quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Verdade ou consequência?



Sérgio Figueiredo

Diário de Notícias, 2015.08.03

1 O homem que dança, o homem que namora, o homem que canta, o homem que sabe rir de si próprio, o homem que somos todos nós, é o homem que se revela no exato momento em que o seu tempo se esgota. Afinal o homem também presidenta. Afinal é Fénix. Afinal é um presidente extraordinário! É a equipa de sonho, o dream team que primeiro entusiasma, depois desilude, o jogo começa e não concretiza, muito prometia e nada realiza. Empata e perde, perde e empata. Nunca ganha. Não ganhava. Até os golos aparecerem.

Cuba é histórica. Irão era impossível. Até na Grécia, influência discreta. Obama Care existe. Obama importa-se: o casamento gay, a energia verde, o combate às alterações climáticas. Meses vertiginosos. Cabem seis anos e meio nos 18 meses que faltam? Haverá tempo para resgatar o sonho que os americanos elegeram? Haverá espaço possível para nova reconciliação entre o povo e a política?

O povo incrédulo e descrente, que um dia acreditou na regeneração do sistema por dentro. Por isso votou e elegeu-o. Elegeu um deles, um senador federal que, simultaneamente, podia ser qualquer um de nós. Yes, we can!

O capitalismo mutilava-se, mas também dava provas de vida, dizia-nos que se conseguia emendar. A ética tinha perdido o seu mediador no diálogo com o mercado. O Lehman Brothers fizera dobrar os sinos. Mas, com o toque a despertar, nascera Obama para que ninguém deixasse de acreditar. Por isso Barack Obama era a verdade e a esperança.

Continuou a ser a verdade, mas tornou-se a oportunidade perdida Da verdade inspiradora à verdade frustrante. Nós contra o poder. A verdade retórica, sempre a verdade – mas a verdade vencida. A mudança esmagada pelo sistema. Obama traído, Obama ingénuo, Obama foi-se traindo, Obama foi desistindo e envelhecendo. A verdade inconsequente pode ser mais nefasta do que a verdade inconveniente. Pior do que ser enganado é deixar de acreditar.

2 A normalização das relações com Cuba – que interrompe cinco décadas de um embargo que há muito se perdera na história. O acordo nuclear como Irão – que retoma laços com uma potência regional demasiado perigosa para ficar à solta no Médio Oriente. Em dois meses, dois acordos notáveis. Vitórias sem humilhação – não conheço forma mais bela de definir a grandeza humana. Dois outros avanços civilizacionais na civilização dominante: a reforma da saúde, que ganha lastro e consistência; o casamento entre homossexuais, que o Supremo Tribunal legalizou.

Na primeira metade deste ano de 2015, os Estados Unidos promoveram um conjunto de mudanças revolucionárias com impactos relevantes e duradouros, muito além das suas fronteiras. Nas relações internacionais, por definição. Nas políticas sociais, por convicção. Nas regras que definem o conceito da família, por uma questão de valores, consequência da liberdade. Verdade ou consequência?

Verdade e consequência As duas. As mesmas que o Papa Francisco persegue, um Obama no Vaticano, uma lgreja Católica governada por outro homem normal, superior mas normal, a fé na raça humana.

“Finalmente sei o que estou a fazer”, ironizou Obama sobre si mesmo numa recente entrevista a John Stewart no Daily Show. Agora que já não restavam dúvidas, quando ninguém esperava por nada, quando todos os analistas eram unânimes em condená-lo como “presidente das boas intenções”, e só isso, Obama faz prova de vida. O original afinal não capitulou.

3 Está claro que é demasiado cedo para o balanço do que Obama fez. Mas não é demasiado tarde para continuar a ouvir o que tem para dizer. O discurso desta semana na União Africana, em Addis Abeba, não foi só inédito para um presidente americano. Foi sobretudo corajoso. Contra o poder eterno: “ninguém devia sér presidente para a vida”; “não percebo porque é que as pessoas querem ficar tanto tempo, especialmente quando já têm muito dinheiro”. Contra a corrupção. Contra as “democracias” que atiram jornalistas “para trás das grades por fazerem o seu trabalho” e que ameaçam ativistas “numa repressão de governos contra a sociedade civil”.

Obama chegou igualmente tarde a África, porque na verdade não conseguiu exterminar as “áfricas” que persistem dentro do seu país. Desde logo Guantánamo – que, garante, ainda resolverá antes de sair da Casa Branca. Mas também a legislação sobre porte de armas – que provoca dezenas de milhares de vítimas por ano e, como confessou à BBC, sente “angústia” e “frustração” por não conseguir “resolver essa questão”.

Para surpresa de muitos, Obama também conseguiu o apoio do Senado para negociar a participação dos EUA no Acordo de Livre Comércio para o Pacífico. Criando um importante contrapeso à China na região Ásia-Pacífico, esta iniciativa tem um enorme potencial de transformar as relações económicas da parte mais dinâmica do mundo. A visita apressada a Teerão, nesta semana do ministro de Negócios Estrangeiros francês, mostra a relevância das consequências económicas e políticas que o acordo com o Irão traz para o mundo.

Tudo isto ocorre num contexto de recuperação económica da América, em que a indústria se reergue e os EUA recuperam o estatuto de principal potência energética mundial, ultrapassando a Arábia Saudita e a Rússia.

Barack Obama chegou ao poder impulsionado por uma invulgar onda de entusiasmo. O jovem senador hibernou seis anos e saiu da caverna de cabelos brancos. Homem simpático, reencontrou um país apático. Os tradicionais aliados europeus, prostrados pela crise e dominados por visões obtusas. Verdade ou consequência? Fim de mandato em ode ou o canto de um cisne?

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