segunda-feira, 2 de março de 2015

SOMOS UM PAIS DE PRINCIPES - António Lobo Antunes

Não subscrevo grande parte deste texto, aliás como quase todas as crónicas de António Lobo Antunes, mas há parágrafos que merecem uma reflexão.



“Recordo um alentejano da raia, velho duns oitenta e tal anos, com que me cruzei algumas vezes na sala de espera do IPO. Aparecia sempre de fato, o mesmo fato, de colarinho apertado sem gravata. Quando era chamado, avançava cheio de dignidade, como um príncipe e lhe digo que nunca vi gravata mais bonita do que aquela que ele não trazia. Sabe, somos um país de príncipes.”
Cito de memória este pequeno excerto de entrevista ao António Lobo Antunes que ouvi há dias na TSF. Impressionou-me este seu olhar sobre um país que tendemos a desprezar. Imagino esse velho alentejano, mãos grossas, pele tisnada, cabeça erguida, com a suave altivez que só o orgulho numa vida honrada de trabalho consegue dar. Imagino-o, na sua aldeia, ao fim da tarde, sentado à soleira da porta, olhando um bando de crianças imaginárias brincando no largo da Igreja. Há muito que cada uma dessas crianças partiu sem deixar substitutos e esvaziando de morte a vida dos que ficaram. Também ele, noutros tempos, pensou em partir. Não que não amasse o seu Alentejo, mas para fugir a uma vida de corpos dobrados ao sol que pouco mais dava que o suficiente para uma refeição digna. Mas vieram os filhos.
O primeiro, estava ele em Angola, uma terra grande e vermelha como o seu Alentejo, depois os outros três. Ainda se lembra de Angola com uma pontinha de saudade. Não da guerra, que não deixa saudades a ninguém, nem da camaradagem que para ele se ficou no barco de regresso, mas da imensidão duma terra que prometia futuro. Um futuro adiado percebeu depois. Com os filhos, vem uma responsabilidade que condiciona a aventura. Por isso ficou, a tempo de lhe ver entrar aldeia adentro ex-camaradas de armas anunciando um mundo novo, sem patrões nem trabalho de sol a sol, que “a terra é de quem a trabalha!” Ainda alvitrou questionar quem lhe pagaria o salário para sustentar os quatro gaiatos que tinha em casa quando deixasse de haver patrões, mas já baloiçavam no ar foices e forquilhas para ir “tomar o que é nosso”.
Tivera dose de guerra suficiente para saber que a violência só serve para agudizar o ódio, que é o que fica quando regressa a normalidade. Por isso não embarcou “nos amanhãs que cantam”, mas foi levado por eles. Como prometido, desapareceram os patrões de Lisboa (não que aparecessem muito), para aparecerem outros que conhecia bem. Eram vizinhos de toda a vida e, aos Domingos, costumavam jogar com ele à sueca no Central. Eram patrões em nome de todos, mas eram patrões. Já não curvavam os corpos sobre as searas, nem jogavam à sueca aos Domingos, nem se juntavam ao fim da tarde para chorar em cante as cores do seu Alentejo. Agora eram políticos e as terras eram unidades de produção e o Largo da Igreja era Praça 25 de Abril. Tudo mudara menos o seu salário que antes, mesmo com dificuldade, lhe dava para amealhar algum e agora desaparecia ainda a semana não terminara.
Quando os campos deixaram de produzir, por incúria, por incompetência, por ignorância de quem mandava em nome de todos, regressou a miséria e a desesperança de que se lembrava da meninice. Voltou a sonhar em partir. Ficou, pelo menos uma parte dele, porque os filhos, os quatro, partiram em busca dum sonho que já fora seu e que lhes entregara como que em herança. Pouco depois, regressaram os antigos patrões e voltou a acreditar que os campos se encheriam de espigas doiradas a balouçar ao sol quente de Agosto. Mas agora quem mandava eram os filhos dos patrões, que falavam dos subsídios que vinham da Europa para não semear. Achava estranho. Para ele a Europa era a Suíça, onde trabalhava o seu mais velho ou a Alemanha onde estava a menina dos seus olhos com o marido que dava no duro na construção. Por isso, não percebia porque é que essa Europa que precisava do trabalho dos seus gaiatos queria pagar para nós, por cá, não trabalharmos? Mas assim era e os campos continuavam abandonados, vazios de dar dó. A não ser junto à raia, numas propriedades compradas por uns espanhóis que tinham plantado oliveiras que, ouvira dizer, já estavam grandes e carregadinhas. Talvez houvesse trabalho para a apanha.
Depois viera o euro e, com ele, as estradas e o Alqueva. Um mar de água como nunca vira, para regar os campos e encher do verde da esperança o seu Alentejo. Falava-se de turismo, de magotes de gente para ver este mar de água, mas regadio nem um. Tanta água, tanto dinheiro, tanto trabalho para nada. Agora era a crise. Ouvia na televisão que devíamos muito dinheiro à Europa, tanto que ele nem conseguia imaginar quanto fosse. Só podia ser daquele que os filhos dos patrões receberam para não semear, ou do que gastaram para fazer o Alqueva e as estradas novas que estavam por todo o Alentejo. Só podia, porque ele não devia dinheiro nenhum à Europa. Nem à Europa, nem a ninguém. Sempre tinha vivido com o pouco que ganhava com o seu trabalho e se hoje tinha algum de lado era porque a sua senhora era poupada e nunca esbanjara e os filhos, graças a Deus todos bem, lhe mandavam algum, todos os anos.
