos borbotões, na Escalinata, de acesso à escola. E é por esses anos também que anda com uma pistola entalada no cinto das calças, que conhece Lesnick, Alfredo Guevara e outros que o hão-de acompanhar. No meio de conjuras, flyers, jornais clandestinos e programas radiofónicos de curta duração, lá acaba o curso e abre um escritório em Havana, onde defende causas de operários em Melena del Sur ou de camponeses em Santa Cruz del Norte, frequentemente sem levar nada. Tem uma ideia fixa: derrubar Batista.

Nas ONU, Em Nova Iorque, em 12 de Outubro de 1972

Robin Hood na Sierra Maestra

No dia 26 de Julho de 1953, a coberto da paródia do carnaval cubano, o Movimento tenta a sorte, em Santiago, contra os quartéis de Moncada e Bayamo. Morrem três atacantes, 87 serão presos, torturados e mortos. O tiro de partida falha.

Em Odessa, Ucrânia, em 1981

 Fidel e outros, apanhados numa cabana, a dormir, e o irmão, vão para Boniato, a seguir para a da Ilha dos Pinheiros, de onde sairão mas para serem julgados, assumindo ele a própria defesa durante duas horas num trecho que se transformará num libelo contra o regime – A História Me Absolverá.

Com o líder da Autoridade Palestiniana, Yasser Arafat, em Havana, em 1974

Amnistia, exílio no México, a casa de María Antónia, o encontro com um jovem argentino que andava a conhecer o mundo, um tal Guevara, que começava ou acabava as frases com "che", que tanto pode ser o nosso "pá", como "olá" ou "caramba"; treinos físicos em inocentes ginásios e de tiro em quintas emprestadas, mil fintas aos agentes de Havana; e um iate chamadoGranma, a cair de podre no porto mexicano de Tuxpan.

Num campo de concentração nazi em Oswiencin, Polónia, em 1972

Fidel Castro já levava algum lastro político. Participara no Bogotazo, em 1948 – na verdade, por acidente, pois ia para um encontro com Jorge Gaitán, que nunca conheceria –, tentara uma aventura contra Trujillo, o ditador dominicano, e contra Moncada, e comprara em Nova Iorque, onde foi com Hilda, já divorciado de Mirta, um livro extraordinário: O Capital.

A preparar um entrevista para a televisão chilena, em 1971

Agora era tudo ou nada. Numa madrugada de Novembro de 1956, o barco, de 12 metros e com uma capacidade máxima para 25 pessoas, largou a abarrotar de presuntos, laranjas, leite condensado e 82 homens. Uma semana depois chegava às costas de Cuba, com a ajuda, entre outros, de um mapa que o Movimento 26 de Julho conseguira de um navio português.

Com o presidente do Chile, Salvador Allende, e o presidente cubano Osvaldo Dorticos, em Havana, Dezembro de 1972

 Desembarque, pântanos, mosquitos, combates, emboscadas de toca-e-foge, Sierra Maestra; a entrevista a Herbert Mathews, do New York Times; baixas, fuzilamentos. No torvelinho, Célia Sánchez, tão próxima dele como da revolução. E Havana, no último dia de 1958.

Com Manuel Pineiro, Raul Castro, Vilma Espin e uma menina não identificada

O repórter ficou encantado. Desmente a morte do chefe do M-26, que a propaganda batista espalhava aos sete ventos, e descreve-o como um campeador: “A sua personalidade é cativante. (…) É fácil compreender porque os seus homens o adoram. (…) À primeira vista, fisicamente e como personalidade, é um homem educado, de uma dedicação fanática à causa, um homem de ideais, coragem e qualidades notáveis de liderança. 

Durante a inauguração do campeonato de basebol amador em Havana, em 1963

As suas ideias de liberdade, democracia, justiça social, necessidade de restaurar a Constituição, realizar eleições, estão bem arraigadas. (…) O programa é vago, com disposições generalizantes, mas traz uma nova proposta para Cuba, radical, democrática e (…) anticomunista”, escreve, comparando o entrevistado e Bolívar, Lincoln e Robin Hood.

A ver o cosmonauta cubano Arnaldo Tamayo Mendez e Iuri Romanenko, em Setembro de 1980

Mathews escreveu a quente. A Sierra Maestra não era Sherwood. Havana aproxima-se de Moscovo, os Estados Unidos eriçam-se; vem o embargo, no futuro revisto e aumentado, uma sucessão de episódios que marcaram a ilha e o mundo, a Baía dos Porcos, em 1961, a crise dos mísseis um ano depois, a exportação da revolução, a morte de Che na Bolívia, atentados, a aventura angolana, enquanto mesmo assim tomava forma uma sociedade que erradicaria o analfabetismo e faria da saúde um direito elementar, bem como a habitação.

