quinta-feira, 31 de julho de 2014

O caso BES e as falhas do Estado



JOÃO CONFRARIA

31/07/2014

O caso BES vai ser muita coisa para muita gente. Aqui queria falar dele como uma amostra da nossa incapacidade de atingir um objetivo das privatizações que era reforçar a capacidade empresarial nacional. A falência do grupo é um caso particular, entre outros, embora de grande dimensão. O pior é que o Estado falhou pois não atingiu os objetivos que tinha.

Reforçar a capacidade empresarial nacional foi um objetivo estabelecido na Lei-quadro das privatizações (Lei nº 11/90). Não ia valer para todas as empresas a privatizar. Em muitas delas da gestão pública não tinham saído boas empresas e esperava-se que o investimento estrangeiro as viabilizasse. No entanto, entre as empresas a privatizar, e certamente entre as de maior valor, estavam algumas com capacidades técnicas e de gestão indiscutíveis.

No setor financeiro, nas comunicações e tecnologias de informação, nalgumas infraestruturas de transporte, nos cimentos, na energia ou na fileira florestal acreditava-se que a privatização, eliminando as inércias do Estado, daria origem a empresas nacionais sólidas com capacidade própria de internacionalização. Contribuiriam para que a economia portuguesa aumentasse a sua parte nos ganhos da globalização.

Este objetivo manteve-se até 2011, altura em que foi abandonado, com a Lei nº 5/2011. Olhando a realidade atual é claro que não foi atingido. Alguns conseguiram mais-valias na venda de ações obtidas nas fases iniciais de algumas privatizações. E até pode ser que essas mais-valias remunerassem alguma contribuição efetiva para a gestão das empresas. Mas não se pode dizer que na maior parte dos casos as empresas privatizadas sejam pilares de grupos empresariais nacionais, tenham processos de internacionalização bem sucedidos ou sejam parte de processos de internacionalização de grupos nacionais.

Atualmente, os seus dividendos remuneram sobretudo acionistas estrangeiros e não é evidente que a sua integração em grupos estrangeiros traga ganhos significativos através de prestação de serviços a empresas desses grupos, ou outras formas de retenção de valor para a economia portuguesa. Há casos pontuais que não são bem assim, por exemplo na energia, nas comunicações ou na fileira florestal. Mas em 1990 quando se estabeleceu o objetivo de promover a capacidade empresarial nacional não se imaginaria certamente como sucesso a situação que temos hoje.

Quer isto dizer que falhámos? Dizer o contrário, que não falhámos, significa dizer que não poderíamos ter feito melhor, ou que, em cada momento, o Estado e as empresas tomaram as melhores decisões que podiam ter tomado. O assunto não é pacífico e parece-me que a sua discussão é importante para percebermos o que andámos mesmo a fazer nestes últimos 25 anos. Arrisco que podíamos ter feito melhor. Mais precisamente, o Estado podia e devia ter feito melhor.

As privatizações começaram a partir de uma base capitalista nacional endividada, com alguma dimensão interna mas com uma expressão internacional reduzida ou nula. Muitos novos acionistas viam as privatizações como forma de obter recursos que permitissem o serviço das suas dívidas.

Não era evidente que considerassem as empresas privatizadas de que eram novos acionistas como negócios a desenvolver, muitas vezes com grande intensidade capitalística, pelo menos enquanto não reequilibrassem as suas estruturas financeiras. Isto quando esses excedentes não eram utilizados para financiar negócios noutras indústrias, com as quais os novos acionistas estariam eventualmente mais familiarizados. E havia que ter em conta com um problema antigo, a relutância do capital privado português em entrar em investimentos significativos sem algum envolvimento do setor público.

O Estado não podia ignorar estas condições básicas do início dos anos 90. E certamente não ignorava, até porque poderiam colidir com outro objetivo essencial do processo de privatizações, ainda nos termos da Lei nº 11/90: modernizar as unidades económicas e aumentar a sua competitividade. Para atingir estes objetivos o Estado deveria ter um papel nos processos de crescimento dos grupos empresariais nacionais e na gestão das empresas privatizadas.

Uma forma simples de o conseguir seria manter nas empresas privatizadas uma posição acionista minoritária mas significativa. Era um meio prático de moderar políticas de distribuição de dividendos, ou outras tendentes a retirar dos negócios privatizados os excedentes gerados, com prejuízo para o seu crescimento futuro, ou de condicionar alianças ou movimentos de concentração. Para isto não era necessário nem um Estado acionista, nem um Estado empreendedor e muito menos um Estado regulador. Bastava um Estado capaz. Que visse as vantagens das privatizações e por isso não interferisse politicamente nas decisões mas cuidasse da prosperidade das empresas.