Ele não devia nada à Europa, a não ser o facto de ter recebido de braços abertos o seu mais velho e a sua menina, que em boa hora tinham deixado este pedaço de terra ao abandono, sem esperança, nem futuro.Não queria saber de dívida nenhuma, mas a verdade é que à conta dela, tinham fechado o centro de saúde, onde ia com regularidade, mais para ouvir e ser ouvido, do que para se queixar das maleitas que a vida lhe ensinara a guardar para si. Por isso, quando as forças foram desaparecendo e o tisnado do sol se transformou num amarelo pálido, vestiu o seu fato de Domingo e foi ao hospital a Évora, a mando da mulher, saber o que se passava. Estava muito mal. Se tivesse vindo mais cedo… Assim, tinha de ir a Lisboa fazer uns tratamentos todas as semanas. Eram tratamentos difíceis, que o iam deitar muito a baixo, mas que, se tudo corresse bem, o deixariam bom, porque nestas idades a doença avançava mais lentamente e por isso tudo haveria de correr bem, dissera-lhe uma doutora simpática e bonita, que mal falava português. Para ele não havia tratamentos difíceis. Difícil tinha sido toda a sua vida. Por isso, todas as segundas de manhã, vestia o seu fato de Domingo e esperava pacientemente a chegada da ambulância que o levaria até Lisboa, ao IPO.
Nunca tinha ido a Lisboa, nem mesmo quando os seus dois do meio tinham partido para a América, nem nunca tinha andado nessas estradas novas e largas que atravessam o seu Alentejo. O que transportarão por estas estradas se já nada se produz? Da primeira vez ia um bocadinho a medo, que não é vergonha nenhuma, nestas coisas da saúde, mas lá no IPO eram todos tão simpáticos. Até havia uma enfermeira que lhe costumava dizer que se ele fosse mais novo, ai, ai. Sabia que era a brincar, mas sabia-lhe bem. A verdade é que a doutora que mal falava português tinha razão e o tratamento era difícil. Agoniava-o e deixava-o sem forças, mas isso guardava para si e nem lá em casa, à sua senhora, deixava transparecer o quanto lhe custava, embora lhe visse a tristeza no olhar, sempre que os grãos de que tanto gostava ficavam no prato que carinhosamente lhe preparara. Neste último tratamento, ouvira qualquer coisa sobre uns cortes na saúde à conta da tal dívida que nunca mais se resolvia. Rezava a Deus para que a Europa cortasse nos alquevas, nas estradas, nos comboios que estavam sempre em greves, ou na Câmara, que ainda ontem ouvira que ia gastar milhões num museu qualquer, porque não sabia como ia ser se a ambulância deixasse de ir busca-lo às segundas, ou se o tratamento acabasse de repente. Mas acreditava que a Europa, que tinha recebido tão bem o seu mais velho e a menina dos seus olhos, não havia de lhe falhar agora, que ele sentia que estava quase a vencer a doença, como sempre vencera todas as adversidades que lhe tinham aparecido ao longo da vida.
Não sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de noite às segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o colarinho sem gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao IPO, a Lisboa, para o tratamento violento que o pode salvar. Não sei se ainda há ambulâncias que façam este transporte gratuito, ou dinheiro no IPO para pagar os medicamentos de que necessita. O que sei é que durante os últimos 30 anos tudo se tem feito para que não haja. Os senhores que acordam de manhã, às segundas-feiras, vestem um dos seus muitos fatos, apertam o colarinho e colocam uma das suas variadas gravatas, empenharam-se durante anos em destruir o sector produtivo, primeiro em nome do socialismo, depois em nome da Europa, ao mesmo tempo que esbanjavam os nossos fracos recursos em empresas que só continuam nacionalizadas porque são autênticos antros de compadrio e corrupção; criaram um Estado pantacruélico que vive do esmagamento fiscal de quem trabalha; permitiram o desvio de milhões de euros de dinheiros europeus levado a cabo por autênticas redes criminosas de suposta formação profissional geridas pelas clientelas partidárias; promoveram o endividamento das autarquias, transformando-as em pequenos estados, onde o rigor, a seriedade e a transparência são mera utopia; destruíram a justiça, onde só se investiga prendendo o suspeito ou fazendo escutas, transformando o mais inalienável dos direitos – o da inocência até prova em contrário – em mera retórica; alienaram o futuro da segurança social em nome da equidade e da solidariedade, trazendo para o sistema quem para ele nunca contribui e permitindo toda a espécie de falcatruas e vigarices; incentivaram a fraude por via da completa ausência de regulação e promoveram a existência de verdadeiros monopólios em sectores essenciais como a energia. Durante trinta anos, foi um fartar vilanagem sem consequências, porque esta gente que esteve no poder não nos governou, governou-se, fazendo tábua rasa dos mais elementares princípios de gestão em prol do bem comum.
Por isso, hoje, não existe dinheiro para o essencial, as funções soberanas do Estado, a saúde e educação. Por isso, talvez deixe de haver dinheiro para trazer os doentes ao IPO ou para os medicamentos que os podem curar.
Por isso, não sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de noite às segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o colarinho sem gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao IPO, a Lisboa, para o tratamento violento que o pode salvar. Só sei que se tal acontecer, sempre que ouvir o seu nome a ser chamado, levantar-se-à e caminhará de fato domingueiro, colarinho apertado, cheio de dignidade, como um príncipe.
Apesar dos nossos governantes, “somos um país de príncipes”.

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