Com Ernesto "Che" Guevara numa imagem com data desconhecida

Com Ernesto Che Guevara nos anos 60

Com Ernesto Che Guevara

Discurso em Havana, em 1972

Em Setembro de 1960 a discursar perante delegados das Nações Unidas

Havana, Cuba após a morte

Havana, Cuba

Havana, Cuba

Vaparaiso, Chile

La Paz, Bolívia

Livro de condolências, Manágua, Nicarágua

Embaixada cubana no México

Caracas, Venezuela

Embaixada cubana em Lima, Peru

Honduras

Paraguai

Paraguai

Colômbia

A jogar basebol em Havana, em 1964

Com o Papa Francisco

Com Nicolas Maduro

Com Vladimir Putin

Com Dilma Rousseff

Com Lula da Silva
Com Lula da Silva

Com Michelle Bachelet

Com Jimmy Carter

Com Mahmoud Ahmadinejad

Com Hu Jintao

Com Marcelo Rebelo de Sousa

Com Nong Duc Manh

Com Cristina Kirchner

Com Maradona e Hugo Chávez

Com Nicolás Maduro

Chávez visita Cuba ainda antes de ser presidente (

Chávez visita Cuba ainda antes de ser presidente (

Numa universidade da Venezuela (28/10/2000)

Chávez era um fã de basebol (29/10/2000)

A cortar cana de açucar, em 1962

Com o irmão Raul Castro, em 1978

Retrato do final dos anos 80

A entrar em Havana depois da vitória revolucionária, em Janeiro de 1959

Com Ernesto Che Guevara nos anos 60

Guerrilha liderada por Fidel, em 1958

Com o primeiro-ministro russo Nikita Khrushchev em Moscovo, em 1963

Com Ernesto Che Guevara nos anos 60

Discurso em Moscovo, em 1981

Retrato dos anos 60

Discurso em Havana, em 1970

Com Ernesto Che Guevara, nos anos 60

Com Camilo Cienfuegos e Ernesto Che Guevara, em Janeiro de 1959

Depois de derrotar a ditadura de Fulgencio Batista, em Janeiro de 1959


Marcha em Havana, em 1960

No memorial da batalha de Carabobo, na Venezuela (

O texto, intitulado “Perdemos o nosso melhor amigo”, termina com a frase “Hasta la victoria siempre, inolvidable amigo!” ("Até à vitória sempre, inesquecível amigo!")

“Patria o muerte!”


E por fim a partida da História com que Fidel não contava: a derrocada dos regimes comunistas do Leste europeu, a perda dos principais compradores do açúcar cubano, o “período especial”, a onda de balseros de 1994, a aflição económica, apesar das receitas turísticas e das remessa dos emigrantes, no grito com que sempre – e desde então ainda mais – terminava os seus intermináveis discursos: “Patria o muerte!”

Em Havana, em Novembro de 1976

Com o presidente cubano Osvaldo Dorticos, Anastas Mikoyan e Ernesto Che Guevara, nos anos 60

No dia 26 de Julho de 2006, em resultado de uma doença feita segredo de Estado, Raúl substituiu-o na presidência, o que levou alguns observadores a esperar um abrandamento da repressão, talvez uma abertura. Nada. Depois de um longo período de convalescença, com novos rumores sobre a sua morte, começou a receber chefes de Estado estrangeiros, alguns deles amigos, como o venezuelano Hugo Chávez, a escrever crónicas no Granma, sobre o Iraque, o Afeganistão, o ambiente, a globalização, a influenciar a política do país, até porque continuava a ser primeiro secretário do PCC, e a aparecer em público. Em Miami, o Nuevo Herald deu-se por fim conta que não ia haver nenhuma mudança com nome disso.


Com Camilo Cienfuegos num jogo de basebol em Havana entre os "Barbudos" e o "Occidente", em 1959 

Raúl começou entretanto a mudar pouco e aos poucos. Em 2011, num congresso histórico do PCC, adoptou uma série de medidas de abertura económica. Em 2014, aproveitando o espaço aberto com a retirada de cena de Fidel, Barack Obama passa seis meses a negociar com Cuba em segredo. No final desse ano, os dois países retomam relações e em Março último Obama visita Havana, uma estreia para um Presidente dos EUA desde 1928. Raúl demonstrou assim a sua natureza pragmática, surpreendendo o mundo.


Com membros da guerrilha, em Havana, em Janeiro de 1959

Mas, sim, Fidel Castro, morreu. Vários adivinharão uma reviravolta política como um ciclone das Caraíbas. Outros, como Ramonet, que todos os ajustamentos serão calmos. “O que é que acontecerá quando desaparecer, por causas naturais, o Presidente cubano? É óbvio que se produzirão mudanças, já que ninguém na estrutura do poder (nem o Estado, nem o partido, nem as Forças Armadas) tem a sua autoridade. Alguns analistas vaticinam que, como aconteceu na Europa do Leste depois da queda do Muro de Berlim, o regime actual será prontamente derrubado. 

Com Ernesto Che Guevara nos anos 60

Com uma chapka, em Janeiro de 1964, perto de Moscovo

Enganam-se”, escreveu o jornalista, em 2006, no prólogo das cem horas com Fidel, explicando que os regimes comunistas europeus eram impostos do exterior e detestados por uma parte importante da população, que não era o caso de Cuba. A palavra agora aos que lá vivem.

Com a guerrilha depois da vitória do golpe que derrubou Fulgencio Batista, em Janeiro de 1959


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