No início parecia ser essa a ideia. Previa-se que o Estado mantivesse uma posição acionista de referência em muitas das empresas. No entanto, à medida que o processo de privatizações avançava a ideia parece ter mudado. Pelos vistos, com má consciência, bem simbolizada pelas golden shares através das quais se pretendia continuar a mandar no que se tinha vendido. Como se demonstrou em condições infelizes para nós e para a nossa credibilidade coletiva, de pouco serviam. Aliás, era fácil ver que nunca dariam ao Estado a mesma transparência e a mesma capacidade de intervenção em questões estratégicas que uma posição acionista de referência permitiria.

O problema é então saber por que motivo o nosso Estado não foi capaz de fazer meia dúzia de coisas sensatas? O seu abandono de alguma função, necessária mas transitória, na gestão de dinâmicas empresariais não tinha que acontecer assim. Não correspondeu a um movimento universal. Não foi seguido em Espanha e em França. Nem na Coreia do Sul. E isto para não falar do capitalismo de Estado que tem levado às expansões internacionais de empresas estatais ou apoiadas por capitais estatais de Singapura, da China ou do Brasil, e que acabaram por ter um papel relevante nas privatizações e nos movimentos de concentração em Portugal.

Realmente, estamos assim porque, por opção ou omissão, foram tomadas decisões nesse sentido. Julgo que podemos admitir, nem que seja como base de debate, que a nossa situação atual resulta da convergência entre um processo político que desvalorizou o Estado e uma dinâmica empresarial que preferia um Estado fraco.

A despesa pública foi aumentando ao sabor da circunstância política e do ciclo económico. O Estado estava mais interessado em obter dinheiro a curto prazo para pagar a despesa crescente do que em manter capital nas empresas, porque neste caso era somente a prazo que se podia obter mais dinheiro, como dividendos. As receitas das privatizações foram certamente utilizadas para reduzir dívida. Mas como os défices se mantinham no setor público isso de pouco adiantava. Chegados ao fim do ano, aumentava sempre a dívida. E ainda assim, houve pelo menos uma privatização famosa, a venda da rede básica de telecomunicações, cuja receita se destinava a colmatar uma parte de um défice excessivo.

Esta saída do Estado do capital das empresas foi racionalizada com a ideologia do Estado regulador. Dizia-se que bastava deixar os mercados funcionar e garantir que havia regulação para resolver falhas de mercado. Esta ideia era insuficiente por várias razões. Desde logo, apesar do esforço de constituição de algumas autoridades reguladoras, a ideologia esteve quase sempre além da realidade.

Nalguns casos só tardiamente foram atribuídos às autoridades reguladoras competências legais e poderes efetivos de intervenção. Noutros criaram-se autoridades no papel e não se cuidou de garantir que tinham os técnicos adequados. Ou preencheram-se os quadros dessas autoridades e de outros organismos do Estado com funções reguladoras de acordo com procedimentos tradicionais influenciados pela política partidária. Mas o mais importante era que o Estado regulador era insuficiente para resolver os problemas que a saída completa do Estado do capital das empresas abria por uma razão muito mais simples e básica: a regulação não está feita para isso, na União Europeia. Ou seja, não se teve em conta que o interesse público nos mercados, designadamente os objetivos estabelecidos pela Lei nº 11/90, não se esgotavam no interesse público a ser prosseguido pelo Estado na sua função reguladora tal como definida num quadro europeu.

Era necessário também um quadro técnico-institucional, que tinha que ser completamente independente do quadro regulador, que garantisse que a intervenção do Estado como acionista se pautasse por critérios empresariais e não por conveniências políticas. Não se fez isto. E assim houve objetivos de interesse público, e daqueles que no discurso político até apareciam como estratégicos, sem instrumentos adequados para os atingir.

No seu lado da vida portuguesa, cada empresa queria um Estado que protegesse os seus interesses mas que não interferisse com eles. Nem sempre acolhia bem o Estado como acionista de referência mas a ideologia do Estado regulador interessava-lhe. Da regulação formalmente não podia fugir, pois regra geral foi imposta a nível europeu. Mas percebeu que mesmo funcionando bem o Estado regulador tinha os limites da Lei. E quando não funcionava bem, o que acontecia muitas vezes por defeito no desenho das instituições, as desvantagens de informação e de capacidade técnica do Estado seriam tão grandes que os seus poderes efetivos de intervenção sempre seriam reduzidos.

As empresas não estavam interessadas num Estado forte e por isso não se preocuparam muito com o enfraquecimento progressivo da capacidade pública de intervenção na vida portuguesa.

No final ficámos com um Estado a mudar de acordo com a circunstância político económica, sem capacidade de definir um rumo para atingir os objetivos que tinha definido. Falhámos todos.

Economista, Universidade Católica Portuguesa

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